Chega
nessa época do ano – e a cada ano o negócio começa ‘mais cedo’ – é incrível
como a picaretagem com roupagem
assistencialista se difunde. E, antes de qualquer coisa, é necessário ressaltar
alguns aspectos que parecem isolados, mas são centrais: gente sorridente, tipos
de gentes, esperança (qual tipo?), função social da propaganda, da assistência
etc..
É
interessante notar – é claro que é imprescindível ser ‘chato’, ter um olhar ‘meio-aguçado’
– como é seletiva a programação das
mídias. Aliás, é necessário lembrar que essa programação é a da própria vida
cotidiana da população. Desde os programas de pseudo-humor (que são racistas, homofóbicos, xenofóbicos etc.) – e ainda
dizem que deve haver uma espécie de ‘licença moral’ para esse tipo de transmissão
ideológica da dominação. É interessante que os ‘intelectuais pequeno-burgueses’
em suas afazia acadêmica e o senso comum concordam, e riem!, com isso –, então,
desde esses programas aos enlatados humorísticos norte-americanos da primeira
década, às novelas ‘cômicas’ e outras mais, existe algo de muito significativo.
Toda vez que o assunto é pobreza ou
mesmo sua suposta erradicação, o número de pretos
extrapola a ‘cota’ pedida por lei para propagandas e comerciais em geral. Em alguns
casos o próprio ambiente é ‘preto’, isto é, o nordeste, as favelas do Rio, de
SP... Por outro lado, quando um programa, geralmente ‘gringo’ – exceção feita a
alguns mais recentes, que não cabem no ‘estereótipo’ do que vem a seguir –, tem
uma família majoritariamente preta, é, fato!, ‘humorístico’. Não precisa ir longe para constatar isso. Nos
nacionais, o ser preto é usado[1]
– isso mesmo: usado, com todas as letras!,
e inclua-se aí os povos do norte e nordeste – em forma cômica. Isso indica,
como já disse, algo significativo: a inferiorização
estereotipada e eugênica. Tô
pegando pesado? Não, com certeza não. Tudo o que teve início, aqui no Brasil,
na era da Colônia, precisamente a partir de meados do século XIX em diante,
ratifica-se hoje, no aqui e agora. Não me importa aqui, cabe ressaltar, compreender
ou analisar alhures – o foco: Brasil. Enfim, o trato ideológico, racista e
opressor, dado ao cotidiano – naturalizado,
evidentemente –, é o que mais pesa; ideológico,
não cínico. O ser preto não tem identidade. Isto é, sua identidade que tenta se
criar por meio da negação[2],
é sempre o motivo de seu ‘rebaixamento
ideológico’. É por meio de sua resistência – ou mesmo por falta de sentido –
que ele é colocado ‘no seu devido lugar’
(diria um reacionário do início do século XX... ou mesmo do XXI!). Incluso,
está o ódio, principalmente da ‘nobre burguesia paulistana’, ao nordestino (entenda-se: nordestino =
todo aquele que veio de algum canto do norte ou nordeste do país). A combinação perfeita é a imagem do preto,
de cabelo crespo – invariavelmente desarrumado ou sujo –, roupas esquisitas,
trejeitos sintomáticos, aparência de um primitivo, linguajar peculiar etc., e a
imagem, conexa, do nordestino (‘baiano’,
dizem). Não se precisa de exemplos; basta olhar para o lado, a qualquer momento
do dia, que você ou o achará ao seu lado, ou em sua mente.
Dentro
disso, por outro lado, há a figura do gay.
É interessante também como é tratado. Caso seja um gay (no caso, um menino,
homem) corriqueiro, da rua, ele é representado pelas mídias – e pelo senso
comum – todo afetado, como se possuído por
uma doença ou um demônio (e a demonização
nem precisa ser dita, visto o crescimento do protestantismo em sua versão ‘populacho 2.0’ no Brasil, nos últimos
40 anos). Agora, se ele for branco e for da emissora hegemônica, aí é
diferente: ele é ‘aceito’... (olha que bonitinho!). No caso das mulheres, o que
parece ser melhor, é talvez pior. Ela pode ser gay, morar junto à outra,
passear na rua sem, em sua maioria, ser agredida – ao menos fisicamente. Mas,
há algo que pode ser pior que a violência física: a simbólica. Se ela tiver os ‘trejeitos
não aceitáveis moralmente’, é logo submetida a algum tipo de ‘escrúpulo
inescrupuloso’ (e isso me faz lembrar o “Clockwork
Orange”). Mas, não é disso que quero
tratar.
Essa
época do ano, principalmente quanto mais se avança para dezembro, o que vira para o chamado ‘brasileiro médio’
(e eu nunca entendi o que quer dizer exatamente esse médio, pois não muda p***a nenhuma) é o ‘senso de solidariedade’:
todo mundo fica bonzinho; todo mundo torce contra a vilã da novela; em favor do
amor entre os mocinhos; vibra com a ‘ajuda mútua’ – pois, diria alguém, é preciso ajudar o próximo. E, claro
está, a maioria, de massificada que é, não percebe que a telinha fica mais
preta. Pois, falar de pobreza, de sua erradicação, de ‘esperança para um novo milênio’ (escuto essa baboseira desde o
final da década de 1980), de solidariedade com os ‘necessitados’ e algo mais, é
falar, ou melhor, é transbordar preto da telinha. E a propaganda é incisiva:
faz-se algo; e esse algo ou é treinar ‘criança
macaco’ – pois as propagandas do “Criança
Esperança” são com negrinhos pulando em chão de terra batido em alguma
favela do Brasil –, ou dão violino e tambores para crianças tocarem em algum ‘projeto social’ financiado pela Unesco
via “Criança ‘macaco’”. Por um lado,
o problema está longe; por outro, a estereotipação mora ao lado, às vezes junto.
E assim tira-se um peso do Estado; joga-se na mão do indivíduo isolado que ‘deve fazer sua parte’. Entra em jogo um
intermediário chupim, com cara de ‘Esperança’
de um mundo melhor, mais ‘harmônico’ (talvez como as ‘harmonias’ de Schoenberg). Esse intermediário chupim
tem um ‘testa de ferro’ como mecenas.
E, irônico que deve ser, o mecenas é o ‘nordestino
outrora estereotipado’; seu nome: Didi Mocó (e algo mais)! O que se
perde de vista, e isso ficou claro hoje – hoje, digo, pelo menos para mim –,
quando o clube esportivo da hegemônica
midiática trazia estampado em seu peito o símbolo: “Criança ‘Macaco’”. O
desvio de “capital público” – que vai além do dinheiro, envolve a vontade, as
aspirações, desejos, posições políticas etc. de todo um povo –, a isenção de
impostos, a corrupção das mentes e aspirações por meio de sua reificação (e
isso é um dos momentos da ideologia
burguesa) etc., tudo isso é ‘conquistado’ numa única jogada de ‘marketing’ –
poderíamos dizer. Mas vai, também aqui, além do marketing. Todo o movimento do
capitalismo, da supremacia burguesa, é como um ciclo. E esse ciclo precisa desse
momento ‘solidário’ para se completar. E não se trata de uma posição ética; é
uma opção política, um ‘ordenamento’ do capital.
Crianças
pulando como macacos de galho em galho não justifica os milhões arrecadados. E
mesmo que justificasse, não ratifica a prática de isenção social do Estado, tão
pouco dos indivíduos que, até a solidariedade, terceirizam. É justificável
apenas a um estamento: para a burguesia, que se privilegia com a reiteração da
coisificação dos indivíduos. Quanto mais se preocupam – o tal do ‘homem médio’ –
com suas medíocres existências e transmitem suas responsabilidades, sua práxis, para um mecenas abstrato (leia-se: “Criança ‘Macaco’”), mais o capital gira
em falso alimentando a si próprio sem estorvo. A assistência social é prestada,
sim. Mas não aos pretinhos ‘beneficiados’ pelo ‘projeto’. Ela presta ao capital
em geral, à burguesia em particular; ao movimento da sociedade como ‘natureza’
ou ‘naturalização’ (“é assim e assim será
para sempre”). A função social da
propaganda é não distinguir entre o isso e o aquilo. É deixa-los à
opção da autonomia do indivíduo, que
pode, não obstante, escolher entre X e Y. E, concomitante, que não percebam que
o alfabeto ideológico só tem uma letra (portanto, X e Y = 0). Quanto mais ‘macaquinhos’
pulam – enquanto nas propagandas de pastas de dentes, de planos de saúde, de ‘família
feliz’ que come margarina e acorda sem ‘remela’ nos olhos, propaganda de
cerveja etc., são gente ‘do bem’, ‘bonitas’, ‘modelos a serem seguidos’, em uma
palavra, brancos jovens, ‘superiores’ pois perfeitos –, mais e mais a dominação
dá um salto qualitativo.
Claro
está, não é, como querem os ‘pensadores’ pequeno-burgueses, um ‘reflexo’ do que
ocorre na sociedade, isto é, o retrato do cotidiano. É, sim, algo surgido e extraído
do cotidiano e que repõe esse cotidiano; e esse cotidiano, já que reposto pela
propaganda, em última instância, pelo capital, é um fragmento reificado do fetiche social. Essa conversinha “o povo que
escolhe isso” é positivista, factual. Não é preciso lembrar que a leitura,
aqui, é dialética.
Enfim,
o “Criança ‘Macaco’” sempre será “esperança”, pois, se ela é a última que
morre, o capital e seus mecenas a farão eterna,
pois é ela que ratifica a prática picareta e dá aval para que a usurpação seja ‘legal’,
‘legítima’, em uma palavra, ‘solidária’.
Enquanto houver crianças saltitantes e serelepes como macaquinhos que são ‘ajudados’
e tirados – segundo a bola de cristal deles – do mundo das drogas, da
criminalidade (é, sim, pois, preto e pobre virará o que quando crescer – se crescer?
Se não tiver um auxílio – assim como deram aos nativos daqui nos séculos XVI e
XVII – a sociedade nunca irá para frente!), haverá, isso é certo, algo com que
se preocupar. E, assim sendo, haverá algo com que desvirtuar ideologicamente e
corromper – pôr outra(s) no lugar – o imaginário do senso comum, do ‘brasileiro
médio’.
E,
claro, revoltado sou eu. Temos sempre que ajudar o próximo. O individualismo
egoísta é um erro. E o posicionamento político é só, como dizem, “sua opinião”...
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[2] Já tratei um pouco sobre a ‘identidade negativa’ em outro lugar. Cf. http://dialogosdosubsolo.blogspot.com.br/2012/05/no-calor-do-momento-sobre-o-rap.html
[1]
Nem é preciso lembrar que o grande ícone
do humor brasileiro nos últimos tempos é Mussum. E, claro: cômico, pois
preto, cachaceiro, cheio de trejeitos, linguajar peculiar e outras coisas mais.
Sua inferiorização marca uma geração, ou mais. Mas, como falar isso? Por que
falar isso? “Ele era engraçado e ponto
final!”, diria alguém. Assim como engraçado era ver 4 pessoas, de fato,
engraçadas: o mais engraçado o já citado Mussum; seguido de um cheio de
trejeitos “gays”, como o gay é representado; o outro, o líder – e o líder não
pode ser preto, tampouco gay! – nordestino, também cheio de trejeitos (mas não
gay, nem preto). E o quarto? Bem, o quarto – Dedé – um zero à esquerda: não era
engraçado pois não tinha a ver com o que tem graça no Brasil; sem trejeitos,
sem sotaque, sem ‘cabeça chata’, branco etc.. Por que ele seria engraçado? Nem ‘qualidades’ ele possui...
[2] Já tratei um pouco sobre a ‘identidade negativa’ em outro lugar. Cf. http://dialogosdosubsolo.blogspot.com.br/2012/05/no-calor-do-momento-sobre-o-rap.html
Subsolo Urbano!
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