segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Sobre Violência: Esboço 7


Somos violentos. Esta é a conclusão de todo o processo de criação da objetividade social e das subjetividades sob a égide do capital. Mesmo aqueles que se pensam pacíficos, são violentos. Não há ninguém que escape a isso. Um conceito (dialético) de violência, como tentei esboçar, deve ser entendido de maneira ampla, abarcando toda a anulação do outro, da forma que for, pela criação nula da subjetividade. E, como não poderia deixar de ser, a ruptura desse processo de produção total de violência deve ser violento. Não há outra forma. Contudo, como também já esbocei, esta deveria ser a violência do não-idêntico (aliás, quem discorreu sobre isto foi Adorno). Um tipo de violência negativa, que negue o dado e estabelecido, negue o socialmente naturalizado, negue o sempre-igual. Não é a violência que mata o outro; pretende, sim, destruir a produção fantasiosa de subjetividades autônomas. Violento porque nega aquilo que aparece, com toda força, como verdade, natureza e positividade moral. Violento na medida em que tende a romper com a lógica da coisa, com a semiformação e com a anulação da experiência.
Se entenderam mal Rousseau, tachando-o de selvagem, dizendo que propunha uma volta a algum estado de natureza sublime e ideal, não se deve cometer esse crime novamente: seria a farsa. A violência não é de uma negação total, da destruição completa de tudo que existe. Antes, destruição pontual dos “princípios”, dos fundamentos dessa realidade: negação determinada. Isto seria a afirmação de um humano recriado a partir de si mesmo; ruptura com a formação abstraída e posta por um sujeito cego e abstrato.
Mas como a intenção não é propor nenhum conceito positivo para a emancipação – aliás, isto, por si só, seria contradição na medida em que qualquer positivo é prontamente engolido, senão criado, pelo sujeito abstrato e tomado à capacidade dos indivíduos: o positivo seria prontamente reificado –, a ideia é tentar pensar e agir criticamente nas bases do problema.
Se somos violentos por excelência, é por conta de sermos produzidos de forma violenta. Não é nova a ideia que tudo é produzido pela abstração. Tanto a vida pública e social, a sociedade propriamente dita, quanto as subjetividades, as entranhas mais íntimas dos indivíduos, são produtos de suas relações sociais. As emoções, sentimentos, pontos de vista, modos de pensamento e visão de mundo são produtos de suas relações com outros indivíduos em sociedade. Pensar o contrário disso seria absurdo: achar, por um lado, que os indivíduos já nascem programados sensível e moralmente e, por outro, possuem plena autonomia de agir a partir do nada (ex nihilo, tal como o Deus cristão cria o mundo; a priori), é absurdo por si só. Para lembrar, Marx chama isto de Robinsonadas, aludindo a Robinson Crusoé que, na leitura de alguns sobre o texto de Defoe, Crusoé cria as coisas na ilha a partir do nada. Marx alerta que Robinson Crusoé não é um indivíduo isolado, mas um indivíduo social: criado em uma sociedade, sabedor de costumes, práticas, moralidade e etc., quando se vê solitário, somente está em corpo solitário: como indivíduo, nunca estará, já que carrega as determinações sociais consigo [vale lembrar que Crusoé, depois de percorrer toda a ilha e não encontrar nada, absolutamente, que lhe oferecesse qualquer risco, faz uma casa com cercas e portão (!!!). Ora, a pergunta é: para quê? É óbvio, até mais óbvio hoje para o século XXI, que aquilo que se aprende em sociedade, seja verdadeiro ou falso, será aplicado sempre. Somos paranóicos: vemos na TV que nosso bairro é o “mais violento da cidade”, por mais que moremos toda vida nele e nunca tenhamos percebido isso, ficamos com medo e aumentamos o muro, colocamos câmeras, cerca elétrica e etc.].
Por outro lado, sempre somos levados a jogar toda carga nas costas dos indivíduos, tomados isoladamente. Se a polícia no Brasil é ruim, dizem alguns, é por conta de alguns policiais que são maus profissionais, são corruptos e etc.. Por essa lógica, seria necessário retirar essas “maçãs podres”, como se eles já tivessem nascido podres e não produzidos desse modo. Não conseguimos verificar que há uma instituição podre, decorrente, por sua vez, de um Estado apodrecido e de toda uma gama de relações sociais e de uma sociedade produzida dessa maneira. Não conseguimos verificar que as “soluções”, se é que se pode dizer assim, sempre são fonte de alimentação dessa situação: combate-se a violência social (e até o exercício democrático de manifestação e etc. é visto como algo a ser combatido pelo “poder público”) com repressão e força de disposição e capacidade de violência. Ou seja, combate-se violência com mais violência. Mesmo a senhorinha mais pacífica, que vai à missa ou ao culto todas as noites, exige do Estado mais “firmeza” e reza pela instauração da pena de morte no Brasil – ainda que ela fique chocada com meninos que chutam gatos, apoia a morte de negros (que ela chama adoravelmente de “bandidos”) amarrados pelo pescoço em postes e espancados pela “população revoltada que não aguenta mais a morosidade da justiça e a fragilidade e brandura das leis que não punem severamente”: ela não se acha violenta, apesar de clamar pela pena de morte. Todo o problema está nas costas daquele indivíduo que nasceu desse jeito (e por isso não tem jeito), não recebeu educação dos pais, que não tem saída pois é inferior por natureza, que não escolheu o caminho do bem (que as pessoas sempre acham que o caminho do bem é aquele que elas mesmas trilham), que fez as escolhas erradas na vida, que não quer estudar, não quer trabalhar e etc.. É sempre culpa do indivíduo. Não conseguimos ligar os pontos; não conseguimos ver que as árvores compõem uma floresta e, por fim, “não conseguimos ver a floresta por conta das árvores” (Hegel).
Uma sociedade, composta por uma opinião pública, que acha que “justiça e vingança” são a mesma coisa; que acha que só é racismo se não for em forma de piada, pois as “piadas” estão acima de tudo; sociedade composta por pessoas que criticam juízes e poderosos por fazerem coisas que, no fundo, são o desejo mais íntimo e mais perverso delas: se pudessem, tivessem o mesmo poder ou dinheiro, fariam o mesmo, talvez pior, já que fazem, mas numa escala menor por falta de poder e dinheiro. Uma sociedade dessas somente produzirá pessoas violentas.
No alto dos morros ou nas esquinas das periferias tem uma base militar. É como colocar feitores e capitães-do-mato para garantir a segurança dos pretos; colocar o lobo para cuidar das ovelhas; colocar bandeirantes para cuidar do ouro. Polícia pacificadora, é como chamam: é a mãe pacificadora de conflitos dos filhos, com uma cinta numa mão e um pedaço de cano de PVC na outra. Numa sociedade de classes, na qual o Estado defende os interesses da classe dominante, pois ele é fruto da classe dominante, seu braço direito irá, também, defender tais interesses. A polícia pacificadora, ao contrário do que muitos dizem, pacifica de fato: ela estabiliza e dá aval para os negócios da burguesia, para que corram leves e soltos, sem interferências. Ora, para que as UPPs iriam acabar com o comércio de drogas nas favelas? Os “produtores” e agenciadores maiores desses negócios, que controlam o Estado, são membros da classe dominante e etc., iriam comerciar onde? Ora, é como pensar como um abolicionista branco: pensa e age como um liberal, é “amigo” dos pretos, mas a ideia central é liberar seus próprios negócios do empecilho do trabalho não-livre [NOTA: Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes e Revolução Burguesa no Brasil; indiretamente: Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar].
Por um lado, a polícia é violenta por ser uma instituição criada para isso, para defender interesses alheios aos do povo e, por fim, garantir “ordem e progresso”. Por outro, seus membros são indivíduos “normais”, isto é, surgem do seio dessa mesma sociedade que cria “monstros” na mesma medida em que faz partos. Mas a violência de quem dispõe de arma de fogo e aval social e jurídico para reprimir e, por fim, matar, é sempre muito maior que dos outros. Isto vale, com ressalvas, para o crime organizado, que não é outra coisa que produto das mesmas condições sócio-históricas e o contrapeso que faz a gangorra funcionar [NOTA: escrevi sobre isto aqui: Mais um ataque: Capitães-do-mato e outsiders na farsa histórica brasileira].
A violência policial, a própria existência desta polícia, é a violência da sociedade capitalista, de sua classe dominante e de seu modus operandi. Ela é glorificada pela burguesia, já que garante sua “segurança” e sua continuidade, e pelos fantoches; é garantida pelo sadismo histórico de nossa constituição e pela formação social que torna tudo natural, que necessita desse tipo de existência – quer dizer, coloca em nossos corações que é assim que tem que ser e é assim que é melhor que seja. A violência policial é dos mesmos ódio e crueldade, classista e sádica, egoísta e narcisista, que a violência dos médicos em postos e hospitais públicos; do mesmo nível que a violência da progressão continuada sem uma estrutura séria por trás e uma reformulação da ideia de “escola”; é idêntica à violência do consumo, que consome o consumidor; é da mesma ordem que a violência do motorista de ônibus para com os passageiros, dos passageiros entre si. É a violência estrutural, que estrutura nossa sociedade e está diluída em todos seus âmbitos, nas menores frestas. Não se pode dizer, no entanto, que o ódio e o modo raivoso que as pessoas se tratam no ônibus, na rua, no metrô e etc., seja fruto delas mesmas, sejam suas vontades e deliberações autônomas. Ainda que tudo isso seja mascarado por nosso “jeitinho”, o “homem cordial”, que esfacela todas as relações cinicamente as mantendo, sobrevive no âmago de cada indivíduo e dá as coordenadas para seu agir [NOTA: quanto a isso: Francisco de Oliveira, Jeitinho e Jeitão; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil].
Somos violentos por conta de toda nossa vontade de criar nossa subjetividade por meio da anulação do outro. Esta mesma subjetividade que em aparência é criada por cada indivíduo, mas, em verdade, é socializada para ser capitalizada. Compramos, à dinheiro, o que nos torna sujeito. Mas somente compramos por conta que a subjetividade já está dada, “gratuitamente”, como ideia, conhecimento e etc., pronta e acabada. O capitalismo, para poder “vender” seus produtos, precisa criar, antes da venda, portanto de forma abstrata e gratuita, a “vontade” e a necessidade de consumo. Precisa produzir as relações sociais, as vontades mais íntimas [Quanto a isso: Oskar Negt e Alexander Kluge, O trabalhador total...; Herbert Marcuse, sobre “dessublimação repressiva”, Eros e Civilização e O homem unidimensional]. Até aquilo que parece o mais natural possível, que parece a priori, é produzido por esta forma social: os instintos e sentimentos mais íntimos e “humanos”. Nas sociedades nas quais a produção das relações sociais não possuía uma única determinação e um único fundamento, era possível que o indivíduo criasse a si mesmo por seu próprio esforço. Aliás, é esta ideia que fundamenta o início da modernidade e a formação de ideias nesse período, como, por exemplo, o expoente maior desse momento: Descartes. Todavia, numa sociedade na qual as relações sociais, e junto a elas as relações mais íntimas, são tomadas de assalto, abstraídas e postas e repostas por um princípio organizador abstrato que toma o cargo de sujeito, não é possível que o indivíduo crie a si próprio por meio de seu esforço autônomo. Aliás, o esforço é “terceirizado”: hoje é possível comprar produtos “personalizados”, que sejam “a sua cara”, façam do indivíduo uma pessoa única e diferente, produtos únicos e “escolhidos” pelo indivíduo e “somente” por e para ele. Assim o indivíduo consegue se diferenciar dos demais, ser ele mesmo. Ele não vê, não obstante, que o que ele escolhe é sempre o mesmo que os outros, pois, por um lado, não há opção, e, por outro, é a opção mais segura e a melhor, mais avançada. Cria-se a ideia que temos uma gama infinita de possibilidade de escolha enquanto qualquer escolha, o princípio basilar, é sempre o mesmo, sempre-igual, mesmo que esse sempre-igual apareça como diferente e único. O indivíduo narcísico, que pretende ser diferente de todos os outros e pretende anular todos tendendo ao isolamento como condição para a criação de sua subjetividade, é, à revelia do que pensa e fala, gregário (para usar uma expressão de Nietzsche):  ele só é isolado, autêntico, único e diferente mediante a massificação, pelo fato de “sumir” na massa pela sua homogeneidade com ela. O indivíduo é ele mesmo por escolher e ser o “diferente sempre-igual”.   
Somos violentos por conta de sempre querer anular o outro e, contrariamente, sempre depender do outro. Somos violentos por sermos produzidos assim e por reproduzirmos isso. Há saída? Sim, há. Somente o esforço da violência contrária, que chamei, junto à Adorno, de violência negativa, que opere a ruptura com a naturalidade de toda esta situação, que se apresente na força do humano contra a reificação e a fetichização de tudo, poderá emancipar, livrar-nos de sermos violentos para com nós mesmos [aliás, aqui nos aproximamos à Kant: sua ideia mais básica de liberdade é a ruptura com a causalidade da natureza, da necessidade eterna e natural].
Romper com a natureza do capital, com a naturalidade da violência física, espiritual e simbólica; romper, definitivamente, com a violência da criação de nós mesmos à nossa revelia, pelas nossas costas; romper com a naturalização da morte e seu espetáculo cotidiano; romper com a ideia (e a prática) que faz com que nossa (pseudo)subjetividade se dê às custas da anulação do outro, às custas de sua morte. Interromper com o curso que nos levará, necessariamente, à morte total, pois já estamos em seu caminho pelas mortes parciais que clamamos e glorificamos todos os dias.


Subsolo! 

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