Somos
violentos. Esta é a conclusão de todo o processo de criação da objetividade
social e das subjetividades sob a égide do capital. Mesmo aqueles que se pensam
pacíficos, são violentos. Não há ninguém que escape a isso. Um conceito
(dialético) de violência, como tentei esboçar, deve ser entendido de maneira
ampla, abarcando toda a anulação do outro, da forma que for, pela criação nula da subjetividade. E, como não
poderia deixar de ser, a ruptura desse processo de produção total de violência
deve ser violento. Não há outra forma. Contudo, como também já esbocei, esta
deveria ser a violência do não-idêntico (aliás,
quem discorreu sobre isto foi Adorno). Um tipo de violência negativa, que negue
o dado e estabelecido, negue o socialmente
naturalizado, negue o sempre-igual. Não é a violência que mata o outro;
pretende, sim, destruir a produção fantasiosa de subjetividades autônomas.
Violento porque nega aquilo que aparece, com toda força, como verdade, natureza
e positividade moral. Violento na medida em que tende a romper com a lógica da coisa, com a semiformação e
com a anulação da experiência.
Se
entenderam mal Rousseau, tachando-o de selvagem, dizendo que propunha uma volta
a algum estado de natureza sublime e ideal, não se deve cometer esse crime
novamente: seria a farsa. A violência
não é de uma negação total, da destruição completa de tudo que existe. Antes,
destruição pontual dos “princípios”, dos fundamentos dessa realidade: negação determinada.
Isto seria a afirmação de um humano recriado a partir de si mesmo; ruptura com
a formação abstraída e posta por um sujeito cego e abstrato.
Mas
como a intenção não é propor nenhum conceito positivo para a emancipação –
aliás, isto, por si só, seria contradição na medida em que qualquer positivo é
prontamente engolido, senão criado, pelo sujeito abstrato e tomado à capacidade
dos indivíduos: o positivo seria prontamente reificado –, a ideia é tentar
pensar e agir criticamente nas bases do problema.
Se
somos violentos por excelência, é por conta de sermos produzidos de forma
violenta. Não é nova a ideia que tudo é produzido pela abstração. Tanto a vida
pública e social, a sociedade propriamente dita, quanto as subjetividades, as
entranhas mais íntimas dos indivíduos, são produtos de suas relações sociais.
As emoções, sentimentos, pontos de vista, modos de pensamento e visão de mundo
são produtos de suas relações com outros indivíduos em sociedade. Pensar o
contrário disso seria absurdo: achar, por um lado, que os indivíduos já nascem
programados sensível e moralmente e, por outro, possuem plena autonomia de agir
a partir do nada (ex nihilo, tal como
o Deus cristão cria o mundo; a priori),
é absurdo por si só. Para lembrar, Marx chama isto de Robinsonadas, aludindo a Robinson
Crusoé que, na leitura de alguns sobre o texto de Defoe, Crusoé cria as
coisas na ilha a partir do nada. Marx alerta que Robinson Crusoé não é um
indivíduo isolado, mas um indivíduo social: criado em uma sociedade, sabedor de
costumes, práticas, moralidade e etc., quando se vê solitário, somente está em corpo solitário: como indivíduo,
nunca estará, já que carrega as determinações sociais consigo [vale lembrar que
Crusoé, depois de percorrer toda a ilha e não encontrar nada, absolutamente,
que lhe oferecesse qualquer risco, faz uma casa com cercas e portão (!!!). Ora,
a pergunta é: para quê? É óbvio, até mais óbvio hoje para o século XXI, que
aquilo que se aprende em sociedade, seja verdadeiro ou falso, será aplicado
sempre. Somos paranóicos: vemos na TV que nosso bairro é o “mais violento da
cidade”, por mais que moremos toda vida nele e nunca tenhamos percebido isso,
ficamos com medo e aumentamos o muro, colocamos câmeras, cerca elétrica e
etc.].
Por
outro lado, sempre somos levados a jogar toda carga nas costas dos indivíduos,
tomados isoladamente. Se a polícia no Brasil é ruim, dizem alguns, é por conta
de alguns policiais que são maus profissionais, são corruptos e etc.. Por essa
lógica, seria necessário retirar essas “maçãs podres”, como se eles já tivessem
nascido podres e não produzidos desse modo. Não conseguimos verificar que há
uma instituição podre, decorrente, por sua vez, de um Estado apodrecido e de
toda uma gama de relações sociais e de uma sociedade produzida dessa maneira. Não
conseguimos verificar que as “soluções”, se é que se pode dizer assim, sempre
são fonte de alimentação dessa situação: combate-se a violência social (e até o
exercício democrático de manifestação e etc. é visto como algo a ser combatido
pelo “poder público”) com repressão e força de disposição e capacidade de
violência. Ou seja, combate-se violência com mais violência. Mesmo a senhorinha
mais pacífica, que vai à missa ou ao culto todas as noites, exige do Estado
mais “firmeza” e reza pela instauração da pena de morte no Brasil – ainda que
ela fique chocada com meninos que chutam gatos, apoia a morte de negros (que
ela chama adoravelmente de “bandidos”) amarrados pelo pescoço em postes e espancados
pela “população revoltada que não aguenta mais a morosidade da justiça e a
fragilidade e brandura das leis que não punem severamente”: ela não se acha
violenta, apesar de clamar pela pena de morte. Todo o problema está nas costas
daquele indivíduo que nasceu desse jeito (e por isso não tem jeito), não
recebeu educação dos pais, que não tem saída pois é inferior por natureza, que
não escolheu o caminho do bem (que as pessoas sempre acham que o caminho do bem
é aquele que elas mesmas trilham), que fez as escolhas erradas na vida, que não
quer estudar, não quer trabalhar e etc.. É sempre culpa do indivíduo. Não
conseguimos ligar os pontos; não conseguimos ver que as árvores compõem uma
floresta e, por fim, “não conseguimos ver a floresta por conta das árvores”
(Hegel).
Uma
sociedade, composta por uma opinião pública, que acha que “justiça e vingança”
são a mesma coisa; que acha que só é racismo se não for em forma de piada, pois
as “piadas” estão acima de tudo; sociedade composta por pessoas que criticam
juízes e poderosos por fazerem coisas que, no fundo, são o desejo mais íntimo e
mais perverso delas: se pudessem, tivessem o mesmo poder ou dinheiro, fariam o
mesmo, talvez pior, já que fazem, mas numa escala menor por falta de poder e
dinheiro. Uma sociedade dessas somente produzirá pessoas violentas.
No
alto dos morros ou nas esquinas das periferias tem uma base militar. É como
colocar feitores e capitães-do-mato para garantir a segurança dos pretos; colocar o lobo
para cuidar das ovelhas; colocar bandeirantes para cuidar do ouro. Polícia
pacificadora, é como chamam: é a mãe pacificadora de conflitos dos filhos, com
uma cinta numa mão e um pedaço de cano de PVC na outra. Numa sociedade de
classes, na qual o Estado defende os interesses da classe dominante, pois ele é
fruto da classe dominante, seu braço direito irá, também, defender tais
interesses. A polícia pacificadora, ao contrário do que muitos dizem, pacifica
de fato: ela estabiliza e dá aval para os negócios da burguesia, para que
corram leves e soltos, sem interferências. Ora, para que as UPPs iriam acabar
com o comércio de drogas nas favelas? Os “produtores” e agenciadores maiores
desses negócios, que controlam o Estado, são membros da classe dominante e
etc., iriam comerciar onde? Ora, é como pensar como um abolicionista branco:
pensa e age como um liberal, é “amigo” dos pretos, mas a ideia central é
liberar seus próprios negócios do empecilho do trabalho não-livre [NOTA:
Florestan Fernandes, A integração
do negro na sociedade de classes e Revolução Burguesa no Brasil; indiretamente: Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar].
Por um lado, a polícia é violenta
por ser uma instituição criada para isso, para defender interesses alheios aos
do povo e, por fim, garantir “ordem e
progresso”. Por outro, seus membros são indivíduos “normais”, isto é,
surgem do seio dessa mesma sociedade que cria “monstros” na mesma medida em que
faz partos. Mas a violência de quem dispõe de arma de fogo e aval social e jurídico
para reprimir e, por fim, matar, é sempre muito maior que dos outros. Isto vale,
com ressalvas, para o crime organizado, que não é outra coisa que produto das
mesmas condições sócio-históricas e o contrapeso que faz a gangorra funcionar
[NOTA: escrevi sobre isto aqui: Mais
um ataque: Capitães-do-mato e outsiders
na farsa histórica brasileira].
A violência policial, a própria existência
desta polícia, é a violência da sociedade capitalista, de sua classe dominante
e de seu modus operandi. Ela é
glorificada pela burguesia, já que garante sua “segurança” e sua continuidade,
e pelos fantoches; é garantida pelo sadismo histórico de nossa constituição e
pela formação social que torna tudo natural, que necessita desse tipo de
existência – quer dizer, coloca em nossos corações que é assim que tem que ser
e é assim que é melhor que seja. A violência policial é dos mesmos ódio e
crueldade, classista e sádica, egoísta e narcisista, que a violência dos
médicos em postos e hospitais públicos; do mesmo nível que a violência da
progressão continuada sem uma estrutura séria por trás e uma reformulação da
ideia de “escola”; é idêntica à violência do consumo, que consome o consumidor;
é da mesma ordem que a violência do motorista de ônibus para com os
passageiros, dos passageiros entre si. É a violência estrutural, que estrutura
nossa sociedade e está diluída em todos seus âmbitos, nas menores frestas. Não
se pode dizer, no entanto, que o ódio e o modo raivoso que as pessoas se tratam
no ônibus, na rua, no metrô e etc., seja fruto delas mesmas, sejam suas
vontades e deliberações autônomas. Ainda que tudo isso seja mascarado por nosso
“jeitinho”, o “homem cordial”, que
esfacela todas as relações cinicamente as mantendo, sobrevive no âmago de cada
indivíduo e dá as coordenadas para seu agir [NOTA: quanto a isso: Francisco de
Oliveira, Jeitinho
e Jeitão; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil].
Somos
violentos por conta de toda nossa vontade de criar nossa subjetividade por meio
da anulação do outro. Esta mesma subjetividade que em aparência é criada por cada indivíduo, mas, em verdade, é socializada para ser capitalizada. Compramos, à dinheiro, o
que nos torna sujeito. Mas somente compramos por conta que a subjetividade já
está dada, “gratuitamente”, como ideia, conhecimento e etc., pronta e acabada.
O capitalismo, para poder “vender” seus produtos, precisa criar, antes da
venda, portanto de forma abstrata e gratuita, a “vontade” e a necessidade de
consumo. Precisa produzir as relações
sociais, as vontades mais íntimas [Quanto a isso: Oskar Negt e Alexander Kluge,
O trabalhador total...; Herbert
Marcuse, sobre “dessublimação repressiva”, Eros
e Civilização e O homem
unidimensional]. Até aquilo que parece o mais natural possível, que parece a priori, é produzido por esta forma
social: os instintos e sentimentos mais íntimos e “humanos”. Nas sociedades nas
quais a produção das relações sociais não possuía uma única determinação e um
único fundamento, era possível que o indivíduo criasse a si mesmo por seu
próprio esforço. Aliás, é esta ideia que fundamenta o início da modernidade e a
formação de ideias nesse período, como, por exemplo, o expoente maior desse
momento: Descartes. Todavia, numa sociedade na qual as relações sociais, e
junto a elas as relações mais íntimas, são tomadas de assalto, abstraídas e
postas e repostas por um princípio organizador abstrato que toma o cargo de
sujeito, não é possível que o indivíduo crie a si próprio por meio de seu
esforço autônomo. Aliás, o esforço é “terceirizado”: hoje é possível comprar
produtos “personalizados”, que sejam “a sua cara”, façam do indivíduo uma
pessoa única e diferente, produtos únicos e “escolhidos” pelo indivíduo e “somente”
por e para ele. Assim o indivíduo consegue se diferenciar dos demais, ser ele
mesmo. Ele não vê, não obstante, que o que ele escolhe é sempre o mesmo que os
outros, pois, por um lado, não há opção, e, por outro, é a opção mais segura e
a melhor, mais avançada. Cria-se a ideia que temos uma gama infinita de
possibilidade de escolha enquanto qualquer escolha, o princípio basilar, é
sempre o mesmo, sempre-igual, mesmo que esse sempre-igual apareça como
diferente e único. O indivíduo narcísico, que pretende ser diferente de todos
os outros e pretende anular todos tendendo ao isolamento como condição para a
criação de sua subjetividade, é, à revelia do que pensa e fala, gregário (para usar uma expressão de
Nietzsche): ele só é isolado, autêntico,
único e diferente mediante a massificação, pelo fato de “sumir” na massa pela
sua homogeneidade com ela. O indivíduo é ele mesmo por escolher e ser o “diferente
sempre-igual”.
Somos
violentos por conta de sempre querer anular o outro e, contrariamente, sempre
depender do outro. Somos violentos por sermos produzidos assim e por
reproduzirmos isso. Há saída? Sim, há. Somente o esforço da violência
contrária, que chamei, junto à Adorno, de violência
negativa, que opere a ruptura com a naturalidade
de toda esta situação, que se apresente na força do humano contra a reificação
e a fetichização de tudo, poderá emancipar, livrar-nos de sermos violentos para
com nós mesmos [aliás, aqui nos aproximamos à Kant: sua ideia mais básica de
liberdade é a ruptura com a causalidade da natureza, da necessidade eterna e
natural].
Romper
com a natureza do capital, com a naturalidade da violência física, espiritual e
simbólica; romper, definitivamente, com a violência da criação de nós mesmos à
nossa revelia, pelas nossas costas; romper com a naturalização da morte e seu
espetáculo cotidiano; romper com a ideia (e a prática) que faz com que nossa
(pseudo)subjetividade se dê às custas da anulação do outro, às custas de sua
morte. Interromper com o curso que nos levará, necessariamente, à morte total,
pois já estamos em seu caminho pelas mortes parciais que clamamos e
glorificamos todos os dias.
Subsolo!
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