quarta-feira, 29 de junho de 2011

Bossa Movement

Falar a respeito de Bossa Nova (aliás, sobre música brasileira em geral) é uma tarefa difícil, suada e extensa. Não por incapacidade daquele que discursa acerca do tema. Antes, pela enorme amplitude deste. Ninguém, talvez - muito embora haja trabalhos meritosos -, consiga abarcar a totalidade. O que se faz - e é o que tento há algum tempo propor - é desvendar o núcleo dessa totalidade. (*Estranhamente a linguagem filosófica é a que melhor expressa o que quero dizer, e de forma sucinta. Algo a se pensar*). A idéia, aqui, é mostrar dois conceitos convergentes de Bossa Nova. O primeiro, nos anos de surgimento, de 1959 à 1963 mais ou menos, vemos um tipo de música permeada pelo balanço do violão e do piano (vide Os Cariocas, ou mesmo os discos de Walter Santos, entre outros, por exemplo), um balanço suave. Na outra, nos anos posteriores à 1963, percebe-se uma renovada e sincopada rítmica: são os anos em que o SambaJazz toma conta da cena (cabe lembrar que O Som, do Meirelles, surge em 1963). 

Toda a tônica da Bossa Nova - e também do SambaJazz - tem como pano de fundo o Jazz: a música de Carlos Lyra, Influência do Jazz [1963], que abre o set, traz esse consenso. A proposta de dois conceitos convergentes, de fato, não existe. Não tenho conhecimento de ninguém que tenha feito tal proposta. Certamente já foi observada na audição dos mais entusiastas. E, ainda, não se trata de uma ruptura. Antes, de uma continuidade, de um movimento dialético, uma sequência histórica. Mesmo assim, é nítido o SambaJazz (vide, por exemplo, Menino das Laranjas, do disco de 1964 da Elis, no qual os instrumentistas, vindos ao primeiro plano da cena, são Edison Machado, Sérgio Barroso e Dom Salvador, que formariam, no ano seguinte, o fantástico Rio 65 Trio) nos discos posteriores ao ano supracitado. Não há como encontrar um disco que seja de uma Bossa mais "SambaJazz" e outro do "Barquinho, o Mar e o Violão". Não é disso que aqui se fala, que fique claro. Os discos mesclam os dois em um, já que, de fato, ambos são apenas um. 

Bem, para não estender em demasia, cabe ressaltar mais dois pontos particulares. O nome que atribuí à série que começa com esse disco, principalmente o segundo nome "Movement", vem do último disco autoral da fantástica A Tribe Called Quest [The Love Movement, 1998]. Por dois motivos: por conta do próprio significado da palavra-expressão; e pelo fato de que foi por meio da A Tribe que me voltei para o mundo-sem-fim da música, principalmente o Jazz e todas suas variações e ramificações. Em segundo plano, ressalto que a pesquisa é profunda (talvez infinita, já que ainda não vi o fundo desse buraco no qual me meti). A Bossa é uma das expressões que influenciaram definitivamente a musicalidade universal. Os instrumentistas ali surgidos formam o divisor de águas da música Brazuca. Mesmo tendo eu nascido mais de duas décadas após o auge do Movement Bossa Nova, a paixão por ela vem por meio da paixão pelo Samba e de minha admiração e extasiamento pelo Jazz. 


 Bossa Movement I


















 1. Influência do Jazz Carlos Lyra [1963]
 2. Vem - Marcos Valle [1965]
 3. Ponto de Vista Johnny Alf & Jorge Nery [1968]
 4. Menino das Laranjas - Elis Regina [1964]
 5. Samba do Carioca - Sylvio Cezar (part. Meirelles) [1964]
 6. Mestiço Wilson Simonal [1965]
 7. Clichê - Leny Andrade [1965]
 8. Sem SaídaCarlos Lyra [1963]
 9. Rapaz de Bem - Wilson Simonal [1964]
10. Não Me Deixe Só - Jorge Nery [1968]
11. RioOs Cariocas [1962]
12. Samba de VerãoMarcos Valle [1965]
13. IpanemaRegininha [1968]
14. AmanhãWalter Santos [1965]
15. A RespostaLeny Andrade [1965]
16. Faz-de-contaMagda [1968]
17. Lobo BoboWilson Simonal [1964]
18. Samba Para PedrinhoWalter Santos [1965]
19. Pra que Chorar - Os Cariocas [1962]
20. Samba de OrlyChico Buarque [1971]

Bossa Movement [ouve aí!]

Salve do Subsolo Urbano!

sexta-feira, 24 de junho de 2011

CRÍTICA ESTÉTICA

"Arte urbana como os traços de Jean Michel Basquiat" - Parteum


APONTAMENTOS PARA UMA CRÍTICA ESTÉTICA SOB O CAPITALISMO AVANÇADO: Massificação, Tempo e Técnica*

Vinicius dos Santos Xavier**

O objetivo da presente comunicação é refletir acerca dos aspectos que permeiam a realização da arte na sociedade moderna. Neste sentido, faz-se necessário entender o movimento efetivo de tal formação social e as configurações dos indivíduos que a compõe. Para apreender e possibilitar uma crítica estética não-redutora ou ideológica é de primeira importância compreender a constituição do Homem inserido em tal contexto. Dessa forma, é imprescindível o empreendimento crítico que abarque a totalidade social e demonstre os aspectos principais de efetivação de seus momentos, visando entender os indivíduos e suas relações enquanto produtores e produtos de um momento e um movimento histórico específico. Desse modo, permite-se perceber as dificuldades e as contradições relacionadas ao estético no âmbito da sociedade contemporânea. Espera-se que, assim, se possa intentar uma crítica estética à altura da atualidade.

Dominação Abstrata: Tempo, Massificação e Técnica

Para se apreender as relações existentes no capitalismo avançado (ou tardio) são necessárias reconsiderações acerca do que Marx (1993) elucida em seus Grundrisse. Em primeiro plano, surge o trabalho, em sua forma abstrata – isto é, desprovido de conteúdo e autonomia –, e as relações sociais componentes dessa sociedade. Tal esfera compõe não somente a produção de necessidades materiais, situando-se em âmbito estritamente econômico. Antes, as relações existentes na moderna formação social trazem consigo a peculiaridade histórica na qual os objetos, humanizados e desligados do humano, tomam a posição de sujeito. A produção social, material, espiritual e simbólica, em um movimento de inversão, coordena a si própria e torna os indivíduos e suas relações apenas um de seus momentos. Não se trata, simplesmente, de objetos prontos e acabados que se desligam dos produtores humanos e, com isso, passam a dominar tais relações – fetiche da mercadoria. Anterior a isso, a produção capitalista – vide, produção inclusive dos indivíduos enquanto tais e suas relações – torna o trabalho humano algo supérfluo; o emprego do tempo de trabalho direto só se faz necessário para a criação e recriação, valorização e revalorização, tautológica de capital. Ele é um momento necessário da constituição do capital. O trabalho, neste domínio, é estranho a si por conta de que aquilo que supostamente perde no movimento de criação do fetiche, não é sua propriedade, mas um atributo do próprio capital emprestado de fora ao trabalho. Assim sendo, a verdadeira atividade produtiva nesta sociedade é aquela que produz capital e um tipo de riqueza historicamente específica. Por conseguinte, é o capital o grande demiurgo da modernidade: ele determina e domina a produção e as relações sociais a partir de seu automovimento. É neste âmbito que o trabalho é tautológico, presta-se simplesmente a repor a si mesmo na produção com fim em si do capital.
Neste domínio, engendra-se aquilo que Marx chama de subsunção do trabalho ao capital. Este existe, aparentemente, por conta do trabalho; em contrapartida, é o capital que determina aquele ao por as qualidades que em aparência eram de sua essência no próprio trabalho, mas que, inversamente, são propriedades inerentes do capital. O trabalho é tornado um momento de efetivação da produção capitalista e não o seu agente principal. Suas características são expropriadas pela produção e realocadas de modo transmutado. Dessa maneira, na produção social capitalista, o controle das capacidades e potencialidades está sob o domínio régio do movimento da produção. Isto indica que o trabalho é estranho não só aos produtos que cria e são de propriedade alheia, mas que a capacidade mesma que o trabalho supostamente possui de criação não é sua. Ele é esvaziado de conteúdo; torna-se uma determinação do processo autônomo do automovimento da produção. Neste âmbito, todo trabalho inserido no contexto da produção capitalista moderna é, por definição, estranhado.
Assim entendido, como fundamento da mediação social no capitalismo, o trabalho abstrato institui, portanto, tomando para si, a síntese da sociedade: a relação social. Segundo Anselm Jappe (2006, p. 119): “somente no capitalismo o trabalho enquanto tal se converteu em princípio de síntese da sociedade. Só aqui a transformação tautológica do trabalho vivo em trabalho morto se torna o princípio organizador de todas as atividades, de tal maneira que estas não existem senão em função dela.” Logo, a mediação entre os Homens se dá por meio do trabalho objetivado criado pelo processo de produção.
Gera-se, neste sentido, uma dominação abstrata: a produção autônoma determina seus momentos de efetivação, subsume o trabalho, consequentemente os indivíduos e tudo o mais que os constitui, para si. É, portanto, o fetiche da produção que determina e domina a sociedade capitalista e, ainda, toma as relações sociais como síntese de si. Isso lhe é conferido por uma peculiaridade histórica, na qual as relações sociais se automatizam perante os atores humanos. Concomitante as ampliação e amplitude de possibilidades atribuídas aos indivíduos surge a redução dos mesmos à mera funcionalidade dessa formação social, tornando-lhes momentos da efetivação da vontade abstrata de uma coisa. Esta coisa – a própria sociedade, produto de um sujeito abstrato e inconsciente – autonomiza-se no ato mesmo de sua criação: é no momento da produção da vida material e espiritual modernas, e, consequentemente, de todas as suas esferas particulares, que ocorre o desligamento entre sujeito e objeto, e a reconciliação reificada (subsunção), na qual os indivíduos são tornados os objetos do capital enquanto sujeito dominante.
Assim sendo, junto à racionalização do mundo moderno ocorre a racionalização da vida e suas esferas. Com as determinações sendo posse abstraída pelas relações engendradas pelo capital em seu automovimento, as relações sociais, a vida cotidiana e a formação da autonomia dos indivíduos são momentos dessa racionalidade. O que está em jogo, neste sentido, são as máximas eficiência e competência relacionadas à adaptação individual ao movimento da sociedade. Todo esse processo tende a se naturalizar perante o indivíduo fragmentado e reificado por excelência. As formas e conteúdos autônomos de pensamento e ação frente ao poder abstrato tornam-se formas e conteúdos adaptativos à técnica racionalizada. Como a sociedade aparece como um dado objetivo, desligado dos poderes individuais e combinados dos Homens, assim como afirmam Oskar Negt & Alexander Kluge (1999), a unidimensionalidade do pensamento e da ação, como diz Marcuse (1979), transforma-se numa fatalidade.
Tal fatalidade é indissociável ao processo de dominação abstrata. Esta não se trata, simplesmente, de algo externo aos indivíduos, formada por uma falsa consciência. Anterior a isso, carece-se levar em conta dois pontos fundamentais que devem ser somados à dominação vigente na sociedade altamente racionalizada: democratização e massificação, e tempo. Segundo Ortega y Gasset (2007), a modernidade traz consigo a democratização de todas as esferas da vida; confere possibilidade de acesso de todos a tudo. Esse processo, em última instância, faz com que os indivíduos sintam-se apropriados a decidir sozinhos os rumos de suas próprias vidas. A falsa autonomia aí intrínseca, além disso, fecha o indivíduo em si mesmo, já que, supostamente, não depende de mais nada ou ninguém no que tange às esferas particularizadas de sua própria vida. Isso leva ao que o filósofo espanhol chama, ironicamente, de “riqueza de espírito”[1]: o indivíduo, fechado em si mesmo, não vê a necessidade do outro na constituição de si[2]. Neste aspecto, o indivíduo massificado é aquele que internaliza, não por deliberação ou vontade autônomas, as determinações da racionalidade abstrata: a constituição da individualidade também se abstrai de seu poder.
Além disso, a organização da sociedade capitalista, já que subsume a relação social, toma para si, também, as determinações temporais. Aqui se dá o embate fundamental da formação social contemporânea: Cronos versus Cairós. O tempo que é, por definição, necessidade para a formação da individualidade[3], é submetido ao tempo cronologicamente abstraído pelo capital da produção da vida material e espiritual. Neste sentido, a experiência da qual fala Benjamin (1994), que fomentaria a sociabilidade, a formação do indivíduo social e a própria autonomia, é rompida pela efemeridade e fugacidade das coisas e fatos. A experiência (Erfahrung) é contrária à lógica vigente. Está ligada à Cairós, assim como a contemplação, a criação e a fruição estéticas estão.
Tudo perece antes mesmo de se concretizar. Está fadado a envelhecer no ato mesmo em que é produzido. Deve seguir a velocidade da produção social em todas as determinações. Tudo que existe, assim como diz Milton Santos (2008; 2009), está posto no agora. Mas tal “agora”, na sociedade moderna, não é o mesmo tratado por Agostinho, o qual comporta o passado enquanto memória e o futuro enquanto projeção, todos no presente. Esse “agora” moderno é o instante e o instantâneo – é aquilo que é, positivamente – desprovido de ligação histórica e de projeções; em suma, desprovido de realidade, senão aquela conferida pelo sujeito social abstrato. O tempo é o da produtividade e da competitividade do capital; é o tempo-velocidade, o tempo-fugacidade em sua efemeridade. Neste âmbito, Cronos submete a Cairós, anula-o e o elimina, da mesma forma que, como Marcuse expressa em Eros e Civilização (1978), Thanatos submete Eros.

Apontamentos a uma Crítica Estética Sob o Capitalismo Avançado

É neste cenário que se pode intentar uma crítica estética não-redutora e não-ideológica na atualidade. A concepção estética ora debatida, a arte em geral, cabe ressaltar, compõe-se de duas partes fundamentais e indissociáveis. A primeira delas diz respeito ao processo de criação da obra de arte: a relação dos indivíduos com a natureza e suas conseqüentes. O aspecto seguinte versa acerca da fruição, ou seja, da relação dos indivíduos com a obra de arte, seja contemplando-a, seja em sua criação: o artista frui a si próprio e seu processo de concepção.
Partindo de tal entendimento, a obra de arte surge como componente e momento reificado desse mundo altamente administrado e racionalizado, dominado por um sujeito abstrato. Mesmo que na História da Filosofia tenha sido defendida uma relativa autonomia das artes e do artista em relação ao contexto e às determinações sociais, há, sob o capitalismo avançado, uma inversão nessa lógica. A técnica e a massificação compõem o indivíduo isolado e fragmentado fora do âmbito no qual a autonomia – a individuação – poderia ter validade. Constroem-no seguindo sua lógica própria. O ato de criação artística, por um lado, submetido a tais ditames, está fadado a não transcender o mundo estabelecido. Milton Santos, falando sobre a perda da autonomia na esfera da arquitetura, diz que tudo o que deve ser feito, sob a sociedade capitalista, já possui um a priori independente dos indivíduos: “O ato de construir está submetido a regras que procuram nos modelos de produção” – e nas relações fetichizadas – “suas possibilidades atuais” (SANTOS, 2009, pp. 36-7). Dessa forma, não se trata simplesmente de uma reprodutibilidade técnica da obra de arte, na qual se perde a aura. Antes, é uma produtividade técnica, algo de exterior e fora do controle e alcance dos indivíduos que os direciona, seja enquanto produtor ou consumidor.
As personalidade e individualidade postas e petrificadas pela massificação são determinações que trazem consigo a reificação da sensibilidade. Se por um lado os indivíduos só sensibilizam dentro de um limite dado, por outro, a sensibilidade reificada dá o elemento estético à obra de arte. Isolado da relação de constituição de si e fechado sobre si mesmo, o indivíduo projeta suas qualidades-fetiches sobre o objeto de fruição. Só é aceito aquilo que esteja dentro de tais projeções, caso contrário, descarta-se como falso[4].
Com a pseudo-individualidade reinante, a mimese moderna é a cópia não-reflexiva e massificada dos padrões sociais abstratos. A projeção das categorias humanas sobre a obra de arte se dá como projeção das categorias-fetiches humanizadas. Na medida em que a sensibilidade não transcende o mundo estabelecido, e por sua vez naturaliza-o, as condutas são comportamentos adaptativos e predefinidos. De certa forma, tais comportamentos são os mesmos da criança podada pelo pai como superego. Neste sentido, numa sociedade na qual sujeito se diluiu em categorias abstratas e que perdeu seu encantamento para a racionalidade totalitária, em uma sociedade altamente racionalizada e desencantada – na qual tudo é quantificado e necessita receber um valor positivo – a arte se torna mera expressão do dado, posta por um sujeito fetiche.  A catarse não se dá como purificação da alma; antes, como projeção da alma em categorias coisificadas e abstratas, sob custódia da racionalidade do capital.
O indivíduo pseudo-autônomo está fadado a criar e viver sob signos dados, dentro de uma simbologia e de uma lógica dominante. É, grosso modo, este o cerne da crítica de Adorno (apud JAY, 2008) ao Jazz[5]. O protesto ou mesmo a transcendência e elevação que aparentemente o Jazz trazia em seu bojo não passavam, para o filósofo alemão, de uma castração da autonomia dos indivíduos que, mesmo algumas vezes não tão aparente, seguiam a lógica imperante da sociedade que se consolidou durante o século XX. Isto indica, entre outras coisas, o fato de a sociedade ter tomado para si a sociabilidade e a pequena liberdade que os Homens – a arte – possuíam, visando transcender o universo estabelecido, mesmo sem uma intenção claramente política de rompê-lo[6].
Neste domínio, a crítica de Marcuse em A Dimensão Estética (1999), que, em sua interpretação da literatura do século XVIII, entendia como altamente revolucionária a capacidade da obra de arte no sentido de transcender o dado e naturalizado por meio da fruição, perde sentido na atualidade. Tal capacidade que, no geral, se aproxima da idéia de Schiller, na ligação entre Razão e Sensibilidade, em suas Cartas (1994; 2009), é rompida pela dimensão técnico-temporal reinante. Por um lado, tem-se o universo unidimensional naturalizado, apresentado aos indivíduos, isolados ou em conjunto, como dado e não enquanto processo humano: o mundo da técnica. Esta, além de sua capacidade de elevar a si própria ao status de sujeito, traz consigo a aplicação tecnológica junto ao aprofundamento e eternização do estabelecido, e a tecnicização e racionalização do mundo humano. A unidimensionalidade, como supracitado, fecha o indivíduo em si, sem a preocupação com as relações com o outro, tampouco com qualquer tipo de negatividade. Em outro sentido, reflexão e contemplação ligam-se ao tempo. Contudo, sob uma temporalidade subsumida ao movimento abstrato das coisas, sendo apenas ‘útil’ o tempo ligado ao capital, à sua produtividade e, além disso, com o tempo transmutado em instantes fragmentados, fugaz e efêmero, toda aquela contemplação necessária ao estético e sua fruição perdem-se. É esclarecedor o exemplo de Narciso, conforme o Marcuse de Eros e Civilização (1978), que admira a si próprio; assim com também é elucidativo como, na atualidade, é impossível, na prática, a existência de alguém como Cézzane, que se debruça durante toda a vida na tentativa de apreender o Mount Saint-Victoire[7]. 
Além do mais, o consumo das chamadas Belas-artes, que hoje se intenta, é mero consumo, se dá em uma ingestão rápida e fugaz. Os indivíduos que a consomem, não o fazem por conta de sua interioridade ou da arte por si mesma, pelo que ela traz consigo, deixando-se penetrar por ela. O consumo moderno – e não há expressão melhor para tal fato – transforma a arte em meio de certo tipo de status e por conta da aparência que ela cria: uma aura coisificada sobre o indivíduo coisificado. Isto também acontece com os produtores e pesquisadores mais entusiastas[8]. Tal crítica expressa como a aparência, na sociedade burguesa, está em relação às demais dimensões. Rousseau já havia explicitado isso em seu Primeiro Discurso (1999). Desse modo, a arte deixa de ter valor por si e passa a ser produzida e consumida em vistas de um valor de troca, de um valor-capital.
Nestes domínios, à guisa de conclusão, vê-se que a técnica engendrada pelo movimento abstrato da sociedade capitalista se insere em todas as instâncias da vida, dominando-as e determinando cada um de seus momentos. O tempo, vivido e vivenciado, enquanto instantes fragmentários e enquanto agora desligado de todo o resto, é um tempo-fetiche, reificador e massificador dos indivíduos e suas relações sociais.  O mundo estabelecido por uma racionalidade abstrata é um mundo que foi totalmente desencantado. A mística que permeia a fruição estética perde-se para racionalidade técnica do capital. A obra de arte necessita de tempo não simplesmente enquanto agora, como tempo que é, em sua mera dimensão positiva. Antes, carece de um tempo enquanto processo para a efetivação de um tempo que contempla e transcende, abarcando, concomitantemente, a negatividade da fruição. Não obstante, o tempo fragmentado é produzido juntamente ao indivíduo isolado e reificado, sob o automovimento do capital que reclama e toma para si, como síntese, as relações sócio-temporais. Portanto, a efetivação de uma dimensão estética exige um tempo-fruição e uma mística que o capital subsume e anula na sociedade contemporânea. Necessita, em última instância, de um Cairós autônomo, livre em relação à Cronos.

 REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: o Esclarecimento como Mistificação das Massas. In. ___. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, pp. 113-156. 
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In. ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 114-19 – (Obras escolhidas v. 1).
___. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In.  ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 165-96 – (Obras escolhidas v. 1).
FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política: investigações para uma reconstituição do sentido da dialética. 3º tomo. São Paulo: Ed. 34, 2002.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002.
JAY, Martin. A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-1950. Tradução de Vera Ribeiro; revisão da tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
LUKÁCS, György. Da pobreza de espírito. Um diálogo e uma carta (1912). In. MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. As formas e a vida: estética e ética no jovem Lukács (1910-1918). São Paulo, Editora UNESP, 2004, pp. 173-88.
JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Tradução de José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: O homem unidimensional. 5ª ed. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
___. A Dimensão Estética. Tradução de Maria Elisabete Costa; Revisão de João Tiago Proença. Lisboa: Edições 70, 1999.
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MARX, Karl. Grundrisse: foundations of the Critique of Political Economy. Tradução e prefácio de Martin Nicolaus. Londres: Penguin Books, 1993.
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as Ciências e as Artes. In: ___. Coleção Os Pensadores, vol. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1999, pp. 167-214.
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SCHILLER, Friedrich von. Cultura Estética e Liberdade. Organização e Tradução de Ricardo Barbosa. São Paulo: Hedra, 2009.
___. Sobre a Educação Estética do Ser Humano numa Série de Cartas e outros textos. Tradução de Teresa Rodrigues Cadete. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994.




  * O presente texto faz parte de minhas pesquisas sobre os Grundrisse de Marx e a Filosofia crítica no século XX. Primeiramente, foi apresentado na II Dessemana da PUC-SP; Em seguida, compôs a XII Semana de Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 

 ** Graduado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
[1] Grosso modo, é o mesmo que o Jovem Lukács defende em um texto intitulado “Da pobreza de espírito. Um diálogo e uma carta”. Neste texto, Lukács aponta que a pobreza de espírito é o que leva o Homem à busca do mundo para completar-se, num processo infinito, já que a completude jamais é alcançada.
[2] O contrário dessa massificação, Ortega y Gasset chama de “nobreza”: a incompletude que sempre busca, no outro, a formação de si.
[3] Da mesma forma, Marx (1993), entendia que somente o tempo disponível e não o tempo de trabalho poderia engendrar a formação do indivíduo social. Como a atual sociedade é fundada no trabalho desnecessário, já que a grande indústria – as ciência e tecnologia juntas a ela – cria condições para aboli-lo, pode-se fomentar uma riqueza social que permita aos indivíduos consolidar sua plena formação. Logo, não é o tempo de trabalho que Marx entende como formador da riqueza e do indivíduo social. Pelo contrário, é o tempo disponível, livre em relação à satisfação de suas necessidades, que o promove. É, assim, através da suprassunção do trabalho – deixando as máquinas fazer o serviço e liberando o Homem – que se concretiza a sociedade pós-capitalista no entendimento marxiano.

[4] E esse “falso” traz consigo as pechas de “loucura”, “bizarrice”, “absurdidade” etc..
[5] Cabe ressaltar que há pontos difíceis a serem debatidos no tocante à crítica de Adorno ao Jazz e que, mais a frente, ele mesmo estende à música erudita. Além do mais, não se encontra, no presente trabalho, nem espaço para debater tais críticas, nem conteúdos, já que os textos do filósofo são de grande dificuldade e necessitariam de uma atenção minuciosa e conhecimentos aprofundados acerca de música. Não se dispõe disso aqui. 
[6] Esta idéia de ligação direta entre arte e política, ou, em outros termos, a concepção de uma arte militante, mesmo sendo, enquanto arte, baixa, tomou o debate estético marxista sob a égide do Stalinismo. 
[7] Cabe ressaltar, ainda, mais dois exemplos: a) em notação musical, a nota mais “longa” usual na atualidade é a semibreve; e, b) a impossibilidade, hoje, de um disco como o Bitches Brew (1970), de Miles Davis.
[8] Basta ver como, na atualidade, são Marchands, Curadores, e “críticos” em geral que dizem o que “é” e o que “não é” arte. 

Salve Filosófico do Subsolo Urbano!