domingo, 28 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 5


O processo cultural de formação da objetividade e das subjetividades desencadeado pelo trabalho abstrato tende a identificar tudo à imagem da objetividade social, em suma, à imagem abstrata da dominação. Em outras palavras, a sociedade regida pelo capital tende a não deixar espaço para diferenças fundamentais, deixando, contudo, tudo com aparência de diferente: dominação perfeita não se dá pela coação, mas pela aparência plena de liberdade. Esta aparência se sustém, pois, junto a ela, todo o processo social é reduzido às escolhas do indivíduo isolado, isto é, o fracasso, a culpa, o ganho, a felicidade e etc., dependem das opções do indivíduo – tudo que diz respeito à existência individual, depende somente do indivíduo, toda a carga histórica é esvaziada e seu peso jogado nas costas do indivíduo isolado. Com isso, o indivíduo deve caminhar sozinho, com suas próprias pernas. E seu caminho vai se realizando na medida em que ele vai se identificando com o que já está dado. Em outros termos, o indivíduo “evolui”, “progride”, se aproxima da “liberdade” e da “felicidade” quanto mais aceita e incorpora a padronização já previamente programada, todavia, à revelia dele; quanto mais ele se coaduna, se reconcilia com objetividade da sociedade que, não obstante, aparece a ele como natural. Identificar é reificar, padronizar na medida em que a imagem do indivíduo vai tomando forma cada vez mais nítida no reflexo da objetividade social. Isto poderia parecer que a sociedade vai se conformando ao indivíduo, que ela vai se amoldando para se adaptar às necessidades dele: a verdade é exatamente o contrário [NOTA: sobre identidade, ou melhor, sobre não-identidade, tratei no texto Versando sobre a não-identidade, aqui no blog em novembro].   
Toda identificação é reduzida a uma forma (se se quiser, um padrão, algo projetado previamente). Podemos entender esta forma como a capacidade de consumo, capacidade de consumir tudo e todos de modo mais otimizado possível: forma-consumo. Tudo tende a se reduzir ao consumo como anulação do outro. Isto implica que o indivíduo não consome somente objetos, mas os objetos formam um meio para a sobreposição ao outro, para rebaixar o outro, em uma palavra, o consumo cria a subjetividade do indivíduo. No entanto, esta subjetividade é criada antes mesmo do indivíduo se dar conta dela. Ela é adquirida pelo indivíduo na medida em que ele a consome: a subjetividade não está nele, mas pode ser dele mediante a compra. Mais uma vez, a subjetividade já está dada no mercado das ilusões, e o indivíduo não tem outra escolha do que escolher uma para si. Mas uma que é sempre a mesma que qualquer outra, que o reduz à roda do consumo. Escolher é escolher sempre a mesma coisa, o que torna o ato da escolha, da liberdade, nulo mas formador.
Por um lado, a violência da abstração que se dá através da forma-consumo é espetacularizada. Consumir algo que não pode ser visto, ostentado, não pode ser invejado e usado para dar inveja (rebaixar e etc.) ao outro, e, portanto, não pode criar nenhum tipo de status positivo, que demarque a posição daquele indivíduo no todo social, é um consumo irrisório, quase nulo: é isto que acontece, por exemplo, com as ciências do Espírito, com o conhecimento crítico; e por outro lado, a própria ideia de crítica não é mais objeto de “consumo”, já que todos a “possuem” sem o mínimo esforço; portanto, ela não causa “impacto” pois, por um lado, é dado para todos sem diferenciar ninguém e, por outro, não é visível, não pode ser ostentada [OBS.: pode ser ostentada, sim, quando é transformada em outra coisa, quando serve para diferenciar, no plano visível do status, um indivíduo do outro – quantos de nossos amigos usam a filosofia, por exemplo, para se “diferenciar” dos demais, sem, entretanto, usar a filosofia: usam apenas sua imagem social reificada].
Por outro lado, tudo tende a se tornar Espetáculo na medida em que consome o outro – e todas as designações humanas – de forma total. Assim, mesmo o que parece positivo, uma afirmação ou direito dos indivíduos é, pelo contrário, sua anulação ao anular o outro. A “liberdade de expressão”, para ser liberdade de uma expressão autêntica, deve ser violenta. Mas a violência que ela deve tomar forma é aquela antissistemática, violência contra a identidade e a tendência de identificação total à abstração social. Em última instância, a liberdade (real) deve ser um ato violento que rompa com a redução de tudo à ordem totalizante do capital. Qualquer “violência” que não rompa com a ordem sistemática da sociedade abstraída dos indivíduos é coisificação, ratificação do existente e, em última instância, inumana tal qual o capital o é. Todavia, a liberdade de expressão, ou aquilo que reivindicam por seu nome, é a forma completa da dominação social: liberdade de expressão, no Grande Espetáculo, é “liberdade” de dominação, de constrangimento e discriminação: em uma palavra, é anulação completa do outro, anulando a si mesmo, ainda que com aparência de progressão e completude de si mesmo e de sua plena liberdade. A Sociedade do Espetáculo [tal como designa Guy Debord] é aquela em que mesmo a morte é um espetáculo que deve ser visto, reverenciado, encenado todos os trejeitos e “sentimentos” correspondentes. O Espetáculo é a morte: morte da subjetividade, da humanidade dos indivíduos – isto quando não é a morte física dos indivíduos e, apesar disso, esta morte (física) surge como o epifênomeno de todo este movimento, ainda que apareça como “a causa”. Além do “uso” dos indivíduos físicos – ou dos atributos físicos, como padrão de beleza, por exemplo – como Espetáculo, há o Espetáculo com as designações humanas: estas designações são o consumo de tudo que nos tornaria humanos e, ao contrário, nos rebaixa cada vez mais à coisa: a morte é um espetáculo, tal como a individualidade, a subjetividade criada a duras penas pelas frestas e brechas que o sistema deixa e etc.; estas e outras designações legítimas são usadas, só para citar as superfícies, como motivo de ridicularização, de rebaixamento ao status de não-humano do outro e assim por diante. [Quanto a liberdade de expressão, pense nas “piadas” e “stand-ups” racistas, machistas, xenófobos e etc., que anulam o outro ao ratificar não sua própria existência, mas sua existência concedida pela abstração social capitalista; quanto ao Espetáculo das designações humanas, pense nos programas que promovem a morte, a inveja, a discórdia, a violência física e outras mais como programas de auditório ou programas que “clamam” pela tragédia para a audiência e para o dinheiro, pelo ganho e lucro (Goethe e seus Fausto e Mefistófeles ficariam pasmos – para não dizer “no chinelo” – perto de nossa época); a anulação completa do outro e de si mesmo já está presente, pensar no futuro numa situação dessas, tal como o capital nos faz sempre projetar, é ratificar a existência coisificada de tudo, tanto material quanto espiritual].
Ora, o Espetáculo violento está hoje em tantos lugares que mesmo aquele que deveria (pelo menos segundo o conceito) nos desviar disso e retornar aos fundamentos mais humanos ao nos ligar com o divino, está permeado de violência, tanto do discurso, quanto das práticas e aspirações: a religião, tal como está dada, é sempre pensada “desligada” do plano social e do momento histórico em que vivemos; no entanto, ela é um momento dentro desse quadro, um elemento indissociável. Em alguns casos, a religião é mais violenta do que se pensa, pois o resquício de humano que poderia emergir frente ao inumano posto pelo capital, ela oblitera, ela reprime, fazendo que aquela fresta por onde poderia surgir seja sumamente fechada. É claro que isso cria patologias gigantescas [se pensarmos em Freud, em relação à sexualidade, por exemplo, nem é preciso dizer que a tentativa de criação de uma “humanidade de Deus” faz emergir aberrações grotescas, tais como a ratificação da submissão da mulher ao homem, como a prática irrestrita do sexo anal na tentativa de manter a virgindade perante Deus (OBS.: não há nada de errado com o sexo anal e nem com sua prática, muito pelo contrário; a questão aqui é a fórmula do discurso e a prática como aberração)]. Isto tudo para não dissertar sobre a forma-consumo aí encarnada de modo pleno [pense, por exemplo, no “drive-thru de orações”, no templo de Salomão (que poderia ser de Midas, faria mais sentido), nas pequenas igrejas e templos da periferia que ratificam a si mesmas pela anulação de todos os outros – pois, nos outros está o Diabo –, na extorsão em nome de Deus, no enriquecimento imediato e nas conquistas materiais que Deus concebe, permite e incentiva e etc.].
O Espetáculo só é possível na medida em que a tendência à identificação total está dada. E esta identificação total, por outro viés, ocorre na anulação do outro como absorção total do outro. Se pensarmos em como a “esfera pública” é criada no Brasil, talvez faça mais sentido. Por um lado, no mundo global a esfera pública é um espaço de realização da coisificação, realização da violência abstrata do capital. Por outro, e este especificamente brasileiro, o espaço destinado ao público é um espaço de realização da individualidade, da subjetividade. A casa-grande, na colônia, era o espaço público por excelência; mas só era esfera pública na medida em que era espaço para realização das designações, dos mandos e desmandos do senhor de engenho. A história atesta um espaço destinado ao público permeado pelo sadismo, pela realização da individualidade de mando e domínio. Além disso, no período mais recente, a violência do senhor de engenho e do capitão-do-mato se altera qualitativamente: torna-se violência do Estado, como espaço de realização da burguesia de engenho (uma burguesia tipicamente brasileira) e violência da polícia. A ditadura militar mais recente não foi superada: o que se superou, parcamente, foi a forma política de mando, não as designações espirituais e sociais criadas ou elevadas e ratificadas ali [NOTA: escrevi sobre isso no blog, ano passado: Sexta-feira 13 Sombria]. A esfera pública espetacularizada somente é possível na medida em que ela é a imagem do indivíduo de mando. No entanto, não podemos esquecer, esse indivíduo é reflexo do capital, engendrado pela sociedade abstraída na mesma medida em que imagina que forma e dá as coordenadas desta sociedade. Se imbricarmos os desígnios do capital com a história brasileira, teremos uma imagem de nossa sociedade: um tipo de capitalismo potente, pois alia a ideia de liberdade e igualdade capitalista com a sobreposição do indivíduo de mando proveniente da colônia; cria-se, junto a isso, um tipo de dominação violenta ratificada pelas práticas de liberdade, justiça e etc., engendradas ou reforçadas na ditadura militar. A violência hoje exercida em nossa sociedade é a violência da anulação do outro inconveniente: o outro deve ser executado, anulado, para que o Eu se realize [NOTA: sobre isso, escrevi aqui no blog: Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano].
A violência se sobrepõe a todas outras formas de existência pois ela é a nossa constituinte mais forte; é o que constitui mais firmemente nossa alma e nossa existência histórica. O racismo se incorpora em nossa experiência com existência naturalizada, na mesma medida em que o combate ao racismo é tornar brancos os pretos [mas sem que isso apareça como anulação do preto, e sim como sua realização: por ex., o padrão de beleza preto não difere do aceito (do branco): traços finos, sorriso branco...; também a mídia utiliza o preto ou para “colocá-lo em seu lugar” ou para utilizá-lo para fins de consumo (será que mais pretos na TV, por exemplo, seria a ruptura do racismo ou a incorporação dos pretos ao existente, sem uma superação do racismo? Em outras palavras, será que não incorpora o preto ao anular sua diferença, ao jogá-lo no circo da mesmice, do sempre-igual, ao fazê-lo parte integrante da corrida desenfreada por “harmonia” social que, como harmonia, privilegia e dá aval e mais abertura ao lucro e à exploração?)]. Na periferia, o racismo é mais grotesco: a PM, composta, também ela, por pretos (ora, muitos capitães-do-mato eram de origem negra), elimina a juventude da periferia de forma letal: há uma pena de morte, desde muito tempo, imposta na periferia. Este tipo de violência, visto como seu contrário – como justiça, que mais se assemelha à vingança (aliás, não poderia se assemelhar a outra coisa, visto que temos uma sociedade de indivíduos, no qual o bem social é o bem de algum indivíduo de mando – coronéis que mandam concretamente existem nos confins do norte e nordeste do país; aqui existem coronéis abstratos, que mandam sem ter uma face) –, é transportada a todos os ramos sociais, até a esfera íntima. Como exemplo, a vingança e a anulação física do outro têm exemplos nos casos deste ano, em que “bandidos” (pretos, pobres) foram amarrados ao tronco (literalmente), por indivíduos que clamam por justiça (pasmem!). Para não estender muito, não vou dar outros exemplos, como os casos de gays, travestis e etc.; exemplo de pessoas pretensamente diferentes que são eliminadas (fisicamente, inclusive), como aqueles que possuem outras posições políticas, outras orientações normativas e etc..
A sociedade brasileira composta historicamente por meio da violência engendra mais violência, de todos os tipos. Se hoje a violência do “crime” cresce desvairadamente, isto é fruto de uma desorganização que tem sua pretensa organização no combate malfadado às mazelas históricas: a violência do “crime”, combatida pela violência do Estado e pela violência policial (que é um Minority Report atrapalhado e mal feito), não é um contraponto à ordem social: é seu complemento mais perfeito [NOTA: sobre isso, escrevi no blog: Mais um ataque: capitães-do-mato e outsiders na farsa histórica brasileira]. E não somente a violência policial, mas a violência perpetrada pelas pessoas. Aliás, um é reflexo do outro e ambos são reflexos e consequências históricas. A violência física, epifenômeno da violência abstrata total, é a forma de organização da (in)existência social.
Não precisamos de uma pena de morte legitimada; ela já existe, e de forma mais completa, sem a legitimação judicial ou do Estado: sua legitimidade está na sua forma ilegítima, na sua forma legitimada socialmente e praticada por todos. Se a progressão continuada, por exemplo, é um erro do Estado, ela é ratificada pela burocracia escolar e por professores: isto é violento e, por sua vez, dá aval e alimenta a violência física [pense em Educação após Auschwitz, de Adorno]. A pena de morte é, primeiro, a morte social irrevogável dos seres sociais coisificados (indivíduos pretensamente autônomos); segundo, é a morte física perpetrada por todos a todos, como num estado de natureza hobbesiano. A polícia tem aval para matar, assim como qualquer indivíduo se sente no direito de dar aval para a morte do outro: morte do outro = sua subjetividade satisfeita. A morte do outro é a vitória do Eu, não do Eu subjetivo, mas do Eu objetivo: do capital. A ordem do capital se completa com isso, ao contrário do que pensa a maioria: ela tende à totalidade ao estender seus tentáculos obscuros e abstratos (como forma de contraponto a si) por todos os cantos, todos os menores detalhes, frestas, brechas sociais. Estamos fadados ao fracasso, mas um fracasso “gostoso”, que traz satisfação pela anulação total. 

Subsolo!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 4

Especialmente em sua chamada fase de maturidade, Marx encontrou a expressão precisa para designar a produção abstrata de toda realidade: trabalho morto. Produção abstrata não porque seja incognoscível ou mesmo fruto do pensamento (algo metafísico); antes, por conta de sua capacidade de se abstrair, de se deslocar da concretude das ações “visíveis” dos Homens; capacidade de coordenar todo o plano concreto e das ideias sem que se identifique com nenhum conteúdo concreto ou ideia em particular. O “trabalho que morreu” é aquele que passou; contudo, passou sem ter ido embora: a síntese do “trabalho vivo”, isto é, resultado da atividade prática concreta dos indivíduos, permanece. Esta “síntese” não deve ser entendida como “criatura econômica” (como objetos concretos de consumo criados por trabalhadores que puseram suas capacidades físicas e mentais nestes objetos; como “produto” que pode ser comprado a dinheiro, em suma, como se fosse restrita ao plano econômico). Antes, o trabalho morto é toda atividade formativa humana que se objetivou – saiu da pretensa subjetividade dos indivíduos e se “cristalizou” no plano objetivo, na sociedade –, atividade formativa de todas as instâncias da vida dos humanos. Em suma, a sociedade é um processo histórico: ela é criada pela atividade produtivo-formativa dos humanos se relacionando entre si dentro de uma dada sociedade e, por sua vez – também como consequência lógica –, formando esta sociedade na mesma medida em que são formados por ela.
Todavia, o trabalho morto, na sociedade capitalista, possui uma peculiaridade: ele não é trabalho do indivíduo que passou; é, além disso, trabalho morto objetivo, abstrato, deslocado das capacidades dos indivíduos, caso tomados isoladamente, desde o princípio. A soma dos trabalhos (ou das capacidades de trabalho) dos indivíduos singulares não resulta em trabalho abstrato, em trabalho total ou objetivo. Podemos pensar em um exemplo razoavelmente simples: a produção seja do que for – imaginemos, por exemplo, uma linha de produção de automóveis – não ocorre pela soma dos trabalhos passados dos indivíduos tomados isoladamente (trabalho objetivado ou morto, atividade que se tornou um objeto – por ex: uma roda ou um pára-brisa) que quando somados uns aos outros desemboca em um produto final pronto. Isto até pode parecer real se esquecermos o outro lado do processo. O que deve ser feito – o produto como um todo; neste caso, o carro – já foi projetado por algum sujeito, isto é, alguém já “pensou” como e o quê deve ser feito. Esse alguém é um sujeito que possui a capacidade de dominar o processo como um todo, seu ritmo, andamento, seus detalhes e etc.. Se todos os trabalhadores juntassem suas capacidades e as partes que fazem (desde o gerente ou gestor, o pessoal do RH, até os trabalhadores braçais da linha de produção), ainda assim ficaria faltando alguma coisa – que impediria de se chegar ao produto final. Esta “coisa” que falta é a capacidade de controlar o processo como um todo, capacidade de antecipar o que deverá ser feito e etc.. Como o indivíduo isolado não possui a capacidade de dominar o processo, pressupõe-se que a somatória dos indivíduos que ali trabalham – formando um “trabalhador total” – pudesse ter pleno domínio. A coisa que falta os faz não ter esse domínio pleno. A inversão propiciada no capitalismo se dá em colocar a imagem da realidade nos indivíduos, enquanto a realidade mesma lhes escapa. O trabalhador total é sobrepujado pelo automovimento do capital: o capital, neste processo, aparece como sujeito consciente que se sobrepõe e determina o andamento dos supostos sujeitos trabalhadores (caso se queira, pense em como o ritmo de trabalho é determinado pelo ritmo da máquina e não, ao contrário, o trabalhador quem determina o ritmo dela; ou mesmo como o “mercado” determina o ritmo e a quantidade de produção e produtividade de um dado ramo – por exemplo, mesmo um trabalhador “autônomo” depende das flutuações do mercado, dos investimentos na ciência e, por conseguinte, do desenvolvimento tecnológico, depende da demanda, da “moda” e etc.. Aliás, não determinamos nem mesmo o tempo e o ritmo de nossas caminhadas). Existe um sujeito na sociedade capitalista, e este sujeito não se assemelha a nenhuma classe social ou indivíduo: sujeito = capital ou trabalho abstrato [NOTA: deve-se, portanto, entender trabalho como atividade de formação das relações sociais, dos indivíduos, do tipo de relações econômicas, afetivas, intelectuais e do conhecimento, enfim, atividade humana que forma – produz – tudo no mundo humano, inclusive as ideias; em suma, produz os próprios humanos].
O trabalho abstrato é propriedade alienada aos humanos: é propriedade de um sujeito abstrato. Por ser formador de toda a sociedade (e isto se limita à sociedade capitalista, “nossa” sociedade), ele toma para si a capacidade de pôr aquilo que deveria ser posto pelos indivíduos, raiz de toda a sociedade humana: as relações sociais. Os encontros humanos têm como síntese (resultado) a relação social. Os indivíduos se encontram e formam suas relações, (deveriam) determinar como elas se darão, seus ritmos e etc.; no entanto, essa capacidade de determinar o que devemos fazer (e ser) não é mais um atributo humano, não é mais consequência “natural” dos encontros entre indivíduos, resultado autônomo de suas livres decisões. É o capital que põe e repõe as relações humanas, pois toma para a si a síntese de toda a sociedade: as relações sociais. [NOTA: se Experiência e Pobreza, de Walter Benjamin, foi um dos maiores textos da primeira metade do século XX, O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso, de Oskar Negt e Alexander Kluge, é um dos maiores textos da segunda metade do século].
A violência do trabalho morto é a violência radical que os mortos impõem aos vivos. Enterrar os mortos, tal como diz Marx, é destruir a situação de opressão histórica; é, se quisermos interpretar, destruir tudo que já passou mas ainda permanece assolando e dominando o presente e retomar as rédeas da vida.  Em outra passagem, esta na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx diz que ser radical é ir até a raiz, e a raiz dos problemas do humano é o próprio humano, e isto implica na questão que a sociedade burguesa (entenda-se: não somente a burguesia) impõe aos humanos uma forma de dominação radical. A raiz da forma-violência é a forma de relação social imposta pelo automovimento do capital. É neste sentido que a produção da sociedade pela Indústria Cultural expressa todo conteúdo inumano das relações sociais. Inumano = violência em sua forma mais poderosa: abstrata. De certa forma, o que Adorno e Horkheimer fazem é desvendar o que Marx já havia colocado. Em primeiro lugar, compreendem que a categoria trabalho, em Marx, não é uma categoria de simples relação com a natureza; antes, é categoria de fundação das relações sociais. No capitalismo é forma-trabalho, isto é, os modos de relação entre humano-natureza e humano-humano possuem determinações que estão fora do controle humano e se prostram no domínio do automovimento do trabalho abstrato. O que Marx já havia colocado é que toda a sociedade, e não somente a economia (tal como entendem os maus leitores de Marx, tanto liberais quanto o marxismo mecanicista), é produzida por esta forma. A indústria cultural é a forma em que o trabalho abstrato aparece “fora” da fábrica: é como ela, a forma-trabalho, alienada aos Homens, produz todas as relações complexas que se dão na sociedade (isto é, todas as relações além das simplesmente econômicas). Esta produção é violenta na medida em que é alienada (alheia, pertencente a um outro inumano); na medida em que toma dos indivíduos a capacidade de socialização, de realização de suas humanidades no encontro com outros indivíduos, capacidade tomada e reposta por uma entidade abstrata e morta que determina o andamento dos “vivos” (“vivos”, entre aspas, pois sabe-se lá o que seria, de fato, ser e estar vivo; ou seja, vida humana não se resume, ou não deveria se resumir, ao processo biológico). Em outro sentido, a morte mesma, em sentido lato, assola os vivos como uma assombração: o prazer da vida está sujeito a censuras públicas muito mais rigorosas do que o prazer da violência, da tortura e da matança.” (Oskar Negt, Matar não é tabu. Tabu é a morte, p. 161).
Toda violência tem suas raízes na violência da produção da humanidade dos indivíduos. Se os indivíduos são produzidos por uma abstração violenta, nada impede que eles sejam violentos. A violência da indústria cultural é a violência que se instala no âmago dos indivíduos e os faz tratar tudo com o ritmo da indústria, ritmo do trabalho abstrato (e isto inclui as relações mais íntimas, com o corpo do outro, por exemplo, que não é visto para além do objeto de consumo imediato). Ela, a indústria cultural, é a instrumentalização de tudo, otimização e maximização de todas as relações “humanas” (otimização e maximização que se dá, sem rodeios, na esfera da produção industrial e do consumo, onde tudo deve evitar o desperdício e visar o lucro mais alto). Destarte, se a violência aparece como forma-consumo, ela somente pode surgir desta maneira na medida em que é produzida assim. E a raiz, onde ela é produzida, está incrustada na terra infértil do trabalho morto alienado.

Somos violentos sem o perceber; e somente pode ser assim por que a violência aparece como seus contrários (como justiça, autonomia, liberdade e etc.); e isto se dá pelo fato de sermos produzidos pela forma-violência como se fosse a “forma natural”. 

Subsolo!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 3

A educação seria, para alguns, o domínio privilegiado para a contraposição à violência: a superação desta poderia advir deste âmbito. Em contrapartida, é uma esfera por meio da qual a violência se manifesta diluída, bruta, silenciosa (pelo menos na forma), mas com aparência de seu contrário: como liberdade, como campo central por onde uma espécie de emancipação poderia se tornar efetiva.
A asserção famosa de Adorno: “para que Auschwitz numa mais se repita”, era um apelo para que aquele tipo de experiência ganhasse o primeiro plano na formação cultural (social, política e etc.) após os campos de concentração, impedindo seu retorno. Um apelo para que a educação fosse pensada (e agida) na contramão da violência, no fomento da experiência da superação de qualquer situação que pudesse desembocar no genocídio e etc.. No entanto, a sociedade da segunda metade do séc. XX já estava de tal modo “corrompida” pela instrumentalização de tudo que mesmo a consideração da experiência trágica perdera sua força na roda trituradora do imediatismo: tal como, hoje, a morte nos causa “espanto” somente no minuto imediato, a experiência, seja ela qual for, não tem o poder formativo que, claro, demandaria tempo para a “digestão”, tempo do “luto”, no sentido de um tempo necessário para a “incorporação, experimentação e superação” de qualquer experiência.    
Por um lado, a educação “formal” perde sentido ao “adquirir” (ser subsumida) o sentido da sociedade. O ensino básico torna-se uma ponte, um caminho chato mas necessário, para objetivos “mais nobres” (isto é, padronizados previamente): o ensino público, especialmente para as classes pobres, é um “sem-sentido”, uma passagem que não tem serventia. No máximo, é um momento do processo que se pudesse ser anulado, seria – pois, no fundo, é anulado no momento mesmo em que é efetivado. Um momento da vida das crianças e jovens que serve de, especialmente o ensino médio, para o ingresso no “mercado de trabalho”, mas não sem antes, para alguns, passar por alguma instituição que lhes confira os créditos necessários para tanto: instituições de “ensino” superior, que, por sua vez, também constituem um momento carente de sentido porém necessário para o ingresso nesse cenário atual que a cada dia mais se torna a “primeira natureza”. Para a classe média e as mais altas, o ensino básico é um momento de preparo para a vida adulta – vida adulta já pré-programada, tal como, por sua vez, pré-programa a vida infantil e juvenil – isso sem falar das ramificações “padronizantes”: curso de inglês, natação, judô, aula particular disso e daquilo e etc.. O ensino público é um “depósito nonsense” de crianças que para lá são mandadas por pais que, por sua vez, também não sabem de sentido algum, mas se desobrigam perante o Estado de sua função familiar. O ensino privado, ainda que seja parecido em algumas determinações, é a “escolinha básica de padronização e ratificação do ‘capital cultural’ familiar”, isto é, serve como etapa necessária, mas desimportante, para a vida adulta [NOTA: quanto a isso, veja Pierre Bourdieu em seus textos sobre educação: Escritos de Educação].
A educação é uma forma de consumo de mão dupla: como o consumo está diluído, como forma, em todas as determinações da existência subjetiva e objetiva, a educação é um negócio no qual se consomem dados e informações da mesma maneira que se consome tecnologia – isto para não dizer do imediatismo e da contingência, da “desnecessidade” do que é consumido; é consumo, também e por outro lado, da própria humanidade (ou o que restaria dela), consumo como “anulação”, como subjugação da subjetividade na tentativa de uma “reconciliação”, de uma identificação harmônica com a objetividade social: a escola anula a subjetividade ao formar subjetividade (coisificada). Professores e pais também entram nessa roda; não são, ao contrário do que argumentariam alguns, os “salvadores” dentro desse processo: “também o educador precisa ser educado” (Marx: 3ª Tese Sobre Feuerbach). A universidade, salvo poucos domínios, também entra nessa roda.
A “desobrigação familiar da educação”, por outro lado, é fruto direto do desenvolvimento histórico que pode ser resumido em duas características: a dissolução da família tradicional – tradicional no sentido não só da agregação nuclear mas de sua função social, e que, não obstante, possui um sentido peculiar no Brasil – e isso aparece como perda de referências que antes pareciam fixas [NOTa: nada indica que este tipo era melhor em algum aspecto; isto é uma constatação sociológica apenas]; redução da educação familiar à forma do consumo, do investimento como negócio, da anulação do sentimento de perda [isto é, da anulação da capacidade de “perder”, de ouvir “não” – NOTA: há um texto, da Maria Rita Kehl, na coletânea Mutações, intitulado “Depressão e imagem do novo mundo”, que é interessante neste sentido], da transferência da “obrigação” familiar a outros âmbitos – é claro que, como já dito, isto é também fruto da incapacidade da família, seja ela qual e como for, de orientação e criação de laços mais “íntimos” e próprios. Este tipo de perda da referência da atividade educativa (formativa) no núcleo da família é, portanto, fruto do desmembramento do tipo burguês de constituição familiar e da subsunção dos indivíduos que deveriam educar (os “pais” num sentido bem amplo) ao movimento objetivo da sociedade coisificada. Hoje, uma “família” transfere suas responsabilidades, consciente ou inconscientemente, a terceiros. Estes “terceiros”, por sua vez, reproduzem a objetividade social que, aliás, é reproduzida pela própria família como núcleo de “transmissão” de dados culturais e etc. conforme são “educados” pelas mídias (especialmente) e pelo próprio movimento efetivo e dominador da sociedade.  [NOTA: “família”, reiterando, pode ser uma avó, uma tia, um parente qualquer ou às vezes nem mesmo parente: considero “família”, aqui, como aqueles que vivem sob o mesmo teto – mas nem sempre – e que possuem algum tipo de responsabilidade moral e legal uns sobre outros. Ainda sobre família, é interessante o desenvolvimento que Jürgen Habermas faz, principalmente nos capítulos IV e V de Mudança Estrutural da Esfera Pública, no qual liga a decadência da esfera pública à decadência da família de tipo burguês].
Em última instância, a educação familiar é substituída por “drogas” (em sentido lato): da ritalina aos desenhos animados “educativos” (formadores de subjetividade), do consumo desenfreado à glorificação do “ganho”, da conquista individual mediada pelo dinheiro e pelo status que advém disso. Os celulares e computadores – claro está: a internet – possuem mais “respeito” perante as crianças e jovens (e porque não adultos?) do que os próprios responsáveis morais e legais. [NOTA: quanto a isso, dois documentários do Instituto Alana são interessantes: Criança, a alma do negócio e Muito Além do Peso – ambos sobre consumo e formação na infância].

Em suma, a educação ratifica a coisificação na mesma medida em que, aparentemente, poderia libertar; mas ratifica a violência de coisificação como aparência de seu contrário: a educação formal serve para entrar no “mercado de trabalho” e se dar bem por aí (a proliferação de cursos tecnológicos ou de cunho técnico-instrumental, além da grande procura por cursos que garantem status e bons salários, tais como Direito, Medicina e etc., têm raízes nisso), e isso significa perseguir a liberdade e a felicidade – contudo, somente como promessa. [NOTA: importante notar que a promessa, a esperança, constituinte da vida ocidental como um todo desde os gregos, coloca a liberdade e a felicidade humana sempre num lapso de tempo em relação ao presente: é sempre um futuro, mas um futuro que não está distante do presente e, todavia, nunca se realiza. O capitalismo, em seu movimento consciente ou não, opera com isso].


Subsolo! 

sábado, 20 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 2


A violência se dá como forma. No caso do Brasil recente, ela está posta sobre o desenvolvimento da capacidade de disposição de consumo.
A era pós-ditadura militar foi cunhada por um clima de instabilidade, tanto econômica e social, quanto política e cultural. Os desenvolvimentos cultural e social forjados na ditadura militar se desenrolam, às vezes não tão direto ou claro, até os dias de hoje. Em relação à política, há ainda um amálgama de colonialismo, de violência do Estado (que vem, ressaltando, de tempos de outrora, tanto da formação do Brasil nos séculos anteriores, quanto da ditadura militar recente), de mando desenfreado, de um espaço público (ou de um tipo de relacionamento social) decorrente dos modos de constituição e andamento da antiga casa-grande.
Esta instabilidade é transmutada quando uma transformação mais ou menos silenciosa se instaura na política social a partir de 2002. No âmbito social, um tipo de capitalismo “especial” toma a cena: um “capitalismo puro” – já que não possuidor de resquícios feudais ou do “antigo regime” (para aludir a Paulo Arantes em seu Novo Tempo do Mundo) –, ao qual a “burguesia” deveria agradecer, já que este tipo de direção do Estado salvaguarda um desenvolvimento econômico de longe muito mais seguro que os “modelos” anteriores, e, ainda, ideológico na medida em que sustenta este desenvolvimento na promoção assistencial e outros domínios da política social. Silenciosa, pois, tal mudança não aparece de maneira brusca, não causa estardalhaço (isto é, pelo menos não esta transformação, mas a “opinião pública” provoca um alvoroço tremendo em cima de fantasmas e assombrações criados pela própria opinião pública, tanto ideológica quanto ingênua). Todavia, ainda que não fosse a “intenção consciente” assegurar uma economia estabilizada a partir de uma sociedade aparentemente estabilizada, esse modo de governo alastrou e garantiu tal estabilidade por meio de uma violência, também silenciosa, que reduziu tudo à identificação com a forma do consumo. Violência, pois, a redução de tudo à forma do consumo é a restrição e a identidade, mesmo daquilo que não é e não deveria ser idêntico, ao modo de “oferta-procura”. De um e outro lado, toda a formação humana, complexa e múltipla, é restringida ao modo de consumo: o tempo que se passa com o filho, por exemplo, é pautado pela forma do consumo – ou o indivíduo se abstém da educação e a substitui por algo que pode ser “pago” (e, por isso mesmo, possui existência imediata e satisfaz imediatamente), ou trata do filho na forma do “negócio”, como um investimento em médio ou longo prazo (poderia ficar elencando várias situações aqui: não é a intenção; por meio desse exemplo limitado, pode-se compreender e pensar em todas as situações possíveis em torno disso). Toda relação humana (ou social, caso se queira) é reduzida a este imperativo da forma-consumo. A violência desse tipo de relação é a violência da reificação, portanto, é uma violência da produção da sociedade e das subjetividades (deformadas) e não somente violência de uma “consequência” social natural, da “circulação”: trata-se, primeiro, do consumo como produtor e não como consumo de algo já produzido. Em outras palavras, a forma do consumo não se dá na “livre escolha” do que pode ser consumido (comprado etc.), ou de um consumo como algo decorrente de outro campo (da produção material, por exemplo). Tal como uma propaganda (um “comercial”) não é feita para vender um “produto material”, visível e palpável, mas, antes de tudo, vender (no imperativo: impor) um modo ou estilo de vida, de comportamento e etc. (vende-se, na propaganda, uma ideia, o produto pouco importa), o consumo não é algo concreto, mas abstrato: é um modo de existir e que tende a se transformar no único modo de existir. Reduz, portanto, toda existência à identidade da forma-consumo; produz toda a existência por meio dessa forma.
Na mesma medida contraditória em que “melhora” a vida singular de cada um de nós (principalmente dos mais pobres), este tipo de manutenção e produção da existência social, por meio de uma política sócio-econômica que alia de forma ímpar a política social com o crescimento econômico capitalista[1], destrói a possibilidade de uma formação cultural, social, humana, em que seja possível o diferente como diferente: por mais que na aparência o diferente exista, ele só ganha existência social e efetiva ao se igualar, ao se identificar ao todo. Mesmo a “contestação” e a oposição ao sistema, ou às suas designações, são engolidas, sem o saber, por esta identidade: à forma-consumo. O diferente, aqui, só é diferente quando é igual. A deterioração da existência humana (e não entendamos humano como algo romântico, um apelo a uma “época de ouro”) é evidente: tudo que é humano, que é reivindicado como tal, não é mais humano; ou, de outra forma, só é humano na medida em que se iguala à coisa, ao movimento peculiar da coisa (da coisificação): na medida em que é, portanto, movimento de produção e de “compra e venda”. Tudo deve ser consumido, inclusive a si mesmo – e, portanto, tudo deve ser imediato. Consumido da mesma forma de consumo do objeto de “desejo” imposto (“imposto”: mas que aparece sob a forma da liberdade irrestrita) pela ordem vigente.
A ordem de consumo destrói não somente a educação e a formação cultural tradicionais, em suma, a “vida tradicional”. Destrói, junto, (quase) toda possibilidade de construção autônoma do humano por sua própria atividade (destrói e joga a práxis para o domínio do romantismo messiânico – NOTA: sobre este aspecto, o texto Notas marginais sobre teoria e práxis, de Theodor W. Adorno, é interessante). Esta destruição é violenta e não poderia deixar de ser: ela aparece como construção, como formação, e aí está sua violência mais perversa.  



[1] É importante lembrar que, até o fim do século XX, a tentativa de manter uma política social se dava, quase sempre, à revelia do desenvolvimento econômico; isto é, “investir” em programas sociais era, inevitavelmente, onerar programas econômicos de crescimento capitalista. Ainda que não esteja em “estado de graça”, em perfeição, o governo Lula e sua continuidade (governo Dilma), são a expressão mais nítida disso. Aliás, não é por acaso que o Brasil vem tomando cada vez mais lugar e posição no mundo competitivo global. O que parece é que, ainda, aqueles que tentam entender a “fórmula Brasil” e aplicá-la, não se deram conta dessa equação singular (e, digamos, única) entre política social e política econômica. 


Subsolo!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 1


Falar sobre violência deve ser algo crítico-reflexivo e radical. Deve-se, antes de tentar elencar os tipos de violência, refletir acerca de sua diluição lá onde ela parece não existir, domínios que parecem estar distantes do que se entende comumente por violência. De pronto, é importante alerta que violência: 1) não é somente física, visível; 2) permeia nossa história como um todo, tanto nossa história “individual”, que diz respeito ao âmbito subjetivo singular, quanto a História objetiva, história da formação de um povo (história da formação e desdobramento da sociedade brasileira desde seus primeiros momentos[1], por exemplo). Pode-se chamar, de um modo um tanto quanto abrangente, esta violência que muitas vezes se manifesta como seu contrário, de violência simbólica (ainda que este termo, reiterando, seja demasiado abstrato).
Se começarmos de uma possível conclusão – ou seja, do fim ao começo –, a violência mais poderosa é aquela diluída em determinações que nada parecem com violência: liberdade, autonomia, reconciliação, entretenimento, educação (tanto educação “em geral”, aquela que não é delegada – ou não deveria ser – à escola e a educação escolar propriamente dita), lazer, trabalho e assim por diante. Nestes domínios, o ato violento per se está contrariamente presente: diluído de modo a não ser notado e, ao mesmo tempo, concentrado de modo bruto. Não ser notado no sentido de que qualquer um que seja o mínimo atento, dirá que aquele que percebe violência ali está “forçando” ou mesmo abstraindo em demasia. Concentrado pois se manifesta nestes campos de forma bruta, como “matéria-prima” de toda violência. Isto indica, por si mesmo, que a violência se dá como forma mais do que como conteúdo.
A forma da violência não é somente o “tolher” a liberdade do outro, tanto porque esta “liberdade” pode ser também um tipo violento. A violência é negativa em sua positividade: ela nega a formação ao formar. Nega as potencialidades formativas (a formação do indivíduo como ser autônomo; formação cultural e etc.) ao impor uma formação dupla: como conformação ao existente; como via de mão única. Ambas se imbricam. A conformação àquilo que existe (modos de ser, de se portar, de pensar e etc.) somente pode ser viável na medida em que aparece como a única via possível a ser satisfeita. (NOTA: até aqui, para aqueles que conhecem a Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, ou mesmo os outros textos de Adorno, especialmente, nada de novo).
É violento, por conseguinte, o ato de banalizar a existência do outro. Em verdade, o outro aparece de imediato como meio para minha satisfação e prazer. Meio, pois, ao banalizar a existência do outro, ele somente poderá aparecer dessa forma[2]. Aqui três implicações: 1ª) minha satisfação e prazer também são violentos na medida em que, por um lado, são coisificados, isto é, são “amoldados” ao padrão existente do que viria a ser satisfação e prazer, e, por outro, ocorrem na medida da anulação do outro, de qualquer humanidade, ainda que parca, que este outro poderia ter; 2ª) a banalização da existência do outro é, no mesmo ato, banalização de si mesmo, já que sou “outro” daquele outro, e, além disso, a banalização é um universal, isto é, não importa quem está sendo banalizado: o ato, por si só, atinge os indivíduos singulares por estes serem indivíduos dentro de uma situação, de uma dada sociedade, que independe de quem é este indivíduo – qualquer um pode ocupar o posto do “outro banalizado”; 3ª) o outro como meio para minha satisfação e prazer é fruto de uma coisificação prévia, ou seja, somente utilizo o outro como coisa, como meio, por ele já estar coisificado, isto é, porque ele já foi coisificado antes de entrar nessa “roda viva”. Por exemplo: a morte do outro é algo banalizado. O que morre é um outro que me dá prazer em ver morrer. É um que deveria morrer, ou, de outra forma, que foi bom ter morrido. Satisfaz a mim que esse outro tenha morrido, pois sua existência é um nada ou um estorvo não só para mim, mas para todos. Além disso, mesmo quando quem morre não “merecia” tal fim, sua morte é negativamente prazerosa: “pelo menos não foi comigo ou com algum ente querido meu”. Ainda, a morte é jogada como rotina e, por isso, mesmo aquela morte que me “afeta” não me causa tanta estranheza já que estou “acostumado” com mortes pululando na tela da TV ou do computador a cada minuto. Mesmo a morte de uma pessoa pública, que afetaria milhares ou milhões de pessoas, é permeada por um sentimento de luto efêmero, passageiro e, no mais, uma forma de satisfazer o “rito social” de “sentir pela morte do outro” (se você não sente, então você é esquisito, não está adaptado ao mundo, é desumano, um alienígena e etc.); esta morte de um outro “querido” é também, numa reviravolta, uma forma, mesmo inconsciente, de minha aparição: ainda que inconsciente, eu apareço, ponho a mim mesmo na cena pública, compartilho do “sentimento” coletivo (ainda que um sentimento vazio), ganho status (ou “likes”) e me socializo. A morte é forma de autopromoção pelo luto. Não há nada que seja mais violento, pois toda violência como forma desponta assim. Pode todo esse relato parecer estranho ou abstrato: cabe lembrar que, ao contrário, isso acontece todos os dias, em todos os momentos, e existem programas “jornalísticos”, “policiais”, diários, especializados exatamente nisso. Por fim, é exatamente por conta do luto ser banalizado e, por isso mesmo, inexistir, que quando ele deveria ser real (a morte de uma mãe, um filho etc.), não consegue emergir, não consegue atingir o status de momento necessário, assim, sobremaneira, ou se torna patologia ou reverte em mais violência (que não deixa de ser uma patologia). [NOTA: Oskar Negt tem um texto intitulado “Matar não é tabu. Tabu é a morte”, no qual consegue, de forma ímpar, relacionar o tabu da morte com os desdobramentos da atual sociedade “violenta” do capital].
Isto, por si, demonstra como a violência está diluída no cotidiano desta sociedade como seus contrários: informação, conhecimento, direitos, justiça e etc.. Isto indica, além do mais, que a violência é tão-presente, de modo superlativo, que é praticada sem a menor parcimônia. Ela é. E por ser e não se apresentar como tal deve ser ratificada e exercida. Em suma, violento não é (somente) o apresentador do programa de carnificina que é transmitido na TV aberta todas as tardes. Violento é (também) aquele que ratifica e dá pleno aval para toda essa simbologia da violência, para toda a violência (física ou não) perpetrada ao outro – e consequentemente a si mesmo. Violentos, pois, são momentos, determinações singulares do universal. Em palavras “inteligíveis”: violentos são os indivíduos na medida em que são dominados e determinados a pensar e agir conforme as designações da estrutura social, estrutura esta que impõe um tipo abstrato (não concreto ou direto) de dominação de todas as instâncias da vida, desde a intimidade ao espaço público como um todo. E só pode ser assim na medida em que ela, a violência, aparecer como seu contrário, ou seja, ocultar a si própria e somente se mostrar com seu sorriso sensual (e sarcástico). A forma de dominação, violenta já no conceito, em vigor desde, pelo menos, a segunda metade do séc. XX e potencializada agora é aquela em que mesmo aqueles que “combatem a violência”, mesmo a “oposição”, são engolidos por sua dança ritual sensual e hipnótica: a violência e a dominação perfeita aparecem como a liberdade perfeita. [NOTA: um “desembargo” - dos EUA em relação a Cuba - a esta altura do campeonato não é um dizer “a dominação fracassou”, mas um dizer este tipo de dominação fracassou: usemos um mais potente”. E este mais potente é impossível fugir: qual escolha se tem?; o que se pode fazer?. Dominação perfeita é aquela que torna a tendência de via de mão única em via de mão única efetiva: supera a tendência ao efetivar, ao tornar realidade fática (e fétida!), ao transformar o “pode ser” em “deve ser”; transformar o “hipotético” em “imperativo”]. A violência é um processo, ao passo que os atos diretos e concretos são manifestações imanentes do processo total.    





[1] Sobre este aspecto, indico o artigo de meu amigo Marcelo Tomassini sobre “Sadismo de Mando” em nossa formação como povo brasileiro. Ainda que seja específico a um ponto – “nossa vida colonial” –, é um ponto interessante e que joga luz sobre outros aspectos que devem ser pensados desde este ponto de vista. Veja o Artigo: “O sadismo de mando como liberdade deformada de nossa via colonial”

[2] Escrevi, em momentos diferentes, vários textos que tratam dessa mesma problemática, aqui mesmo no blog: em agosto de 2012, Incursões no mundo cotidiano: notas sobre o “Criança ‘Esperança’”; em outubro de 2012, Sobre algo (e algoz)em dezembro de 2012, Barbárie expressa, não-contida, contemporânea...em fevereiro de 2013, A Experiência da Morte e outras paradas; em abril de 2013, Lógica inversa: Esclarecimento como contrassensoEstado Paranoia; e, Afazia dos tempos e um diagnóstico perturbador; em maio de 2013, Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano; em junho de 2013, A inumanidade da existência cotidiana: puxadinhos, modernização, especulação, exclusão; e, Todo ato de violência deve ser condenado!; em agosto de 2013, Sobre médicos, doentes e...; em outubro de 2013, Um fantasma ronda a...; em novembro de 2013, O Desespero do mundo ou O Medo como forma de existência; e, Ostentação, Consumismo: Século XXI; em janeiro de 2014, um artigo mais detido sobre violência do Estado e da criminalidade: Mais um ataque: Capitães-do-mato e outsiders na farsa histórica brasileira; em junho, A Esfera Pública do Capital; em setembro, Racismo cínico e Vitimização do agressor; e em novembro, Versando sobre a não-identidade.

Subsolo!


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Versando sobre a não-identidade


Na teoria de Theodor W. Adorno o ponto central, talvez possamos resumir assim, é a não-identidade, a ruptura negativa da pseudo-harmonia da realidade existente[1]. E isso não deve ser entendido como algo posto pela teoria, ou mesmo uma “utopia” – algo que está fora e além, no futuro, de qualquer realidade. A negatividade é propriedade das coisas, ou, como diria Adorno, do objeto, do movimento da própria realidade. No entanto, a negatividade não é aparente, ou melhor, é ocultada para o bom andamento do todo – diga-se, do todo ideológico. Se nos limitarmos ao capitalismo como sistema social, não só como modo econômico, podemos dizer que ele se compõe como uma sociedade duplamente falsa: em primeiro, um todo falso pois fruto da “práxis do objeto”, isto é, da atividade reificada do próprio capital e não obra dos Homens; em segundo, consequentemente, uma sociedade falsa pois oculta sua verdade (ou melhor, como diria Adorno: o núcleo temporal e dialético da verdade), e, ao ocultar, faz aparecer uma harmonia, supostamente preexistente, como verdade natural e eterna.  
Sucintamente, a primeira determinação – falsidade como práxis do capital – pode ser compreendida caso se leve em consideração a teoria madura de Marx. O capital, por um lado, é produto da atividade humana. Todavia, por outro, é ele quem põe as possibilidades para que essa atividade humana se realize, isto é, ele determina sua própria produção (ou autorreprodução). Nesse movimento, o capital toma para si a capacidade de pôr aquilo que deveria ser síntese (resultado) da relação entre os Homens e entre eles e a natureza: as relações sociais. A práxis não é mais obra dos humanos, ainda que seja domínio do sujeito. Contudo, o sujeito agora é o capital, ele que produz a sociedade em sua totalidade[2] – aliás, a reprodução da sociedade se daria, em Adorno, pela indústria cultural, pela formação (Bildung) determinada pelo movimento abstrato da sociedade retirada ao controle humano.
Com isso, a segunda determinação que colocamos – a dialética da sociedade ocultada por uma pseudo-harmonia – versa exatamente na tentativa constante de não deixar aparecer as contradições sociais e, quando aparecem, isolá-las e colocá-las na conta dos indivíduos, dos grupos e etc.. Mas, não só isso. As contradições que aparecem são, quando muito, fenômenos derivados das contradições fundamentais e, por isso, no mais das vezes são incorporadas pela totalidade falsa a fim de fortalecer esta totalidade, o capital. Em suma, toda contradição poderia, caso fosse aprofundada, levar às contradições mais basilares, deixar à luz do dia seu núcleo e, com isso, tender a superá-la. No entanto, antes que isso aconteça, podemos dizer assim, o capital “dá um jeito” de incorporar o diferente – aquilo que é não-idêntico e, por isso, iminente ruptura – e torná-lo “igual”, “mesmice”. Se quisermos, um exemplo simples disso são os “movimentos alternativos” que, na aparência de diferença, se perdem na mesmice sem perceber: indústrias “alternativas” são criadas para estes nichos, apresentam-se como diferentes, mas a lógica dura do capital não se altera: são consumidores atentos na mesma medida em que a acumulação cada vez mais crescente é igual aos demais ramos da “indústria tradicional”[3].
Na teoria adorniana, a experiência negativa de ruptura, que poderia levar as contradições às últimas consequências, é podada e incorporada, sugada e subjugada pelo movimento do capital. Porém, como dissemos acima, a aparência de diferença se mantém, ainda que somente como aparência. E é nessa manutenção da aparência que o diferente, agora tornado igual (ou, o negativo, agora tornado positivo), vale-se, é na aparência que ele se apega e leva adiante seu giro em falso sem que perceba sua coisificação, sua conduta quase plenamente controlada.
Ainda assim, dissemos que a não-identidade é propriedade do objeto, não da teoria. E sendo formadora do objeto, imanentemente, a negatividade sempre tem potencialidade de romper com a realidade dada, ainda que nem sempre isso aconteça. Podemos exemplificar isso, de forma tanto quanto sucinta, remetendo-nos a Nietzsche. Em Nietzsche, em sua filosofia da linguagem, os objetos possuem várias determinações e mesmo um objeto semelhante a outro nunca é igual ao outro. No entanto, para comunicar, precisamos isolar toda diferença, ainda que mínima. O problema é que ao fazermos isso, tomamos aquela qualidade singular do objeto como a totalidade do objeto, escondendo e, por fim, esquecendo aquelas qualidades que ocultamos[4]. Em suma, conceituamos as coisas, isto é, criamos conceitos a partir das coisas e, inversamente, achamos que os conceitos que criaram as coisas. Por ex.: quando dizemos que uma folha (de árvore) é um conceito, tudo que for “folha” entrará nesse conceito, isto é, tudo que existir como tal em árvores – árvores diferentes entre si; folhas nunca iguais umas as outras – será “folha”. Logo estaremos dizendo, como a leitura mais corrente (e também mais senso comum) de Platão, que existe “A folha”, um conceito abstrato do qual todos os entes existentes e concretos são “cópias imperfeitas”. Abrimos mão das múltiplas diferenças dos objetos para dar plena atenção a uma característica determinada (formato, cor, tamanho etc.). Fazemos o diferente se tornar igual e, numa inversão, dizemos que essa qualidade de ser “sempre-igual” é das coisas e não de nossa incapacidade... Aliás, se quisermos um exemplo atual, em São Paulo, especialmente na capital, o Nordeste e o Norte do país são uma só coisa, homogênea, na qual todos têm os mesmos costumes, o mesmo sotaque, a mesma cor de pele, formato de cabeça e etc., e todos se conhecem. Aqui, todo mundo é “baiano” (em tom pejorativo). A mesma coisa acontece quando se fala de África. Ela não é um continente, com vários povos, matizes, culturas e etc.: é uma rua onde todo mundo joga bola junto e fofoca da vida alheia; e, quando não, possuem alguma DST ou ebola... Mas aqui, nestes exemplos, o “sempre-igual” aparece mais por preconceito e discriminação do que pelo movimento abstrato da Coisa.
Enfim, a identidade, em toda sua extensão, é aquela feita com e partir do capital, mediada pela reificação dos indivíduos. Toda identidade é anulação das diferenças intrínsecas no objeto[5]. Identificar, no capitalismo tardio, é coisificar, tornar igual aquilo que não é igual; tornar tudo idêntico ao “sujeito objetivo” desta relação: a sociedade abstraída do controle humano e posta pelo capital; em última instância, tornar tudo idêntico ao capital, à coisa e suas determinações objetivas. Tudo que se identifica perde sua identidade dialética, negativa; sucumbe à aparência dominante e dominadora da realidade efetiva. Assim, trazer à tona a não-identidade, pela interpretação, pela teoria, é um meio de combate prático à redução fetichista do capital, desta sociedade que engole tudo.
Se quisermos deixar “concreta” toda essa “abstração teórica”, podemos nos referir aos movimentos que existem e que, cada um a seu modo, combatem as mazelas da realidade efetiva. Os negros, por exemplo, desde sempre, especialmente nas Américas, foram levados a criar uma identidade negativa, isto é, criar sua própria identidade não simplesmente para se diferenciar dos demais, mas para resistir aos demais, ao movimento objetivo opressor. No entanto, sucintamente falando, não cabe manter a criação da identidade negra perpetuamente: enquanto, como negros, tivermos que nos diferenciar para resistir, existirá a opressão, isto é, somente teremos que criar uma identidade própria enquanto existir o modus operandi que cria essa necessidade. Todavia, a própria sociedade tende a “nos incorporar”, a nos “incluir”. Só que a inclusão do excluído, nesse todo, é subjugação. A ruptura está não em identificar, mas em romper com o “princípio que identifica”: a identidade dos negros é o não-idêntico dentro do capital e tende a romper com essa sociedade. Em outras palavras, a superação do racismo não é a inclusão dos negros, mas a superação da condição dos negros: destruir as condições objetivas que nos determina a ser negros, que nos determina a ter que criar essa identidade negativa de resistência. Somente com a ruptura das condições objetivas que propiciam o surgimento dessas situações de opressão é que poderemos vislumbrar inclusão efetiva: somente como “negro superado” que seremos incluídos; ou seja, somente seremos incluídos quando não formos mais “negros”, mas pessoas, em toda nossa multiplicidade.
Por outro lado, da mesma forma que nos remetemos ao exemplo de Nietzsche, acima, podemos dizer que temos de superar nossa condição que nos “conceitua”, nos determina por apenas um de nossos aspectos. Enquanto a redução de nossa identidade humana for posta em um dos aspectos de nosso corpo (aliás, se quisermos, Aristóteles chama estes aspectos de “acidentes”, visto que são inessenciais), teremos situação de opressão. Da mesma forma, enquanto olharmos e classificarmos pessoas pelos gostos, opções, orientações sexuais e etc., reduzindo todo o humano ali a alguma determinação singular, teremos uma situação que gera e retroalimenta a opressão. Nesse sentido estrito, o humano completo surge, com força, como o não-idêntico: a afirmação da complexidade e multiplicidade rompe com o simplismo ao qual fomos submetidos, obrigados a viver. A violência do idêntico é a violência de uma sociedade que preza pela mesmice: o diferente deve ser eliminado por conta de seu perigo à totalidade[6].
Enquanto uma determinação singular tiver o poder de conferir significado à totalidade, tanto do indivíduo quanto da sociedade, viveremos em situação de violência, de opressão e dominação. (Por ex.: um indivíduo negro é, antes de tudo, reduzido à condição de “ser negro” e todos os “adjetivos” e “atributos” negativos e positivos que vêm junto a isso, para depois, caso prove que seja “digno”, seja visto como pessoa). A superação das opressões e da dominação só pode se efetivar caso se leve a não-identidade às últimas consequências que ela pode levar: ruptura com a situação que a oprime. Em suma, ruptura com a totalidade social capitalista – com o capital e a complexidade das relações sociais colocadas por ele.  





[1] Quanto a esta questão, quem quiser aprofundamentos, veja os textos tardios de Adorno. Aqui indico, especialmente, “O Ensaio como forma”; “Sobre Sujeito e Objeto”; “Notas marginais sobre Teoria e Práxis”; a Dialética Negativa; e, ainda que não sejam textos tardios, a Dialética do Esclarecimento e a Minima Moralia.

[2] Quanto a esta questão, confira os textos maduros de Marx, especialmente os Grundrisse e O Capital. Também indico “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”, de Oskar Negt e Alexander Kluge. Além destes, Tempo, trabalho e dominação social, de Moishe Postone (sobre este, uma tradução recente saiu pela Editora Boitempo – aliás, tradução tão aguardada há anos! Contudo, ainda não tive contato com esta recente tradução. Levando em consideração o rigor da Boitempo, imagino que seja válida e boa).

[3] No texto “Indústria Cultural...”, Adorno e Horkheimer demonstram isso, inclusive com exemplos. Por todo o texto e, especialmente, no último parágrafo há um exemplo elucidativo.

[4] Escrevi um texto sobre a relação entre a filosofia da linguagem de Nietzsche e sua relação com o não-idêntico em Adorno. Cf. A Primazia do Objeto: esboços da relação Nietzsche-Adorno.

[5] Cabe referenciar, ainda que eu não vá desdobrar esta questão aqui, que o sujeito, para Adorno, deve ser tomado como objeto, como composto em seu núcleo pelo objeto, isto é, ele mesmo produto do movimento de constituição da História e da sociedade, ele mesmo produto da relação com o objeto e, no capitalismo tardio, produto da “vontade objetiva” do objeto.

[6] Sobre isso, escrevi algo há algum tempo aqui mesmo no Diálogos do Subsolo. Confira: Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano.

Subsolo Urbano!


domingo, 26 de outubro de 2014

Dois Textos...

Dois textos. Ambos constam nos Anais do Seminário da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. O primeiro de 2012, o seguinte de 2013. O primeiro texto, sobre Habermas, já está superado: minha dissertação, sob orientação do Professor Wolfgang Leo Maar, supera em muito a pequena elaboração daquele artigo. Mesmo assim, é importante registrar, já que o texto, mesmo superado por pesquisas posteriores, é uma contribuição às pesquisas sobre Habermas. Cabe notar, também, que este texto faz parte do momento inicial de minha pesquisa, portanto, um esboço geral sobre o tema. O segundo texto é sobre Theodor W. Adorno, ou melhor, sobre a relação entre a filosofia da linguagem de Nietzsche e a teoria madura de Adorno: as apropriações e atualizações dialéticas que este faz sobre a teoria daquele. Enfim, cabe o registro aqui, visto a importância de se pontuar os progressos teóricos e a inserção prática da teoria na realidade efetiva.
Seguem os links:




Subsolo Urbano!

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Racismo cínico e Vitimização do agressor


No caso do goleiro do Santos, Aranha, uma coisa é sintomática: o preto que não age como “pai Tomás” é rechaçado e, numa inversão, transformado em agressor. Aranha agora está sendo visto, mesmo que não tão descaradamente, como o “ponta de lança” da situação: ao não “desculpar” a vítima, ele se torna pessoa cruel, insensível, intolerante, não compreende a situação e, por isso, é desacreditado, sendo culpado por sua não-reciprocidade. Há duas questões importantes nisso: 1º) o racismo no Brasil é tão velado que quando surge, surge como aberração, como patologia e, por isso, o diálogo – à moda deles – deve ser aceito e o acordo que envolve a aceitação da desculpa por parte do agredido deve ser ratificado (caso contrário, ele se inverte e o agredido perde seus créditos morais. Imagine um caso simples: alguém é, digamos, estuprado; o estuprador pede desculpas e quando o agredido não aceita é visto como culpado da consequência da situação, sendo que poderia ter acabado com o problema caso tivesse aceito as desculpas do agressor. No fim, aceitando o pedido de desculpas, o agressor sai, pelo menos em relação à sua “honra” e sua consciência, satisfeito e imune); 2º) o racismo é sempre um caso individual – o agressor age por impulso e o agredido deve agir racionalmente – isto é, não há um contexto, uma estrutura social e histórica por detrás da agressão; há apenas duas pessoas (nesse caso) que se agridem (mutuamente, segundo o raciocínio dos “apaziguadores”).
Existe um racismo estrutural: ele acompanha a história social de constituição da sociedade brasileira. Por isso, ele está em todos os lugares sem estar em nenhum local definido. Um tipo “espiritual” que compõem as mentes das pessoas antes mesmo de elas virem ao mundo, antes de nascerem. Não é o branco que é racista: ele, sem dúvida, é um dos polos irradiadores mais fortes e visíveis; mas o racismo é tão impregnado na constituição da sociedade e da individualidade que ele “desaparece” quanto mais forte fica. A moça que, sem querer, “deu a cara à tapa”, além de não ser um caso isolado, talvez não seja mais racista que o Pelé, por exemplo. É claro que existe uma diferença: o Pelé tem a pele preta, mas para por aí. Ser preto, no Ocidente (para não limitar ao Brasil), vai além da cor da pele. Ser preto é constituir uma vontade “negativa”: ter a pele preta é contingente, não se escolhe a cor com que se vai nascer e viver para sempre. Ao contrário, ser Preto é uma questão de escolha: é a escolha de criar uma identidade que se identifica, de pronto, com a resistência que é viver a cada dia tendo que defender algo que se construiu à duras penas. A identidade do Preto é a todo o momento atacada – temos que defender nosso cabelo, nossas escolhas, tanto as escolhas simples quanto as mais complexas, defender nosso corpo e etc. – e, sendo atacada essa identidade, ser Preto se torna questão de resistir tentando assegurar quem se é sem sucumbir, o que é difícil em demasia. E a resistência é a negação da harmonia pré-estabelecida na estrutural social que beneficia quem sobrevive à custa da violência do racismo (e de outras). Isto é: resistir é ser posto, por quem manda, na posição de agressor da harmonia do todo, da boa convivência, da cordialidade. E sendo agressor da cordialidade, não deve ser digno de respeito. Quando, ao contrário, o sujeito com a pele preta nega a existência do racismo, ele se torna um agressor por excelência: quem vai discordar de um preto que não se vê rebaixado pelo racismo e nega a existência dele? Ele é o discursador perfeito para o caso. No entanto, ele pode ser preto, mas não é Preto.
Pelo fato de ser estrutural, o sujeito racista não se vê como racista. Ele age, consciente ou não, de acordo com o que é orquestrado. O Preto, que assim se designa, e não consegue enxergar para além da condição do racismo direto (aquele no qual o racista tem uma face definida), sucumbe ao racismo. As causas do racismo vão para além do ato pronto e acabado: se o racista “não existe” ou não aparece, não significa que não exista o racismo. Em outras palavras, ser contra o racismo mas ser de direita, por exemplo, apoiar o sistema social opressor, é, contraditoriamente, ser racista sem o saber (ou sabendo e fingindo não saber, que talvez seja pior). Estruturalmente, os pretos foram usados na Colônia para gerar riqueza, ao mesmo tempo em que eram inferiorizados; na passagem para o sistema social capitalista, o preto é usado para... gerar riquezas, e é inferiorizado servindo como “bode expiatório” da situação vigente: ele é culpado até mesmo quando é vítima (aliás, grosso modo, a situação da mulher e do homossexual não é muito diferente, neste caso).

Punir o sujeito concreto que cometeu um ato racista não acaba com o racismo. É exemplar; o sujeito deve ser punido pois cometeu um crime. Mas não altera a situação “abstrata” da estrutura racista. Contudo, não o punir é ratificar o racismo abstrato (este estrutural) e o concreto (cometido por pessoas nos mais variados modos). Mas a punição não deve extrapolar a legalidade: o racista deve pagar pelo crime de racismo e não com pena de morte e etc., não deve pagar com a vida, com sua existência individual e de sua família, sua pessoa e etc.. Caso pensemos assim, estamos dando um tiro no pé: ratificamos a vingança sob o pseudônimo de “justiça”, da mesma forma que a estrutura racista quer reduzir maioridade penal para se vingar do seu reflexo no espelho, o seu outro que é sua sombra perversa; todavia, como uma bela sombra, é a imagem desfigurada de si mesmo. O caso da punição deve ser educativo, não vingativo. Ainda assim, é necessário que ela aconteça, que a lei seja cumprida, que a punição seja dada. Ela, reiterando, por si só não é educativa. Deve vir acompanhada de um processo estrutural de modificação da situação racista. E é necessário que ela aconteça para que a vítima não seja transformada – como já está sendo – em agressor. E não seja tratada como vítima no sentido do “coitadismo”: ser vítima não deve rebaixar o indivíduo ao plano inferior de “vítima em todos os casos”. Da mesma forma ser agressor não deve, por um lado, colocar a veste do diabo na pessoa e, por outro, tentar tirá-lo de sua culpa: se assim fosse, o agressor ganharia as graças do público, seria visto como aquele que merece cuidados e atenção. Isso não deve ser aceito em nenhuma hipótese e por ninguém que queira receber o adjetivo “humano”. 

Subsolo!