Platão e o Mito da Caverna
Explicação prévia: estou postando dois textos que correspondem às aulas de concluem a pequena Introdução à Filosofia, segundo nossa proposta. Os textos abaixo são, respectivamente, a parte inicial do Mito da Caverna - (capítulo) Livro VII do Livro intitulado A República, do filósofo grego Platão, séc. V a.c.; e, em seguida, um texto de apoio para entender o contexto do filósofo grego e sua teoria da Idéia de Bem. Enfim, seguem os textos. BOA LEITURA!
Academia de Platão {ao centro, os dois Gigantes da Antiguidade: Platão, apontando para o alto[Idealista], e Aristóteles, para o chão [Materialista]} [Pintura de Rafael Sanzio]
O Mito da Caverna
LIVRO VII - Extraído de "A República" de PLATÃO. 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291
SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.
GLAUCO - Imagino tudo isso.
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?
GLAUCO - Não.
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?
GLAUCO - Sem dúvida.
SÓCRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?
GLAUCO - Claro que sim.
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente.
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?
GLAUCO - A princípio nada veria.
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.
GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?
GLAUCO - Evidentemente.
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.
Platão
DIALÉTICA EM PLATÃO
Dialética. Tendo a Dialética, segundo PLATÃO, como efeito de remontar de conceitos em conceitos, de proposições em proposições, até os conceitos mais gerais e os primeiros princípios que têm para ele valor ontológico, a palavra foi utilizada pelos críticos modernos ao falarem de sua doutrina para designar de uma maneira geral o movimento do espírito que se eleva das sensações até as idéias, da beleza concreta até o princípio Belo, dos fins individuais até a justiça universal (...).
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
INTRODUÇÃO
Platão vive em um momento político específico da vida na pólis[1]: a democracia (ou a decadência deste sistema). Lugar no qual o conjunto de cidadãos decide os rumos da Cidade-Estado, discutem e chegam à consensos. A pólis “(...) não era um local, embora ocupasse território definido; eram as pessoas atuando concertadamente e que, portanto, tinham de reunir-se e tratar de problemas face a face” (SARDI, 1995: 40). Apesar disso, a individualidade aqui está submetida à vida coletiva: o bem da cidade tem primazia sobre o bem individual. Isto fica claro no diálogo Críton[2], no qual Sócrates nega-se a fugir da prisão, pois, para ele, a harmonia da pólis é mais necessária e superior ao não cumprimento de uma lei (ou o “bem” individual) na qual, assim, poderia causar uma desarmonia na Cidade-Estado. Porém, deve-se lembrar, cidadãos aqui são aqueles que detêm o poder material: os proprietários, não-estrangeiros, livres, sendo apenas homens[3] a exercerem esse poder.
Platão surge como um crítico dessa sociedade, vendo que não se definem as funções dentro dela pelas condições sócio-econômicas de cada indivíduo. Vê que mesmo os cidadãos ainda se encontravam no plano da doxa (opinião), que para Platão era falsa, passível de erro, pois apoiada no plano material, sensível.
Cria uma cidade perfeita, utópica – expressa em sua obra A República – na qual os indivíduos viveriam em harmonia entre si e no conjunto da pólis, de forma justa. Para isso, Platão propõe um “método”: todos os indivíduos partiriam das mesmas condições e seriam educados a fim de reconhecerem a si próprios e encontrarem-se exatamente de acordo com as suas especificidades, ou seja, haveria o reconhecimento das “qualidades” de suas almas. As almas seriam reconhecidas conforme a evolução de cada indivíduo em relação a sua elevação e aproximação ao Mundo das Idéias.
Não só uma crítica à sociedade vigente, mas a proposta de uma sociedade justa, perfeita, onde o saber (Idéia) seria o guia dessa organização. Platão verifica que é necessário o reconhecimento da alma para atingir a Idéia de Bem: o imutável, perfeito, a verdade, o conhecimento (epistèmê).
Cabe a nós, aqui, identificar o processo proposto por Platão para o (re)conhecimento da alma, partindo do método utilizado por ele, que seria a forma mais adequada de se chegar a verdadeira epistèmê, ou seja, o método dialético.
DIALÉTICA E DIÁLOGO: O CAMINHO DO RECONHECIMENTO
Podemos dizer que o modo pelo qual Platão propõe para, através dele, chegarmos à verdadeira epistèmê, ou a Idéia de Bem, seria o método dialético. Ou seja, a partir daqui, sairíamos do plano da doxa, que visa apenas o mundo sensível, mutável, do devir constante, e passaríamos ao mundo inteligível, do uno, do imutável, eterno. Chauí elucida-nos a respeito desse processo:
Os diálogos de Platão põem em marcha a dialética, isto é, o caminho seguro (méthodos) que nos conduz das sensações, das percepções, das imagens e das opiniões à contemplação do intelectual do ser real das coisas, à idéia verdadeira, que existe em si mesma no mundo das puras idéias ou no mundo inteligível (CHAUI, 2005: 186).
Partindo dessa conceituação, pode-se dizer que a ontologia platônica afirma a existência de dois mundos separados: o mundo sensível, do devir dos contrários, e o mundo inteligível, da verdade, conhecido pelo intelecto puro, sem interferência dos sentidos e das opiniões: o mundo do Ser. O mundo sensível é uma copia deformada do mundo inteligível. A ontologia é a própria filosofia e o conhecimento do Ser. Passar das opiniões rumo ao mundo das essências imutáveis é tarefa da filosofia e dos próprios filósofos. Podemos, então, afirmar que “(...) o processo dialético do conhecimento, que navega do que é múltiplo, sensível e variável, ao que é uno, inteligível e imutável” (ALMEIDA, 2002: 136), é o método proposto pelo autor para se aproximar ao máximo da Idéia de Bem.
Entendendo-se que o processo dialético platônico é aquele pelo qual se atinge o Mundo das Idéias, devemos, então, nos situar e reconstruir esse caminho trilhado por Platão. Em primeiro lugar, devemos dizer que o autor, em discordância com a organização da pólis grega de sua época, propõe uma nova organização fundada na idéia de justiça baseada, esta, na verdade. Para tanto, segundo ele, faz-se necessário que todos partam das mesmas condições externas e, podemos dizer, materiais, desde cedo para que assim haja um reconhecimento da alma. Esse processo se daria através de uma educação contínua e seria aplicada à todos, para que estes fossem, através do conhecimento das coisas sensíveis, achegando-se a Idéia de Bem.
Nesse processo, de reconhecimento da alma, as coisas do mundo sensível vão, progressivamente, sendo deixadas para trás, e, assim, pode-se dizer, a alma é, em certo sentido, um intermediário entre as Idéias e as coisas sensíveis.
Podemos, então, fazer algumas classificações: a ascensão da alma ao mundo inteligível: dialética ascendente, vista na “saída do homem” da Caverna[4] de Platão. Pode-se dizer que a alma é superior as coisas sensíveis: subjetividade pura correspondente a parte racional da alma. Ela reproduz a estrutura do mundo das Idéias em si mesma: o trânsito da subjetividade à Idéia de Bem (objetividade). E através das Idéias se atinge o mundo sensível: dialética descendente. Porém, aqui, a alma já é consciente da diferença entre aparência e realidade. Assim se constrói a metafísica, a ontologia e, portanto, a dialética. Então, aqui podemos afirmar que a alma seria, para Platão, intermediária entre o devir e as Idéias. Portanto, investigar e aprender não são mais que recordar. A transcendência da alma se dá por via da interioridade.
Não obstante, no processo dialético devem ser admitidas contradições para que elas sejam superadas. Platão não descarta a necessidade da práxis para se chegar ao mundo inteligível. Ele vê claramente que é na atuação do homem com seu meio que ele poderá ir até a Idéia de Bem e, assim, não mais precisará do sensível para o compartilhamento dessa Idéia. Para tanto, faz-se necessário uma relação, já que dialética, de “intersubjetividade-subjetividade-objetividade”. É através do diálogo, da relação com o outro e com o meio, que se dá o processo de reconhecimento da alma, ou de suas qualidades preexistentes. Podemos dizer que o outro é uma ponte para nossa interioridade e vice-versa:
‘Diálogo’ e dialética estão em dependência recíproca, em função de uma mesma finalidade, que os unifica: a ascensão da alma e da pólis à verdade. Isso significa que a dialética só pode efetivar seu objetivo através do ‘diálogo’, e o ‘diálogo’, por meio da dialética. Tal é a determinação principal da relação entre ‘diálogo’ e dialética, em Platão (SARDI, 1995: 101).
Portanto, é através da maiêutica socrática, o processo de interrogação no diálogo, que se dá o processo de reconhecimento. Os seres do diálogo, enquanto dialética, devem-se referir mutuamente a Idéia de Bem, para que seja possível, assim, o processo da maiêutica. (vemos o “entrave” do diálogo no livro I de A República, no qual Sócrates, nitidamente uma alma “mais elevada”, dialogando com seu interlocutor, chegando-se a um ponto onde o diálogo trava e não mais evolui: os seres componentes do diálogo são, nitidamente, seres em “níveis” diferentes, naquilo que referente às suas almas).
Nisso, a alma tem o seu reconhecimento, que aqui chamaremos de reminiscência. Esta reminiscência seria o reconhecimento da alma em sua “essência”. Ou seja, para Platão, o corpo é o “cárcere” da alma que existe, esta, antes e além do homem. Nesse processo, a alma se perde, um processo que podemos fazer uma analogia com a alienação[5], pois, a alma não mais se reconhece a si própria enquanto presa ao corpo. Por isso Platão diz ser necessário o processo dialético e a práxis da relação “intersubjetividade-subjetividade-objetividade” para novamente se reconhecer, a alma, na totalidade de suas qualidades. A reminiscência (anámnesis) é uma evidência do princípio suscitado pelo diálogo e pela percepção. Somente a dialética enquanto forma do discurso que corresponde à estrutura do pensar e à estrutura do ser, pode compreender as Idéias como principio do conhecimento. Em relação à dialética, a anámnesis cumpre função de um critério último de validação (conhecimento conceitual inato = anámnesis).
Entrementes, para que se efetive o processo de práxis, faz-se necessário o amor ou Eros, que podemos entender enquanto principio dinâmico que possibilita a efetivação da inter-relação entre a subjetividade e a intersubjetividade[6] e, desse modo, entre a subjetividade e a objetividade. O Eros que liga o eu a si mesmo, ao outro e ao ser. Este Eros possibilita toda a relação humana com a sabedoria, com a Idéia, o Bem. A sabedoria pertence ao Bem, e o Bem é a própria finalidade da vida e o objeto mais elevado da aspiração humana. “A dialética é a aspiração ao Bem, e esta é uma exigência que se dá já desde o início do processo, na educação juvenil” (ALMEIDA, 2002: 136). Este Bem é o fundamento último da ética e do conhecimento. Portanto, o Bem seria, para Platão, aspiração última do conhecimento e sua causa.
A dialética inclui em si a ética, e a ciência da ética é a práxis do amor. Então, “filosofar” é a práxis que não desvincula ética e conhecimento. Segundo Sardi (1995, p.33), “a dialética platônica caracteriza-se por ser uma construção racional da ética e, simultaneamente, uma construção ética da razão”.
Portanto, a passagem da doxa à epistémê “verdadeira” ou a Idéia de Bem, tem, intrínseco ao processo, a passagem pela epistémê “obscura”. Essa passagem ou reconhecimento da alma se dará, para o autor, através da passagem pelas matemáticas. Será a consciência da contradição através das matemáticas que possibilitará a ascensão da doxa ao entendimento (epistèmê obscura), e, a partir daí, será possível a ascensão à Idéia. O entendimento como se fosse o intermediário entre a opinião e a inteligência.
O método dialético não substitui de inicio a certeza da opinião por outra certeza, mas é um método negativo, exigindo uma atitude critica, mostrando a necessidade de uma interrogação, e um questionamento dessa própria opinião, de sua origem, de seus fundamentos. Nas matemáticas, a investigação se dá a partir de hipóteses, chegando a conclusões, sem, contudo, poder-se prescindir das hipóteses para caminhar até o principio; no caso da dialética, parte-se de hipóteses e se chega ao principio absoluto, atingindo-se um nível de conhecimento incondicionado, ou seja, procede de hipóteses em hipóteses até eliminá-las todas e continuar o caminho só com o auxilio das idéias. O próprio Platão explicita isso em uma passagem de A República:
O método da dialética é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los, as artes que analisamos (PLATÃO, 2003: 231).
Partindo disso, Almeida nos traz uma elucidação: “[Platão] não propõe uma educação filosófica concentrada apenas na maturidade, mas considera que a própria maturidade que se dispõe à filosofia é construída pelos momentos anteriores de aprendizagem, sem os quais o momento dialético não será alcançado” (ALMEIDA, 2002: 138).
Portanto, vemos a necessidade daquilo que já tratamos acima: uma educação igual a todos, que partiriam das mesmas condições para, assim, reconhecerem-se enquanto tal. Almeida (2002, p.148), novamente, explicita: “(...) o saber dialético não pode ser ensinado, mas somente aprendido, pois não basta que alguém que o tenha o transmita a quem não o possui; porém, é necessário que o aprendiz seja capaz de possuí-lo”.
A partir daqui é necessário lembrar que, para Platão, nem todos chegariam ao conhecimento da epistémê verdadeira, ou seja, as almas têm “graduações”, onde, cada uma tem, pode-se dizer, um “nível máximo” ao qual poderia atingir. Isto o autor elucida e nos trás três “categorias” básicas de almas, as quais podemos, sucintamente, classificar: Almas de ouro: são aquelas que conseguem atingir a Idéia de Bem (relacionar-se com ela, mas não sê-la). Estes (os que a possuem), seriam os governantes da cidade perfeita proposta por Platão, seriam os filósofos que, não obstante, por terem passado por todo o processo de aprendizagem, saberiam muito bem, portanto, e teriam em si, também, as qualidades das almas “inferiores”; Almas de Prata: são aquelas que não ficam na doxa, porém, também não atingem plenamente o Mundo das Idéias. Seriam os guardiões, tanto nas questões internas, quanto externas da cidade: os guerreiros; por fim, temos as Almas de Bronze: são aquelas que são compostas pelos homens que seriam os artesãos, os “agricultores”, por assim dizer. Ficariam, estes, como sendo aqueles que provêm à cidade em sua subsistência básica, ou seja, são aqueles que mantêm a pólis em suas necessidades primeiras. Em caso de guerras ou conflitos externos, apesar de não comporem o segundo grupo, participariam, limitadamente, do grupo dos guardiões.
Como não poderia deixar de ser, Platão é bem lúcido e organiza estas escalas em forma de “pirâmide”, ou seja, a base (Almas de Bronze) seria composta pela maior parte da população da pólis, enquanto os governantes-filósofos seriam uma parcela limitada e a menor existente (ou seja, no topo da pirâmide).
Para Platão, segundo Sardi (1995, p.37), a dialética “enquanto diálogo, fundamentado nas Idéias, é o mecanismo que permite a realização da utopia como projeto de humanidade, em todos os níveis”. Ou seja, baseado na idéia de justiça, Platão prevê que, através da dialética, as almas se reconheceriam e seriam, assim, progressivamente, dependendo de suas qualidades, “encaixadas” a um grupo específico. Portanto, segundo Almeida (2002, p.134) “A [justiça] é intrinsecamente boa e de que a justiça na cidade exige que seu guardião (governante) seja também filósofo”.
Voltando-nos à Caverna, como metáfora para designar a Cidade-Estado, pode-se dizer que “a caverna não é um lugar especial, que abriga apenas os ignorantes, mas é o lugar comum a todos os homens antes da preparação pela educação” (ALMEIDA, 2002: 144).
Portanto, para Platão, “a dialética está situada na ‘cúpula das ciências’ e não há nenhuma outra forma do saber acima dela (...), a ciência primeira, a única capaz de alcançar o verdadeiro Bem” (PLATÃO, 2003: 232) e, acrescentando, “quem for capaz de ter uma visão de conjunto é dialético; quem não for, não é” (PLATÃO, 2003: 235).
Vemos, então, exatamente como Platão propõe o processo Dialético-Dialógico, através da relação de práxis entre “sujeito-objetivo-sujeito”, ou seja, a relação entre o sujeito, o outro e o meio para o reconhecimento da alma. Não obstante, também deixa claro que não basta apenas essa relação dialética para se chegar a Idéia de Bem: é necessário, e imprescindível, que a alma já tenha suas qualidades, assim, bastando apenas “descobrí-las”. Por isso que a cidade se daria de forma justa: mesmo as almas da base, estariam satisfeitas, pois saberiam das suas “limitações” e se contentariam com sua posição dentro da pólis, gerando, assim, harmonia. E Platão, como fica claro, não deixa de prever que mesmo essa harmonia deveria ser “vigiada”, ou seja, não seria uma “garantia eterna”, por isso os guardiões. Assim, o processo Dialético-Dialógico, para ele, é o único meio seguro de se alcançar a verdadeira epistémê. Tudo isso proposto como visão de conjunto, propondo o Bem à Cidade-Estado e não apenas, simplesmente, ao indivíduo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Custódio Luis S. de. Hermenêutica e Dialética: dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
CHAUI, Marilena S. Convite à Filosofia. 13ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2005.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
___. Diálogos. 2ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, s/d.
SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e Dialética em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
[1] A pólis era a Cidade-Estado grega: autônoma e de organizações, por vezes, diferentes entre si.
[2] PLATÃO, Diálogos. 2ªed. São Paulo: Editora Cultrix, s/d.
[3] As mulheres, os escravos e os estrangeiros não tinham direitos políticos na vida democrática da pólis.
[4] Livro VII de A República.
[5] Entenderemos alienação, aqui, em suma, como o processo de não-reconhecimento em si próprio.
[6] “Todo o campo de relações do eu com o tu, no qual o ‘diálogo’ é uma forma privilegiada” (SARDI, 1995:30).