sexta-feira, 16 de julho de 2010

"A dúvida de Cézanne" [fragmento de um pequeno estudo]

Paul Cézanne: século XIX. Teve amizade com o gigante Zola (Émile Zola). Teve, além disso, uma vida cheia de atribulações; sua obra não foi compreendida em sua época; ele mesmo não foi compreendido. Entretanto, sua pintura supera até tais fatos. 
Bem, a intenção aqui não é ficar falando da vida de Cézanne. Antes, pretende-se colocar um fragmento de interpretação acerca do texto de Merleau-Ponty sobre a obra daquele. Extraído de um texto denso, complicado, mas aprazível, escrito por Merleau-Ponty... Aqui, a pequena tentativa de compreender os dois: um artista fabuloso e um pensador instigante.  

Bem, sem demorar mais, eis algumas obras de Cézanne; o texto, que fica aberto às críticas e etc.; e a satisfação de ter podido ter contato, em algum momento de minha singela existência, com tudo isso.

Salve do Subsolo Urbano!

Auto-retrato com paleta [1885-1887]



A casa do enforcado [La maison du pendu], 1873

Madame Cezanne numa cadeira amarelo (1888-90), Cézanne. 


Flores, 1900

Mount Saint-Victoire 1885


MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne


Mount Saint-Victoire, 1904-06

“O sentido de sua obra não pode ser determinado por sua vida.”

(MERLEAU-PONTY, A Dúvida de Cézanne, p. 114).


Diferentemente dos impressionistas, que utilizavam as sete cores do prisma, Cézanne usava dezoito. No impressionismo, diz Merleau-Ponty, queria-se restituir a maneira como os objetos atingem a visão e atacam os sentidos: representavam-no, por assim dizer, na sua imediaticidade. Excluíam cores como negro, terra e ocre, e utilizavam apenas aquelas sete cores. Era preciso um jogo de cores para que em uma tela, numa sala de luz tênue, representasse-se, inclusive, a sensação de iluminação do sol. Além disso, não bastava aos impressionistas a cor e o tom local, singular de cada objeto isoladamente. Era preciso “dar conta dos fenômenos de contraste que na natureza modificam as cores locais.” (p. 115). Não obstante, cada cor que a visão capta da natureza dá também a visão da cor complementar e, estas, se exaltam: é preciso dar conta delas. Merleau-Ponty ressalta: “o próprio tom local é decomposto pelos impressionistas”. (Idem). Assim, a tela, justapondo-se as cores ao invés de misturá-las, mesmo não sendo comparável ponto por ponto à natureza, “restabelecia pela ação das partes umas sobre as outras, uma verdade geral da impressão.” (Idem).

Entretanto, em Cézanne isso é diferenciado. Ele queria fazer do impressionismo algo sólido, como que a própria restituição da natureza e não apenas uma impressão. Segundo Merleau-Ponty:

"O uso das cores quentes e do negro mostra que Cézanne quer representar o objeto, reencontrá-lo atrás da atmosfera. Do mesmo modo, renuncia à divisão do tom e a substitui pelas misturas graduadas, por um desenrolar de matizes cromáticos sobre o objeto, pela modulação colorida que segue à forma à luz recebida. A supressão dos contornos precisos em certos casos, a prioridade da cor sobre o desenho não terão evidentemente o mesmo sentido em Cézanne e no impressionismo. O objeto não fica mais coberto de reflexos, perdido em seu intercâmbio com o ar e com os outros objetos, é como que iluminado surdamente do interior, emana a luz e disso resulta uma impressão de solidez e materialidade. Cézanne, outrossim, não renuncia a fazer vibrar as cores quentes, obtém esta sensação colorante pelo emprego do azul." (p.115).

Cézanne “não acha que deve escolher entre a sensação e o pensamento, assim como entre caos e ordem.” (p. 116). Para ele, a pintura deve captar a matéria ao tomar forma, em sua maneira fugaz de aparecer, como a ordem nascendo por uma organização espontânea. Dessa maneira, a linha divisória para Cézanne estava entre essa ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das idéias e das ciências. Com isso, os quadros deveriam retratar a impressão da natureza à sua origem. “(...) O gênio de Cézanne consiste em fazer com que as deformações de perspectivas, pela disposição de conjunto do quadro, deixem de ser visíveis por si mesmas na visão global e contribuam apenas, como ocorre na visão natural, para dar a impressão de uma ordem nascente, de um objeto que surge a se aglomerar sob o olhar.” (p. 117).

No quadro que nos propomos a analisar [Mount Saint-Victoire, 1904-06], o azul possui grande destaque, e não por acaso. Cézanne utilizava o azul para, como diz Merleau-Ponty, fazer vibrar as cores quentes e, ainda, traçando vários contornos dessa cor, faz parecer - o objeto pintado - a visão natural, a percepção nascendo no olhar à natureza:

"Não marcar nenhum contorno seria tirar a identidade dos objetos. Marcar apenas um seria sacrificar a profundidade, isto é, a dimensão que nos dá a coisa, não estirada diante de nós, mas repleta de reservas, realidade inesgotável. É por isso que Cézanne vai seguir por uma modulação colorida a intumescência do objeto e marcará em azuis vários contornos. O olhar dançando de um a outro capta um contorno nascendo entre todos eles como na percepção." (p. 117).

Cézanne dizia que para exprimir o mundo a composição de cores deve trazer esse “Todo indivisível”. Como na percepção primordial, não há distinção entre os sentidos, ou, ao menos, não há uma distinção que seja relevante. “A coisa vivida não é reencontrada ou construída a partir dos dados sentidos, mas de pronto se oferece como o centro de onde se irradiam.” (p. 118). Ele queria captar a natureza, a paisagem em sua totalidade, em sua plenitude absoluta.

Na obra de Cézanne, há essa renuncia à divisão do tom e a substituição pelas misturas graduadas, por um desenrolar de matizes cromáticos sobre o objeto, pela modulação colorida que segue à forma, à luz recebida. A utilização do negro e do azul, não definindo por completo o ‘fim’ de um objeto e o ‘começo’ de outro, faz com tenhamos a sensação de uma totalidade da percepção. Contudo, há profundidade, definição pelos vários contornos sem uma divisão estanque, tão pouco uma forma altamente contrastante entre si. A restituição daquela percepção primordial que dizia o artista é dada através da utilização das cores de forma misturada, dando-nos, reiterando, a sensação de uma totalidade captada pelos sentidos, de maneira quase que palpável e com uma vibração como que natural das cores pelo emprego do azul.


Referência

MERLEAU-PONTY, Maurice. "A dúvida de Cézanne". In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

<$BlogArchiveName$>