A
última moda em alta – e em ascendência – é o julgamento, que mesmo se esquivando do cunho moral volta-se a ele
com força e se enreda em todo tipo de interdição
moral. Esta interdição, por sua vez, é dialética. Ela corrompe tanto o dito, quanto o interdito: ela se vinga daquele que diz; vinga-se daquilo que fala
e impõe (ou tenta, ao menos) ao mundo e aos outros. E é dialética – pautada na
via de mão dupla contraditória e mediada pela estrutura das relações na
sociedade vigente –, pois o sujeito que julga é mediado pelo julgamento. O que
julga – e entenda-se bem: o que (alguém)
julga e não quem julga –, é
também produto social, do indivíduo em sociedade, das relações sociais, não de
um indivíduo puro acima dela (da sociedade), nem mesmo “produto” da natureza ou
algo predeterminado geneticamente no indivíduo julgado. O julgamento que um
indivíduo (ou um conjunto de indivíduos) faz em relação a alguém (ou um
conjunto de fatos), é também, ainda que não saiba, um julgamento às relações
sociais as quais participa como produtor e produto. Mesmo que em aparência
esteja, o indivíduo, envolvido apenas indiretamente nas situações, ele está
diretamente emaranhado na sociedade. Nele transparecem, umas vezes mais outras
menos, as determinações universais da sociedade e de suas relações. Romper com
tais situações, ainda que se leve em consideração a autonomia dos indivíduos,
só pode ocorrer com a ruptura (superação) do universal (a sociedade e suas
relações). A autonomia do indivíduo deve ser considerada em sua luta contra as
determinações da sociedade, mas ele não pode prescindir da sociedade e suas
determinações, mesmo que queira e se esforce ao último. Mesmo o mais atento e politizado indivíduo, o mais consciente
e regrado, está sujeito às determinações sociais, seja externamente (tendo de
se curvar às instituições) ou internamente (na medida em que absorve a história
em si ainda que não queira ou não saiba). Escorregar,
no sentido de estar sujeito a falhas em sua conduta, é algo plausível e, até
certo ponto, normal. O sujeito politizado e regrado 24 horas por dia, que
mantém uma conduta impecável perante a realidade, não existe e engana a si
mesmo. Sua existência (falsa em si mesma) é de ordem positiva, pois anula o movimento da história e da sociedade: (o
indivíduo) é antidialético ainda que
reivindique a dialética como método. Extático – e estático – diante do mundo,
ele anula a si mesmo, ou anula sua sombra que somente existe para si, não na
realidade efetiva. Estar envolto e absorvido por essa situação histórico-social
é determinação histórico-social: não
há como fugir – e isto não quer dizer que não há como transformar. A terceira das Teses sobre Feuerbach, de Marx, exemplar, é síntese disso: “... o educador precisa ser educado”[1].
Adjetivação,
que se quer figura de linguagem, não se limita à “linguagem” – tal como compreendida pelo senso comum. E esta não se
limita a simples meio de comunicação.
A adjetivação é o princípio norteador e formador do ser social em sua
completude finita, ao passo que a linguagem é a forma concreta de existência
desse ser social. Pensar e ser necessitam de dois fatores: da sociedade (seja
qual for) – e todos os limites e determinações que ela impõe – e da linguagem.
Sem linguagem, não existiria ser nem pensar. A linguagem não é, portanto, uma forma simples de comunicação ou algo
externo ao ser social. Ela é forma.
Mesmo que imponha limitações – pois a linguagem se contradiz e não consegue
abarcar tudo que deseja –, é exatamente através dessas limitações que se deve
tentar superar as restrições autoimpostas. Para existir, é preciso qualificar as coisas. O adjetivo[2],
como forma, é a expressão do pensamento e do ser, não seu complemento. Sem ele,
o pensamento sequer existe. Entretanto, que não se entenda que o adjetivo cria
o ser, ou o ser cria o adjetivo. Não é disso que se trata. Antes,
dialeticamente pensando, são os sujeitos que determinam a objetividade social,
e esta, ao mesmo tempo, produz o sujeito (que também é, como produzido, objeto
– tanto da objetividade social quanto de si mesmo na medida em que é criador e
criatura). A linguagem, e com ela a “criação”
de sujeito e objeto, é a forma da
realidade. A adjetivação é intrínseca a toda linguagem, portanto, a todo ser.
Reduzir a linguagem à mera comunicação entre sujeitos – como fizeram J.
Habermas, A. Honneth entre outros – é se perder no equívoco de um ser que
criaria autonomamente a partir de si, como ser mais ou menos “indeterminável”, sendo as relações
sociais criações autônomas desse ser, e externas a ele (isto é, sem que
pudessem determinar, dialeticamente, o próprio “ser”).
Como
sujeito-objeto, o sujeito (determinado internamente pela sociedade, já que é ser
social e objeto tanto quanto sujeito das relações sociais), não pode se isentar
das particularidades da sociedade, mesmo que “não lhe diga respeito”. As
particularidades da sociedade (“fatos” supostamente isolados que ocorrem
“distantes” ou não e que, também supostamente, não envolvem o indivíduo em
questão) revelam o todo da sociedade. Os “fatos” particulares expõem, de um
modo ou de outros, as determinações sociais e, com elas, as parcelas de
participação singular de cada indivíduo. Assim, julgar de modo imediato as coisas e fatos como se não
lhes dissesse respeito e estivessem “erradas” do ponto de vista do sujeito que
se acha acima da situação, é no mínimo um equívoco. A forma imediata de julgamento – para esclarecer
– não quer dizer que o “fato” acontece e o sujeito julga no “aqui e agora”.
Diferente disso, diz respeito ao julgamento que não se põe no centro do
julgado. O indivíduo coloca aquele julgado como algo que não lhe diz respeito
de maneira alguma. Ele não percebe que algo que ocorre na sociedade é da sociedade e, portanto, revela a totalidade desta sociedade. Revela,
ainda mais, uma espécie de “mea-culpa” do indivíduo que julga. O indivíduo não
se percebe, além disso, como sujeito mediado, que é, tal como o fato que julga,
produto da sociedade e de suas relações. Ele não se dá conta, também, que julga
conforme estas relações determinem como deve ser o julgamento. Quanto mais
imediato o indivíduo – ou seja, quanto menos se entenda dentro da situação, que é a sociedade revelando suas fraturas
centrais em “fatos” particulares –, menos possibilidade de perceber o movimento
determinante – e ideológico – das relações sociais que aparecem totalmente em seu julgamento “isento” e
“autônomo”. Porém, as contradições também
se revelam aí, nesse ser supostamente imediato. Elas despontam através do
julgamento das situações; surgem no indivíduo que se contradiz já que não
consegue conectar sua própria existência em si mesma. Para deixar claro isto:
indivíduo X julga a vida como bem mais precioso; o mesmo indivíduo clama pela
morte como solução para o seu bem mais precioso (a vida)[3]. Além
destas, as (outras) contradições da sociedade também se revelam no indivíduo.
Uma sociedade não-livre produz indivíduos não-livres, mas que se entendem
livres – isto é: uma situação na qual
a liberdade é condição sine qua non de
existência desta sociedade. A ruptura da ilusão poderia ser o primeiro passo
para a ruptura da totalidade. Romper a ilusão significa quebrar a imediatidade em seu núcleo profundo.
O
que dá vida – lesada – a esta
sociedade é, por um lado, a adjetivação como elevação de uma particularidade ao
âmbito do universal. Por outro, a imediatidade da própria adjetivação.
Imediatidade e, consequentemente, seu vazio de sentido que cobra do indivíduo
um conteúdo. Este conteúdo é a própria privação do sujeito e sua (auto)sentença
de morte. Como é mediado – ainda que
pense prescindir disso ou não sabia de forma alguma dessa sua condição –, o
sujeito trai a si mesmo. A linguagem trai
seu melhor. Isto indica que ao passo em que expressa o mundo, a linguagem
não consegue abarcá-lo por conta de suas próprias limitações. Limitações estas
que se agravam pela “inconsciência” do indivíduo: sua imediatez. A adjetivação
reificada – não-mediada – frustra as intenções mais conscientes do sujeito, na
mesma medida em que satisfaz sua condição de objeto mediado por uma sociedade
que deixou de ser “sua”. Concomitante
à imediatidade dos julgamentos – e, junto a ela, imediatidade da existência –, e
por consequência dela, particularidades são ressaltadas e elevadas ao domínio
do universal, tal como se fossem de fato o universal. Eis a fórmula irredutível
de toda discriminação: tomar uma
parte pelo todo. Esta parte é, invariavelmente, transcendida ao próprio
julgamento, como se fizesse parte da “coisa mesma”, da natureza, e não da falta
de percepção – e da imediatidade – daquele que julga. Mas, como se disse, o
juiz é também o julgado, mesmo que não queira e não saiba, e mesmo que se ache
isento. As mazelas que condena são também produtos da condenação – seja esta
implícita ou explícita. Condenação – em palavras que coadunam com o texto: adjetivação – não existe somente quando
a palavra é proferida. A ação – mãe da palavra e da linguagem, pois estas são ação – é executada também na omissão, e
em seu contrário: a não-ação. Delimitar
é negar. Agir de determinada maneira é negar todas as outras formas potenciais
possíveis. Não-agir não é “não-negar”: é negar tanto quanto. Não existe
não-agir. Deixar de fazer algo é fazer outro algo – ainda que pareça um
“não-fazer”. Como alusão, tal como diria J.-P. Sartre: estamos condenados a agir (a escolher, a “sermos livres”)[4].
Adjetivar
é necessidade intrínseca de toda interpretação. E a interpretação é
obrigatoriedade da existência. Mesmo quando não interpreta – e não julga – já
julga e interpreta. A falha cardeal de toda linguagem, reiterando, é não
conseguir abarcar o que se quer, a totalidade, por meio de si. Ela falha em seu
maior intento. Mas nem por isso é preciso (tampouco é possível) abrir mão da
tentativa. Através dessa mesma limitação é possível superar o que ficou vago e
indefinido, superar aquilo que pareceu antes impossível. É o pensar mediado, e
a existência que se entende também como objeto, que pode propor superar as
limitações autoimpostas. O ato de vida – a ação – deve ser refletido mais de uma
vez, para que a vida seja compreendida e agida. Ação sem pensamento refletido
frustra-se já antes do início[5]. Pensar
o julgamento, os adjetivos, a predicação, é pensar o mundo dialeticamente – por
uma particularidade que seja, já que o universal compõe e se manifesta no
particular. Para deixar “menos” abstrato, pode-se pensar a partir de exemplos
(mesmo que os exemplos sejam, tal como a linguagem, imperfeitos em seu desígnio).
Aqui nos limitaremos a alguns exemplos. O restante da reflexão – que cabe ao
leitor – pode ser feita com esforço e participação.[6]
1. Um
primeiro exemplo que, pelo menos aparentemente, se limita ao domínio lógico,
mas nem por isso deixa de ser instrutivo. – “Deus
é tão intenso que não cabe em definições.”[7] O que há de errado nisso?
Aparentemente, nada. Aliás, aparentemente é até uma bela expressão, bem
construída e que diz o que deveria
ser dito. Contudo, ela se trai. “Deus é
tão intenso”. A intensidade é uma definição. Ela exclui – para não estender
em demasia a reflexão sobre este exemplo – seu contrário: a não-intensidade. Até aí, nada de errado,
pois Deus não poderia ser “não-intenso”. Porém, se Deus é intenso ele não poderia ser Deus. Ser “algo” é ser
delimitado; ser algo é negar todos os outros “algos” que poderiam existir. Como
definição de Deus (único) ele é, na teologia monoteísta cristã, onipotente,
onisciente, onipresente; é a perfeição e a totalidade. Estes adjetivos, que
também se traem, contradizem o “intenso”. Pois sendo perfeição e totalidade ele
deveria abarcar tudo, inclusive a
“não-intensidade”. Se ele, Deus, não abarca tudo, então ele não é totalidade,
tampouco perfeição. A própria definição de intenso trai seu propósito sem mesmo
o saber. Se se unir as duas expressões – “Deus é tão intenso que não cabe em definições”, a
contradição fica mais clara, e dupla. Ele “não cabe em definições” ao passo que
é definido duas vezes: é intenso e também é
definido como aquele que não pode ser definido. No plano da lógica formal o
Proslogion de (Sto.) Anselmo dá conta
de resolver esta questão. Todavia, a lógica formal se vale das palavras
isoladas da construção do mundo, isenta-se completamente da imbricação entre
universal e particular, entre sociedade e linguagem. Ela se vale das palavras
por elas mesmas, independente da forma concreta das mediações. Ainda, esta
lógica não pressupõe o que não está explícito,
em palavras, no texto: o que lhe importa são as palavras, não as construções
das mesmas, não como elas chegaram até ali (como significado). É como se a
linguagem e as palavras fossem estanques, sem movimento. Não obstante, esta não
é a discussão na qual queremos entrar. O que nos interessa são a contradição
inerente e suas consequências. A linguagem trai a si mesma, trai seu melhor.
Ela falha (sempre) em seu intento. Quanto mais i-mediada, prescindindo das mediações, mais reversa será. Reversa
no sentido de reverter-se a si mesma, “dar um tiro no pé”. A adjetivação
volta-se contra o “adjetivador”. Apesar disso, este exemplo é simples, está
mais para mostrar a falha cardeal da lógica formal, ou de como a lógica formal
contradiz seu intento e “se safa” ao abdicar de todo conteúdo concreto (que é
contraditório por si só). Assim, adjetivar algo é relacioná-lo ao que se
excluiu, àquilo que “não se disse”. E não dizer de Deus é uma contradição com o
conceito: “Deus é”; qualquer
adjetivação trairia a intenção.
2. Muitas
expressões, que possuem até boa intenção, deturpam-se por conta de seus
desenvolvimentos. Chegam mesmo a “matar” pela raiz seu intento. Por exemplo: “A PM não tem o direito de matar... nós
somos trabalhadores!”. Uma defesa apaixonada é, ao mesmo tempo, o
julgamento de “todo o resto” como passível de morte. Defende-se a vida pressupondo
a morte. O adjetivo – ou predicação, ou complemento – volta a arma para quem
profere o dito. Mas não se pode esquecer que o predicado tem raízes sociais. A
“defesa” da vida dos trabalhadores se embasa numa sociedade do trabalho, na qual, suposta e
implicitamente, está dado que quem
trabalha é honesto e melhor. Historicamente, foi a passagem da Idade Média
à Modernidade que conferiu essa definição positiva – e tudo que viria junto a
ela – à ideia de “trabalho”[8].
Socialmente, esta ideia reforça e aprofunda a crise humana sob o capitalismo:
venerar o trabalho, como algo divino, natural e eterno, é ratificar esta
sociedade que depende do trabalho (da exploração do trabalho humano) e o
glorifica, pois ele mantém as coisas como
estão e gera riqueza e poder de dominação quase-total para uma parcela privilegiada da sociedade. A
adjetivação “somos trabalhadores”
traz consigo toda a complexidade da sociedade que venera o trabalho. As
contradições sociais determinam o dito, ao mesmo tempo em que o dito ratifica e
coloca em outro patamar de existência (mais elevado) as relações sociais exteriores aos indivíduos (exteriores e que os controlam). A boa
ação, que não permite a morte “aos trabalhadores”, admite e até a deseja para
os demais. Quando os “demais” são mortos pela PM, por exemplo, os
“trabalhadores” não se identificam de pronto com a situação, já que “nada lhes
diz respeito” e o “não-trabalho” traiu o morto. Ainda assim, à revelia, o
“outro” é sempre o mesmo: este outro ao
qual se deseja implícita e inconscientemente a morte também faz parte da classe que vive do trabalho. O adjetivo, por
fim, revela quem deve ser poupado e quem não deve; manifesta, além do mais, a
cisão da sociedade, a dissensão do humano consigo mesmo. Demonstra fortemente
que uma sociedade centrada no trabalho
determina, pela lógica social do trabalho e de suas consequências, todo o
restante das relações sociais. Este exemplo, incompleto em si mesmo, poderia
ser substituído e argumentado (ainda que de maneira mais ou menos diversa) por
qualquer outra designação particular da sociedade. O que importa, por fim, é
que o universal se manifesta no particular e tem sua existência através dele. A
linguagem, a adjetivação, é uma de suas manifestações que, por conseguinte,
torna visível o todo, pois é o todo e parte dele.
Qualquer
adjetivação atual – verificando-se o senso comum reinante – resulta em uma
aceitação da totalidade, ainda que pretensamente
negue uma particularidade (por exemplo: nega-se o machismo, como
particularidade, mas ratifica-se, em grande parte dos casos, a estrutura que o dá suporte e o engendra).
E como se pauta na particularidade, não é simplesmente o “adjetivo concreto”
que deve ser levado em consideração. O mesmo adjetivo – por ex.: “corrupto” – é aplicado dependendo de um
referencial externo. Descontextualizado em relação ao significado e ao todo
social, o adjetivo é relativizado conforme as preferências pessoais e
inclinações sensíveis, emocionais e etc., daquele que referencia. Não é a
corrupção que é ruim, mas o sujeito determinado
que corrompe; não é a corrupção que é ruim, mas aquilo que foi eleito como tal
(de modo estanque). Por um lado, a historiografia social do Brasil pode dar um
viés explicativo para isso: cordialidade
– no sentido conferido na década de 1940 por Sérgio Buarque de Holanda[9].
Por outro, o adjetivo trai o “militante” da linguagem e da retidão moral ao se aliar
à relativização. A totalidade e suas contradições, que se mostram com força na
linguagem, não são, todavia, levadas em consideração por aquele que se vale dos
adjetivos concretos. Pouco importa o conteúdo
abstrato – “abstrato” no sentido de “geral” e relacionado à totalidade –
que permeia o dito. Contudo, contraditoriamente, é este conteúdo abstrato que
se volta ao sujeito e o suga para seu vórtice, esfacelando-o.
A
linguagem é a expressão concreta das contradições da sociedade. Ela revela as
relações sociais vigentes, ainda que de maneira invertida, ideológica. Mas não
só: como a linguagem é pensamento e
ação – tanto concretos quanto abstratos – ela própria determina o todo social
ao ser determinada por ele. Mesmo na imediatidade aparente do ato, ela traz à
tona as mediações. Os indivíduos, queiram ou não, são produtos concretos de uma
dominação abstrata da totalidade que se apresenta toda em cada particularidade. Mesmo que ela traia a intenção, pois
a adjetivação mostra as contradições e dá um golpe na moralidade, politicamente a linguagem pode ir até as últimas consequências, e em suas limitações
manifestar o falso todo: a totalidade
abstraída dos indivíduos que se volta contra eles, domina-os, podando a experiência – que poderia se apropriar
de tais contradições e, quiçá, superá-las – e substituindo-a por uma formação reificada da sociedade e dos
indivíduos, uma formação substitutiva que possui o capital e suas designações
totalitárias na base do processo de formação cultural dos indivíduos, da
sociabilidade e da sociedade[10]. Semiformado,
coisificado e deixando de ser humano,
o indivíduo não consegue absorver suas próprias ações, tampouco a sociedade.
Quanto mais adjetiva – sempre em direção ao outro,
seja quem for este “outro” –, mais envolto na produção da barbárie que tanto
condena moralmente: condenação moral e
ratificação política são irmãs
gêmeas.
A
adjetivação revela, portanto, as contradições da sociedade e a falta de
liberdade dos indivíduos. Uma sociedade que somente sobrevive podando a
liberdade e a substituindo por um simulacro, cria sujeitos estanques que se
manifestam pela imediatidade da ação. Quanto mais imediatos e radicais se
tornam os indivíduos, “cobrando”
retidão de um outro qualquer (seja indivíduo ou algo abstrato), menos liberdade
e autonomia terão. Mais fincam os pés na lama da dominação que retroage sobre
eles na mesma medida em que tentam ressuscitar o morto com a pá que cavam a
cova. A contradição da totalidade somente se revela nos indivíduos quando a totalidade
é também os indivíduos, as
particularidades. Os julgamentos morais são, em suma, uma imediata frustração
inconsciente do indivíduo consigo mesmo, e sua forma de “sublimação” é o ataque mediado a si próprio[11].
[1] Karl Marx, “Teses
sobre Feuerbach”. Seria interessante, também, ver o texto de Ernest Bloch, Princípio Esperança, vol. I, no qual o
autor faz uma belíssima interpretação sobre essas Teses de Marx.
[2] Adjetivo, aqui, não se refere somente a qualificação e definição.
Isto é: não se limita, somente, aos adjetivos
como forma de atribuir uma qualidade boa ou má a algo. Adjetivação é predicação. Sem predicação qualificativa nada existe
para o sujeito social, nem sequer ele mesmo e seu mundo. Como exemplo pode-se
dizer do trabalho: o trabalho cria algo a partir da relação do sujeito com o
objeto. No entanto, em primeiro lugar, conformar
a natureza, mesmo que seja em um “trabalho do pensamento” (como quando se olha
para nuvens e se vê “formas” definidas), é limitar
a natureza, predicá-la: isto pode
ser um galho de árvore ou uma
alavanca. Em ambos os casos depende-se da definição da coisa. Em segundo lugar,
ao definir a coisa o sujeito define a si mesmo, pois delimita seu campo do ser. Sem delimitar as coisas não se
delimita a si próprio, e não há como ser Ser,
tampouco haveria como se diferenciar da natureza (quanto a isso, seria
interessante o texto de Walter Benjamin: “Sobre a linguagem em geral e a
linguagem do homem”). Em terceiro, o sujeito, em sociedade, não delimita as
coisas sozinho e, portanto, não delimita a si mesmo em completa autonomia
(Aliás, mais de uma vez Marx aludiu a isso remetendo à Robinson Crusoé, de D.
Defoe. O que Marx dizia é que mesmo isolado na ilha, Crusoé era um ser social –
isto é, independente de seu “isolamento” da sociedade, levava-a – a sociedade –
em si: as determinações sociais estavam em Crusoé). Como ser social, ele é
determinado a determinar. Não cabe a pergunta se a determinação veio primeiro
que o determinante, pois não é possível pensar um sujeito primordial fora da
sociedade que criaria a sociedade, nem, por outro lado, pensar uma sociedade
sem sujeitos que a crie. “Definir é negar”, dizia G. W. F. Hegel. Ao se dar uma
“determinação positiva para algo” (por ex.: este algo é X), nega-se todas as
outras potencialidades (possibilidades que poderiam
vir a ser) contidas no objeto (ou no sujeito). Se se tomar F. Nietzsche, em
seu Verdade e mentira no sentido
extramoral, o problema fica ainda maior: ao “delimitar” algo a partir de
uma particularidade deste algo – como se tal particularidade fosse idêntica em
todos os elementos semelhantes (o formato de uma folha, por exemplo) –,
exclui-se todas as diferenças entres os elementos daquele “algo” e, ainda, toma
um aspecto particular (algumas vezes irrisório) e o torna “o todo”, como se ele
fosse a própria coisa. Delimitar, neste caso, é falsear: cria-se a imagem de uma coisa primordial da qual todas as
coisas que existem são dependentes; isto é, cria-se uma definição
transcendente, que não seria criada mas criadora da coisa, e dos humanos que se
relacionam com a coisa, por consequência (tratei mais detidamente disto aqui: A primazia do objeto). Todavia, sem a negação determinada de tudo
que existe – sem a delimitação, sem determinação e negação do restante – nada existiria.
É nesse processo que a História é
possível. É, igualmente, nela que o sujeito é possível – e também o objeto. É
aí que reside a autonomia e a liberdade: em tomar as rédeas dentro de uma
situação na qual não se escolheu estar mas se está (quanto a isto, seria bom o
livro Saint Genet, de Jean-Paul
Sartre). O sujeito, que não tem primazia sobre o objeto pois ele é também um
objeto, ainda que seja um “objeto privilegiado” que também é sujeito, tem a
opção histórica de, mesmo dentro das determinações sociais e históricas
inelimináveis, ser protagonista ou ser objeto de valor mais baixo entre objetos
[coisa que o capitalismo faz com os indivíduos quando o capital – uma coisa, totalidade
social reificada – passa a ditar as regras sociais ao tomar do controle dos
indivíduos a decisão acerca da síntese social (as relações sociais) e
recolocá-la ao seu bel-prazer. Quanto a isto, seria interessante o texto “O
trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é
falso”, de Oskar Negt e Alexander Kluge]. Quanto à situação do sujeito também
ser objeto, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno: “Sobre sujeito e
objeto”. Por fim, o sujeito, ser de linguagem, necessita interpretar, pois é
por meio da interpretação ativa que ele existe e define-se no mundo. Não há
como não interpretar. E por interpretação não se deve compreender a mera opinião
passiva que exclui o sujeito do movimento total da sociedade e o torna, mesmo
quando não quer, um “moralista”. Interpretar é ser dialético. Ser dialético é
se entender como mediado além de ser mediador. O contrário disso seria o “ser
imediato” – e falso – que pretensamente existe e se entroniza fora do mundo
para julgá-lo conforme sua “sublime” perfeição. Quanto a isto, seria
interessante o texto de Theodor W. Adorno: “O Ensaio como forma”; e também o
terceiro manuscrito de Karl Marx nos Manuscritos
econômico-filosóficos, no qual o filósofo faz uma crítica aos “hegelianos
de esquerda” e ao idealismo acrítico, dizendo, entre outras coisas, que eles se
postam fora do mundo, acham-se “pensando”
o mundo perfeito e querem, por fim, impor suas ideias ao mundo imperfeito.
O que vale, aqui, é que se colocar fora do mundo e pensar sua perfeição fora do
movimento histórico da realidade para depois julgar o mundo como um equívoco,
não é lá das coisas mais sensatas e críticas: pelo contrário, é ideológico e
produto desta sociedade, na mesma medida em que são as mediações sociais coisificadas – isto é, tomadas do indivíduo – que
determinam e possibilitam que o indivíduo se poste “fora” do mundo e se ponha a julgá-lo. A possibilidade de se
compreender livre de qualquer determinação – imediato –, somente é possível numa situação em que a não-liberdade
radical aparece como liberdade total.
[3] Ainda assim, este
exemplo é imperfeito. Trata-se de pensar algo que seja, em si mesmo,
contraditório. Portanto: indivíduo “X” julga algo (digamos, o machismo) e
aponta para algum “julgado” (outro indivíduo que perpetrou diretamente o ato).
O que aquele indivíduo “X” não percebe é que, primeiro, o indivíduo “Y” (aquele
que cometeu a infração) revela, em seu ato aparentemente imediato, as
contradições e determinações sociais; expõe, ainda mais, as fissuras da sociedade
e sua violência intrínseca; segundo, não compreende que ele, “X”, é um dos polos
que possibilita a “ação” de “Y”: ele é também mediado e mediador da violência
das relações sociais. Quando esta violência “surge” em algum canto traz consigo
também o indivíduo “X” como partícipe da totalidade social. Interessante seria,
mas não é tão simples dada a ideologia dominante “postmodern” , apreender a totalidade social (as relações “estruturais”
e “estruturantes” da sociedade e dos indivíduos) quando esta se manifestasse no
“particular” (em um fato ou indivíduo “isolado”). Deixando mais simples: o
machismo não é simplesmente “culpa” do machista (ainda que este deva responder
sumamente por seu ato, pois, por mais determinado que seja, possui opções, um
resquício de autonomia); ele é produto de uma sociedade que, à revelia do que pensam através da ideologia (“reificadamente”),
coloca seu ponto de inflexão em seu contrário: no feminino. A ideia de feminino, por exemplo, somente existe na
medida em que é produto histórico-determinado de uma situação que depende de
tal “afirmação” para fazer valer sua dominação: o machismo e a ideia de
feminino, tal como colocada pela ideologia e mesmo sendo afirmada em sua
radicalidade contestadora, são faces que se ligam e necessitam se superar
mutuamente. Algo semelhante ocorre com o racismo: afirmar o “preto”, tentando
firmar com todas as forças uma “identidade”, pode ser, por essa interpretação, afirmar
a situação que coloca o “ser preto” como subalterno e subjugado: afirmar a identidade do “preto” é ratificar
a situação social que engendrou (e engendra) esta determinação definidora.
Superar o racismo, por essa via, é superar a situação na qual o racismo é
condição basilar de sustentação social. Por fim, para deixar claro o que aqui
se quer dizer: as “mediações” sociais fazem com que uma única coisa possua
contradição em si mesma, seja ela mesma produto e produtora (ainda que talvez
não diretamente) da situação na qual está envolvida. Um último exemplo que
destoa dos anteriores: o estuprador – em sentido lato – é o mesmo que é
bombardeado por determinações (propagandas, formas de ser, consumo, formas de pensar
e etc..) que exigem gozo em todos os
momentos, com todas as coisas, e que, ainda que exigindo gozo (prazer
irrestrito, sem limites) em tudo, poda a capacidade do indivíduo de alcançar
tal gozo (pois este gozo é falso em si mesmo) e está, além de tudo,
fundamentada em tabus que na
tentativa de interditar o gozo (ou o
ato que busca o prazer proibido), incentiva-o.
O estuprador é produto de uma neurose social e coletiva profunda, não (tão
somente) produto de si mesmo.
[4] Seriam interessantes
os livros de Jean-Paul Sartre, tanto filosóficos quanto literários. Vou me
restringir a indicar alguns: O ser e o
nada (filosófico), A náusea e Entre quatro paredes (ambos literários).
[5] Quanto a isto, seria
interessante o texto “Notas marginais sobre teoria e práxis”, de T. W. Adorno.
[6] No texto “O Ensaio
como forma”, T. W. Adorno diz que a interpretação deve ser ativa, que o leitor
deve participar do texto e incidir sobre ele, interpretá-lo. Um texto, além
disso, é quando o leitor o
interpreta. Não há como escapar a isso.
[7] Esta frase, “adesivada”
em vidros de carros, lembra o Proslogion,
ou Argumento ontológico sobre a
existência de Deus, de Anselmo de Cantuária.
[8] Quanto a isto, seriam
interessantes os seguintes livros: A
ética protestante e o espírito do capitalismo, clássico de Max Weber; e, História da riqueza do homem, de Leo
Huberman.
[9] Seria interessante o
livro Raízes do Brasil, clássico da
historiografia crítica brasileira, de Sérgio Buarque de Holanda. Ao mesmo
tempo, seria de suma importância o excelente artigo de Francisco de Oliveira:
“Jeitinho e jeitão”, que pode ser encontrado aqui: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-73/tribuna-livre-da-luta-de-classes/jeitinho-e-jeitao.
[10] Quanto a isso, seria
interessante o texto de Theodor W. Adorno “Teoria da semiformação” (há duas traduções deste texto: a primeira, traduzida como “Teoria da Semicultura”, que pode ser econtrado na web, foi publicada em 1996; a mais recente, 2010, Halbbildung foi traduzido por “semiformação”, “semiformação cultural”. Esta se encontra na coletânea “Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa”, organizada por Bruno Pucci, Antônio Zuin e Luiz Calmon Nabuco Lastória, publicada pela Autores Associados). Além deste, os seguintes textos do
professor Wolfgang Leo Maar: “Materialismo e primado
do objeto em Adorno”; “Adorno,
semiformação e educação”; e, “Lukács, Adorno e o problema da formação”, todos
disponíveis na web.
[11] O indivíduo isolado,
portanto, não possui (quase) nenhum poder. “Atacar” um indivíduo racista, por exemplo, pode até ser satisfatório para o
ego e uma forma de lutar contra o racismo. Porém, eliminar o indivíduo racista
não toca no problema central: o racismo.
O racismo não é uma soma de racistas, como se a cada racista que se vai (é
preso, processado, muda de ideia e etc.) o racismo diminuísse. Ele, como uma
particularidade social, é também expressão da estrutura universal da sociedade.
Mesmo o não-racista pode ser racista na medida em que se está envolto numa
situação complexa da qual é impossível sair sozinho, tampouco sair ileso. Usar
a lógica do pensamento pós-moderno do
senso comum, que se vale de uma estrutura fragmentada, pois o pensamento é
fragmentado e não consegue conceber nada além daquilo que os olhos podem ver, ...usar
esta lógica, portanto, é se enveredar por uma via que depõe também, e talvez com mais força, contra a testemunha. Valer-se
desta lógica pode levar ao absurdo de ter de ratificar inclusive aquilo que se condena.
Como é possível, por exemplo, alguém que é contra e luta contra o racismo, o
machismo e etc., mas acha que o racismo, o machismo e etc., são unicamente produtos do indivíduo
racista, machista e etc., (como é possível então) que este que pensa dessa
maneira possa contra-argumentar em relação à redução da maioridade penal, por
exemplo? Ora, a lógica é a mesma: para o “outro”, o problema é o indivíduo
concreto, e isolado, que é criminoso. Nada mais justo, então, – pela mesmíssima lógica – que condená-lo.
Veja-se, por exemplo, a traição adjetivadora das seguintes frases, pressupondo
esta “lógica do absurdo”: “Quais as causas do estupro?” – pergunta-se. “A única causa é o estuprador.” Ou, outro
exemplo: “Quais as causas do machismo?” – Ora, é “óbvio” (para os que pensam
assim): “a causa são os machistas!” (os mais radicais dizem: “são os homens!”).
Não levar a totalidade em consideração, a estrutura e as determinações sociais
totais, é se enredar em contradições insolúveis e, como é fácil perceber, é dar
um tiro certeiro em si mesmo – agora não mais no pé, mas no coração! As
relações sociais determinadas, e junto a elas os indivíduos sociais
determinados por tais relações à revelia de si mesmos, devem ser consideradas.
Caso contrário, a luta pode ser em vão, mesmo que pareça moralmente satisfatória. Um adendo: a partir dessa lógica,
impõe-se, por dentro, que os pretos devem lutar e discursar contra o racismo;
que as mulheres devem lutar e discursar contra o machismo e etc.. Um dos
problemas é que “lutar e discursar” significa, aqui, “lutar e discursar exatamente
igual àqueles que impõem isso”, isto é, qualquer discurso que “varie” da forma
convencionalmente aceita é rechaçado de pronto, imediatamente. As “revelações” individuais quanto a estes “fatos
isolados” são (leia-se: podem ser; nem sempre são assim) da melhor espécie:
“você não é negro (ou não é “tão negro quanto esperávamos que fosse”) para
falar sobre racismo”; “você não é mulher, não possui o direito (inato, deve
ser) de falar acerca do machismo”; e etc..
Subsolo!
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