quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Crise de Representação – ou – “Crítica” até o ponto em que se choca com o ego


Um dos pontos altos da atual crítica social é a evocação, consciente ou não, de uma falta de representatividade. Oportunidades não dadas são radicalmente (pelo menos radical em aparência) contestadas. Privilégios escancarados sofrem, igualmente, com comentários negativos. No entanto, há duas dicotomias escondidas: em primeiro, o simples fato de haver representação, concreta ou abstrata, satisfaz o crítico, ou pelo menos amaina sua ferocidade; em segundo, e talvez mais importante, privilégios estruturais que se mantêm, ocultos ou naturalizados – que é pior – servem de aporte para o crítico ao mesmo tempo em que suportam sua posição (des)privilegiada.
Ora, no primeiro caso pode-se pensar no ENEM: uma forma de “romper” com (ou melhor, diminuir) algumas das desigualdades sociais, ainda que seja passível de alta crítica. Para se safar da crítica radical, o próprio sistema, contudo, possui um método curioso: temas “humanizadores” em suas propostas de redação e algumas questões, ou mesmo apenas uma, provindas do mais alto escalão da intelectualidade de esquerda. Neste ano, o caso foi uma questão fundada num dos textos mais importantes – ou talvez mais falados – do século XX: A Indústria Cultural, de Theodor Wiesengrund Adorno e Max Horkheimer. Com a questão proposta, a prova do ENEM recebeu elogios até dos “mais ferrenhos” anticapitalistas. Os temas de redação, igualmente, do ano passado e deste, especialmente, dão férias aos dedos críticos que se esparramam pela suposta esfera pública atual – as redes sociais. Todavia, o que não se pensa do ENEM é sua forma, independente de seu conteúdo, e o que esta forma carrega em si.
Ainda que o ENEM supostamente confira algum tipo de ruptura das desigualdades de acesso ao ensino superior, ele acarreta na degradação da forma do conhecimento – e mesmo na igualação formal de um conhecimento coisificado, que só é conhecimento quando se filia àquilo que está sendo e pode ser, e à forma como é, pensado. Supostamente confere alguma ruptura, pois, por um lado, enriquece o lobby das universidades técnicas, que substituem o antigo ensino médio em “formação” de mão-de-obra barata – portanto, não forma, de modo algum, pensadores e pesquisadores de alto nível –, ao mesmo tempo em que mantém a divisão de classes: seletivamente – mas agora com uma sutileza a mais –, lega as grandes universidades (também elas apodrecidas – contudo, isto é outro assunto) para os de sempre, enquanto os novos atores (majoritariamente pobres) são deixados, mais uma vez, na posição subalterna – entretanto, agora com um toque de classe ascendente que nunca ascende. Por outro, mantém e ratifica a fórmula liberal com ares de “progressismo”. A fórmula é velha conhecida: isolam-se as desigualdades reais para elevar a igualdade formal à universalidade. Um “Exame Nacional do Ensino Médio” que mede os “conhecimentos” adquiridos (sempre supostamente) por estudantes oriundos do segundo ciclo do ensino básico, tanto particular quanto público, deve necessariamente abstrair das desigualdades (que engloba os regionalismos) entre os indivíduos para se efetivar – além de, é claro, “provar” que o ensino público faliu e que a saída para isso é a privatização do mundo! É a fórmula liberal: negam-se processos sociais de engendramento das ultradesigualdades sociais a fim de tratar todos como “iguais perante as 180 questões e uma redação dissertativa”. Mede-se, consequentemente, conhecimentos (mede-se técnica e mecanicamente, diga-se) adquiridos em 3 anos (mais uma vez: supostamente), ainda que de forma abstrata, em 8 horas de prova – diga-se: com a tensão intrínseca à categoria “prova”, com as expectativas de sucesso/fracasso colocados ali, com a suposta possibilidade de ascensão social e, com ela, melhoria de vida e etc.
O ideário liberal que se tornou segunda natureza dos indivíduos, mesmo aos críticos do liberalismo (e de sua forma atual: o neoliberalismo), embrenha-se nas entranhas do processo histórico e o esfacela. O que importa não é a falsidade do processo excludente de uma prova de vestibular – que, diga-se mais, isenta as universidades técnicas dos gastos com vestibular ao substituírem seus próprios processos pelo ENEM; de, também, conquistarem ganhos fixos e avantajados por isenção de impostos por concessão de bolsas de estudos (Prouni) como se fosse “esmola” aos menos favorecidos e etc. –, mas a falta de representatividade: ora! onde já se viu uma prova que não consegue nem mesmo ser plural? Que não considera os pensadores de esquerda e desconsidera o movimento intolerante no mundo (ano passado, tema da redação em torno da questão da mulher e do feminismo; este ano, em torno da intolerância religiosa)! Quando estes entram no jogo, parece que a tal prova foi pluralizada e, de certa maneira, democratizou-se o processo[1].
Numa sociedade na qual, grosso modo, a construção da subjetividade se dá como produção objetiva de sujeitos-empresa[2], que devem investir em si mesmos como mercadoria de valor de uso altamente rotativo e de grande desgaste (por isso a necessidade da constante atualização), torna-se difícil pensar que privilégios sejam privilégios e não produtos de mérito individual. A psique do indivíduo, despreparada para tanta tensão, tende a entrar em colapso diante de grandes frustrações num mundo que não aceita frustrações[3], por menores que sejam. A representação, por um lado e de algum modo, satisfaz o ego desse sujeito-empresa; por outro, a crítica deve satisfazer o ego, não esfacelá-lo – que seria inevitável em caso de uma revolução social[4].
Outro ponto importante do seu discurso [de Fernando Holiday] que constrói o seu fantástico mundo é a ideia da meritocracia. É muito bonito de acreditar que todas(os) têm iguais condições de disputar qualquer espaço na sociedade, sem levar em consideração as profundas desigualdades existentes. O interessante do discurso liberal é que ele desconsidera a história e a trajetória (...). Teoricamente, todas(os) são iguais, têm direitos iguais e isso basta.
No debate das cotas é possível exemplificar bem a fragilidade desse discurso liberal. O vestibular, uma prova de concurso, nada mais é do que um prova com um conjunto de regras e equações e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que têm o melhor desempenho. Nem de longe uma prova como essa mede conhecimento ou capacidade de aprendizagem. Ela apenas reflete os mais bem treinados para aquele padrão de prova. Para quem acredita na meritocracia, o fato de todas(os) concorrentes por uma vaga fazerem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições e aqueles que obtiverem o melhor resultado são os merecedores.
Porém, se a gente analisar esse mesmo processo seletivo, levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que vestibulares e concursos são grande funis sociais. Vamos pegar dois exemplos de pessoas com trajetórias bem distintas. A primeira é uma jovem de classe média, que estuda em escola particular pela manhã, que a tarde faz cursinho preparatório para o vestibular, que tem acompanhamento psicológico, que os pais já possuem ensino superior e a estimulam de todas as formas para o aprendizado. A segunda é uma jovem, moradora da periferia, que estuda a noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados. Essa, se passar no vestibular, será a primeira da família a cursar o ensino superior.
Será que quando essas duas trajetórias se encontram para fazer a mesma prova, com as mesmas regras, elas estão em condições iguais? A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos. [Grifo meu][5]
Duas coisas: primeiro, qualquer coisa que seja feita sem contestar a estrutura das relações sociais, tais como são produzidas e não somente como são reproduzidas, tende somente a “diminuir o abismo”, sem, no entanto, eliminar as desigualdades, nem mesmo criticá-las efetivamente; em segundo lugar, a meritocracia, tal como manda o ideário liberal conjugado ao “jeitinho” intrínseco ao caráter brasileiro, somente é “ruim” quando não atinge o indivíduo em questão[6]. Basta ver que, para este caso, as mesmas estruturas de relações que eram consideradas excludentes, podem ser, por um passe quase mágico, tidas como inclusivas ou como algum tipo de vitória e “diminuição dos abismos” sociais se forem protagonizadas por “gente da nossa gente”, isto é, caso haja algum tipo de representação. Um passe de mágica, um misterioso salto “qualitativo”, que invejaria qualquer Barão de Münchhausen.
O fato dentro do fato – o fato de haver representação dentro do fato de uma prova que nega processos sociais – amaina a consciência crítica, com sua abstração conciliadora e universalista, que não esquece dos “sempre esquecidos”, e, por fim, consegue adeptos e defensores até entre aqueles que dizem “pensar o processo imanentemente”. Quando a aparência de oportunidades iguais camufla a desigualdade profunda e impõe um simulacro de igualdade, ou contesta, ainda que superficialmente, algumas desigualdades, tudo ok! Basta não apresentar o monstro que sabemos existir e que, contudo, negamos veementemente ao mesmo tempo em que vivemos por ele[7]. As desigualdades permanecem e se ampliam, por fim, e a representatividade se esgota com o bater do sino de “fim de prova”.
Por outro lado, os privilégios escancarados – como esse monstro que alguém ousou emergir – sofrem críticas profundas. Não é o caso de eliminar os privilégios, mas de não os deixar tão aparentes. Como modus vivendi do bom caráter brasileiro, é preciso ser radical na crítica ao privilégio para mantê-lo na realidade efetiva tal e qual, mesmo que inconscientemente e mesmo com uma crítica de boa-fé[8]. Privilégios ocultados na realidade ou aceitos naturalmente, como se não fossem privilégios mas o jeito que a coisa é, são mantidos e estruturam as relações. Não se trata, para voltar ao ENEM, de criar uma prova a mais, supostamente mais democrática; trata-se de eliminar, ou ao menos fazer a crítica necessária, qualquer elemento que reduza os processos desiguais a fatos eivados de igualdade formal.
A crítica só “tem razão” de ser na medida em que há uma crise de representação – e não é isso, exatamente, que aconteceu com o Rap, por exemplo, na virada para o novo século quando as condições miseráveis escancaradas que davam base para as letras e para a militância deixaram de ser escancaradas, ainda que não tenham sumido mas se aprimorado e sutilizado? E não é o que acontece, hoje, com a individualidade pequeno-burguesa-crítica que sofre quando seu ego não é minimamente satisfeito? A crítica ferrenha esbarra, exatamente, na manutenção da estase do ego. Ela perde sua razão de ser – até porque, visto o caráter do ego brasileiro, é mais afetivo-privada que racional-pública – onde pede mudança de tudo, transformação radical da realidade, menos de seu ego. Parece que tudo deve mudar, menos o espaço – psíquico, geográfico, sociocultural –, ultra-arraigado e “zona de segurança e conforto”, do indivíduo que exige mudanças.
Não é o caso, para o ego estático que é barreira para as mudanças bem mais que a suposta “direita fascista”, de, por exemplo, garantir proporcionalmente as vagas das universidades públicas para aqueles que não possuem capacidade econômica de pagar um curso particular, provindos da escola pública e comprovadamente pobres. O caso se dá em garantir, gradualmente – gradualmente, aliás, já se foram algumas gerações que morreram esperando a “evolução gradual” e a redução “gradual das desigualdades” –, o acesso ao ensino superior, e que tal acesso mantenha as distâncias necessárias entre as classes: você, pobre, preto, da periferia, que vá para aquelas “universidades” que não possuem projetos de pesquisa nem de extensão, tampouco produza “parte de uma elite pensante” (e a própria ideia de “elite” deveria ser contestada radicalmente), enquanto nós, abastados de Moema, Perdizes e afins, continuamos com os privilégios que já eram de nossos pais e avós, portanto, naturais. Mesmo o mais marxista, o mais radical, reproduz privilégios em seu microcosmo: filas afetivas para ingresso na pós-graduação, indicações diversas, requisição das compensações sociais também para si e etc.
No fundo, ser representado é diferente de ser alguma coisa, de estar lá, concretamente. O Ecossocialismo foi representado com as propostas de mobilidade urbana em São Paulo (cidade) na gestão Haddad. Mas só para “inglês ver”. Menos emissão de poluentes; pessoas mais dispostas por aliar exercício físico, lazer e locomoção... Todavia, a estrutura perversa do capital, que faz suas maiores vítimas na periferia da periferia do capitalismo, continua a todo vapor, a ferro e fogo, sem descanso, num “moinho de moer gente” – como uma das famosas interpretações do Brasil disse sobre nosso processo histórico. O Ecossocialismo, então, nem entrou na pauta – ainda que uma parte dos críticos do capital glorifiquem alguns tipos de pedaladas.
É fácil dizer que o ENEM dá oportunidades àqueles historicamente prejudicados e excluídos. O difícil é saber onde estão as tais oportunidades num sistema que opera, também pelos privilégios egóicos, pela anulação de quaisquer oportunidades ao mesmo tempo com elas pintadas na parede do cenário como horizonte (im)possível – tal como as nuvens e o sol em O Show de Truman.
As questões que ficam são: o ENEM não é um moinho ultrassutil de moer gente? Ou será que há, por meio dele, alguma possibilidade efetiva, social, de mudança estrutural que não venha com o adjetivo “gradualmente” acoplado? Além do mais, não seria o ENEM uma reprodução do Jeitão brasileiro elaborado historicamente pelas elites, copiado, em versão mais “popular” e “menos criteriosa” (mais “de qualquer jeito”, portanto), para servir de pretexto e “compensação” simbólica para as classes subalternas? Não seria uma cópia popularesca do malfadado vestibular, com o mesmo grau de exclusão, mas com um ar menos “aristocrático”?
O que parece que pega é que a regra, a natureza do sistema, é tanto aceita como natureza mesma, quanto sua forma é preenchida com conteúdos diversos. Isto tanto para acalmar ânimos e manter as coisas como estão, quanto para reproduzir os privilégios entre os privilegiados sem que, contudo, isto fique aparente[9].


[1] E mesmo neste caso, uma parte da sociedade “critica” por conter temas ligados aos “vagabundos” e “esquerdopatas”, ou mesmo por tratar dos direitos humanos que “só defendem bandidos” (mas isto é crítica da esquizofrenia social, não há como tratar aqui).

[2] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

[3] KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

[4] O Conceito de revolução, tão desgastado e desacreditado, deve ser lido, aqui, como transformação radical da realidade; isto é, como transformação profunda do modo de produção da sociabilidade e dos indivíduos, não tendo a ver, somente, com a ideia de “guerra de guerrilhas” ou de “revolução proletária” como teorizada no século XX.
Além do mais, é preciso considerar o socialismo como mais que a tomada das mesmas estruturas de poder por parte da classe dos que vivem do trabalho. Aliás, como diferente disso. Não é a contestação dos privilégios burgueses por serem somente da burguesia. É a superação do modo burguês de relações sociais, de relações de produção social da realidade e dos indivíduos em sua totalidade. Foi isso que Marx, para desespero do marxismo tradicional, pensou: transformação radical daquilo que dá bases sólidas para os processos capitalistas, sendo a base mesma um processo especificamente capitalista. Portanto, pensou a superação do modo de produção da realidade, fundado no trabalho abstrato e na forma-trabalho que dá vida à toda objetividade social e à toda subjetividade.

[5] JUNINHO Jr. A meritocracia e o fantástico mundo de Holiday. Disponível em: http://www.almapreta.com/realidade/meritocracia-fantastico-mundo-holiday


[6] Aqui é importante pensar que o nosso jeitinho é produto objetivo de nossa história (do Brasil) de formação da subjetividade. E mais: é preciso pensar que é uma construção dominante legada às classes dominadas que a reproduzem em menor escala. Veja: OLIVEIRA, F. de. Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/11/12/jeitinho-e-jeitao-uma-tentativa-de-interpretacao-do-carater-brasileiro/

[7] São interessantes os filmes de Sergio Bianchi, especialmente, no referido caso, o seu Cronicamente Inviável (2000), no qual o crítico ferrenho “alimenta” o sistema que critica.

[8] Novamente, Cronicamente Inviável é infalível neste quesito. Além deste, o filme A Causa Secreta (1994), também de Sergio Bianchi, além do conto homônimo de Machado de Assis (no qual o filme é baseado), são exemplares disso.  

[9] Adendo final: por conta da eleição de Donald Trump nos EUA, certa euforia histérica tomou conta dos progressistas. Importa saber que, pelo recorte que propus, a crise de representação toma conta do cenário. O alarmante desespero quanto à eleição de Trump faz parecer, implicitamente, que Hilary Clinton é progressista, seja melhor e mais bem preparada para manusear a máquina. Os iraquianos e palestinos, e migrantes oriundos do Oriente Médio e da América Latina que o digam! Por falta de reflexão e vocabulário chama-se Trump de “fascista”, enquanto a dominação econômica e política feita pelos EUA durante os anos Obama foram ofuscadas por seu carisma e sua cara de bom moço. Não que tenha sido como Trump promete que seja a partir de agora. Mas não estava longe disso. Tinha-se, nessa corrida eleitoral, um projeto radical xenófobo e etc., e um projeto imperialista mascarado de “natureza natural da coisa” (já que, uns mais outros menos, aceitamos o imperialismo contanto que ele se mantenha como está; isto é, tornamo-nos conversadores da desgraça por conta de seu sorriso condescendente). Trump não representa, com sua figura, minoria alguma. Clinton representa a continuidade de uma representatividade negra e, por si mesma, representa mulheres e a continuidade de uma política progressista (mais uma vez, os árabes que o digam!). Crise de representação é pior que crise real. Escamoteia-se a crise real por conta de uma representatividade abstrata. No entanto, a crise real não é deflagrada com a falta de representatividade. E isto é interessante. Trump talvez seja o desfecho real de uma sequência histórica, não uma ruptura radical. Clinton era além de real desfecho, sequência natural na ordem das coisas do Império.

Subsolo!

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A enviesada condição do “ser negro” – OU – Substantivação de um adjetivo-objetivo


        A elevação de uma condição singular ao posto de universalidade, sem mediações, pode ser, ainda que não se queira, o “beco sem saída” contraditório de uma situação “sem resolução”. É preciso enfrentá-lo. Mas de cabeça erguida e com a complexidade exigida pela situação.

1. A condição subjetiva é, também, objetiva: dialética da formação do indivíduo
        O indivíduo não é um átomo, uma mônada, isolado e autossuficiente. Tampouco alguma de suas características, físicas ou quaisquer outras, podem ser elevadas, por si mesmas – autonomamente –, à primazia.
          As condições subjetivas, sejam quais forem, são – e foram, num processo histórico complexo – elevadas à condição de definição por conta da redução de múltiplas características a uma, que as coordenaria e submeteria. As características, físicas e mentais de indivíduos, somente seriam consideradas sob a condição de dependência de uma (ou algumas) categoria elevada à objetividade[1]. Objetivamente, tal categoria designaria todos os indivíduos universalmente, ao passo que suas características individuais – singulares – somente teriam sentido caso subordinadas àquela. Foi o que fizeram os eugenistas – brasileiros coloniais ou imperiais e alemães nazistas – quando reduziram indivíduos múltiplos a uma categoria que eles mesmos, eugenistas, haviam elevado ao primado. No entanto, a eleição de uma categoria não é tão arbitrária quanto parece. Depende-se de um processo da história que é também feita pelos indivíduos juntamente com o acaso e o esquecimento: as condições são forjadas sem a necessidade de um mando subjetivo e com a seleção histórica de elementos que deveriam, segundo a visão daqueles que dominam o campo das ideias, especialmente, serem considerados e outros que cairiam no limbo do esquecimento permanente. As pesquisas mais profundas, nesse sentido, não seriam as que reafirmam o que todos já sabem, de algum modo. Mas aquelas que trazem esses elementos soterrados – histórica e ideologicamente.
               Os indivíduos, então, não podem se definir por si mesmos, ainda que estejam numa situação histórica na qual o individualismo ganhe extremo destaque. Seres pretos não se definiam como escravos, nem como pretos, por autonomia e vontades de resiliência ou resistência. Não sem antes serem mediados por uma condição histórico-específica. A formação do sujeito preto na colônia, por exemplo, passa pela aceitação dominante de que, antes de tudo, são pretos e escravos[2] – resistentes em quilombos ou não. Ele somente pode aceitar, de algum modo, a definição de preto quando isso aglutina a resistência: negativamente, portanto. Afirmar, no sentido positivo mesmo, a cor da pele ou a condição social é, para além do combate necessário, sucumbir à designação do senhor. Ainda que seja necessária a afirmação, ela só é quando afirma, conjuntamente, sua superação. Só é, então, quando se autonega.
          Não é a consciência do indivíduo que o faz ser ou deixar de ser algo. A consciência, por um lado, é produto de condições objetivas, pois é mediada, é forjada no seio de uma situação complexa. Por outro, é subjetiva na medida em que mesmo sua autonomia é capenga, dependente de uma gama de situações. Ser negro, gay, pobre, mulher e etc., não confere, nem pode logicamente conferir, todas outras designações como expressões menores que viriam a reboque. A lógica é deficiente quando pensa que o ser pobre, por exemplo, deve lutar contra a pobreza e não se resignar, como um conteúdo moral a priori de sua condição de pobreza. Não há, histórica e praticamente, nenhuma ligação lógica entre ser pobre e ser anticapitalista (ou anti o que for). Pelo contrário, o capitalismo somente se estabelece com a anuência da maioria que viveria sob o princípio geral capitalista: ter alguma mercadoria para negociar no mercado em troca de sua sobrevivência, sendo ele mesmo sua própria mercadoria (como força de trabalho que deve se tornar mercadoria, forçosamente, pois não possui qualquer outra mercadoria para “vender”; e pelo “querer” subjetivo dessa condição: aceitação como segunda natureza). Da mesma forma, então, a condição subjetiva de qualquer “grupo especializado” – pobres, mulheres, pretos, indígenas e etc. –, ou mesmo de qualquer indivíduo desses grupos, somente tem razão de ser caso se considere objeto ao mesmo tempo em que é sujeito; e caso considere ser sujeito mediado, heterônomo em alguma medida.
           As afirmações que consolidam o indivíduo enquanto pertencente, antes de qualquer coisa, a algum grupo, já é reprodução de uma segunda natureza aceita enquanto tal, mesmo que aparente legítima defesa e autodeterminação. Definir-se como “negro/preto”, colocando abaixo desta designação todas as demais, é aceitar, ainda que com certo tipo de resistência, a imposição da história. E, diga-se, uma história à revelia do indivíduo resistente e dependente da definição como autoafirmação do próprio indivíduo[3].

2. Elevação da “segunda natureza” ao posto de decisão autônoma: substantivação de um adjetivo-objetivo
          Ser negro/preto parece ser uma decisão autônoma daquele que tem a pele escura – seja em qual tonalidade for. Ao mesmo tempo em que pode ser isto, é também aceitação de uma designação que fraciona a sociedade fracionada: impõe a fragmentação não como fragmentação objetiva, vinda de cima, porém como decisão individual: coloca uma aporia histórica como segunda natureza decidida pela autonomia subjetiva[4]. Não é o caso de abrir mão de se afirmar como pertencente a algum grupo marginalizado. Contudo, é o caso de saber que essa definição é imposição de um tipo de sociedade e que limita o indivíduo na mesma medida em que poderia o libertar. Aceitar a designação somente teria efeito – e isto não é um conselho moral ou mesmo um dizer sobre como deve ser a prática de resistência das pessoas – caso elevasse, junto à afirmação, seu lado negativo: aceitar a definição ao mesmo tempo em que tende à rompê-la; não é o caso de a afirmar sem ressalvas – pois, a afirmação já contém, em si mesma, a submissão histórica. Não se trata, todavia, de ser negro/preto que, para romper com a sua condição de submissão histórica, precisa se elevar ao status de pequeno-burguês, isto é, sair da condição de miserabilidade que vem colada ao adjetivo negro/preto e reafirmar, mais uma vez, aquilo que produz profundamente sua miséria histórica. O que importa é a ruptura da situação que engendra a incapacidade dos outros adjetivos – atributos individuais – de se expressarem sem submissão a um único adjetivo (este objetivado e elevado à condição de substantivo: o negro/preto). Na medida em que se define, sem mediação, como negro/preto, estabelece-se que todas as outras designações somente terão validade caso coadunem com o a priori do ser preto. Por exemplo: eu – e aqui me coloco como pessoa – não posso ser um negro/preto perfeito (e percebam a contradição do padrão “perfeito”) já que, apesar de minhas inquietações e consciência de todo problema social daqueles que se igualam a mim pela cor da pele ou pela condição que a cor da pele traz, namoro com mulher “branca” – e isto contradiz, segundo a lógica exposta, a perfeição de minha “militância”, “consciência” e “negritude” ou minha consciência não está completamente “formada”.
            Ora, só há possibilidade de se pensar assim pela adjetivação em mão única e em linha reta. Explico. Por um lado, os adjetivos “negro” ou “preto” somente fazem sentido como designação definidora ao serem elevados à objetividade. E são elevados não por conta da autonomia dos negros/pretos que assim o quiseram; mas pelo desenrolar histórico que submeteu todo o resto à primazia da “cor da pele/condição social” – tal como no sistema de castas. Por outro, toma-se este adjetivo que, por sua objetivação/generalização, agora é um substantivo – O negro, O preto, e, junto a eles, todos os atributos que deveriam, necessariamente, os acompanhar –, como anulador de algumas designações ao mesmo tempo em que valida outras.
Fulana/o preta/o deve, necessariamente, se relacionar, namorar e casar com homens/mulheres pretos/as. A grande questão é que, especialmente os/as pretos/as militantes, intelectualizados, não percebem que há uma gama de adjetivos que somente fazem sentido conjugados: qual mulher preta o homem preto que frequenta balada de pretos, veste-se como preto, tem consciência dos problemas dos pretos, estuda questões relacionadas aos pretos e etc., quer se relacionar? Ora, o que tenho visto, em muitos anos – inclusive entre meus amigos (e que me desculpem o argumento, ainda que eu já o tenha expressado mais de uma vez) , é que há uma primazia de um adjetivo, substantivado, e anulação e afirmação de outros ao mesmo tempo. Quer-se “mulher preta” – mas que seja consciente de sua negritude, seja intelectualizada, goste de coisas de pretos, saiba o que é ancestralidade, que estude questões de pretos, frequente baladas de pretos, tenha orgulho da cor e do cabelo, seja minimamente bonita para os padrões “aceitos”. A mulher preta, gorda, com a pele e os dentes zoados por conta das condições de pobreza, que não tem consciência, ou plena consciência (como a, contraditoriamente, exigida), que não frequenta lugares X ou Y, alisa o cabelo por conta da aceitação social e pela “vergonha” – que é entendível, pelo menos até certo ponto –, enfim, esta mulher não entra na conta. E isto vale para o inverso, da relação mulher-homem[5] (não falarei da homossexualidade por ser outra coisa, mais complexa, e por eu não ter capacidade de argumentar sobre).
         Ora, caso se coloque em linha: gosto/relaciono-me com mulher preta[6] (indireta e internamente está se dizendo:), intelectualizada, consciente, com discurso afiado e etc., e excluem-se todas as outras, inclusive as de cor de pele preta, que não se encaixam nos padrões ou nas “afinidades eletivas” em voga. Caso se exclua a “retidão” – que é a submissão dos outros adjetivos ao adjetivo primordial – e a “mão única”, ter-se-á, somente, um adjetivo a mais que, como os outros, diz pouco: gosto de mulher intelectualizada, que frequente lugares X e Y, que tenha consciência de sua singularidade, que tenha orgulho de si mesma e seja (insira a cor da pele que desejar). Não é o caso, reiterando, de desclassificar ninguém, tampouco reduzir a necessidade de uma consciência acerca do problema. Mas evidenciar que a cor da pele diz pouco ou nada sobre o indivíduo isoladamente. Somente diz sobre ele dentro de uma situação histórico-social específica. Além disso, tal situação histórico-social pode atirar para todos os lados ao condicionar ou mesmo determinar a subjetividade. O “Menino Feriado”, eleito pelo MBL, é uma expressão objetiva disso. Somente poderia se dizer que é um “caso isolado” ou mesmo um exemplo “subjetivo” ao se desconsiderar a formação subjetiva determinada pela objetividade, conjugada à formação objetiva. Somente, então, ao se olhar pelo prisma do sujeito e não do objeto.
Black Panthers: a conjugação da luta contra o racismo
e contra o capitalismo


         Ser Preto/Negro, como substantivo, que subordina os demais adjetivos, é, de um lado, aceitação da condição de afirmação e morte dos próprios indivíduos pretos; por outro, negação da multiplicidade e incapacidade de conceber o racismo como objetivo, como problema social relacionado à luta de classes, e a própria luta de classes ser estigmatizada e relegada – o “Menino Feriado” deixa isso “claro”. É um problema que, concebido da forma tradicional – aquele que parte da primazia da cor da pele/suposta condição social do ser preto[7] –, cai no impasse de afirmar inclusive aquilo que veementemente negaria se não fosse com um(a) preto/preta-protagonista, e cai também no impasse de não se saber o que fazer, de evitar a crítica profunda e dura, de arrumar algum subterfúgio para tocar o problema somente obliquamente, de, por fim, sentir culpa.


       Chegamos ao ponto: o “Menino Feriado” não é uma exceção, mas um sintoma; não é um caso isolado, mas algo objetivo, bem mais complexo do que simplesmente dizer que “a culpa é da sociedade” – como se a sociedade fosse uma entidade à parte. Chegamos ao ponto: relacionar-se somente com negros/as//pretos/as, ou com coisas de negros/pretos, não faz ninguém mais militante contra o racismo e etc.; pode fazer, sim, ser um submisso à estrutura lógica absurda da sociedade tal como se configurou historicamente, ainda que não se tenha consciência da submissão (de fato: muitas pessoas têm boas intenções, são boas militantes e etc., mas isso não anula o fato de que há uma estrutura abstrata dominante que impõe inclusive a lógica de contestação a si própria). Sem o prisma do objeto, sem conceber o sujeito como mediado, é impossível chegar a tais conclusões. Não que elas sejam verdadeiras. Contudo, pretendem dar um nó no raciocínio tradicional e apontar as contradições (popularmente: pôr o dedo na ferida egóica).

O “Menino Feriado”: 
sintoma da história e aporia da
forma tradicional de crítica





[1] Na sociedade de classes e raças – a sociedade brasileira –, há um adjetivo primordial que toma o posto de substantivo (ele designa o indivíduo em sua completude) e que subordina todos os demais, os demais somente fazendo sentido referindo-se a ele. Ex.: o indivíduo é gay, mas tem caráter, é boa pessoa e etc. O “mas” mata toda a intenção pela raiz, na mesma medida em que a totalidade do indivíduo está sob a pecha do “gay”: primeiro ele é gay, depois pessoa – não o contrário, que seria menos “desumano”. Gay se torna uma categoria universal que determina todas as demais. E é universal por uma complexidade do movimento da sociedade, não por si mesma. Não é o fato de alguém ficar com outro alguém do mesmo gênero que define o “ser gay”, mas em que tipo de sociedade e de estrutura de relações sociais, morais e etc., em que isso ocorre que é o determinante.
[2] Ou seja, reduzidos a esta condição não por vontade própria, mas pela “ordem das coisas” na situação histórica.
[3] A história do Brasil, por exemplo, somente se processa e mantém os grupos dominantes no local onde estão por conta de as condições basilares da sociedade continuarem estáticas. Em outras palavras, a história do Brasil – e sua continuidade sem rupturas e transformações profundas na estrutura social –, depende da continuidade dessa fragmentação histórica da sociedade em grupos que aceitam seu “lugar de fala” – que é, por complexo que seja, sua submissão – como aceitação e ratificação – mais passiva.
[4] Em última instância, a morte da subjetividade (da individualidade) depende da afirmação extrema (da vida plena) do individualismo.
[5] O fato de se ter criado um nicho que confere poderes especiais para aquele que se designa como Preto/a, faz a contradição aumentar: o que seria uma mulher qualquer (desconhecida, não-preta) tirar fotos seminua? Ou mesmo se alguma menina preta, mas não intelectualizada, que não ouve Cartola nem sabe quem foi Malcolm X, posasse nua... o que seria feito dela? Tenho lá minhas dúvidas quanto ao cinismo geral instalado – que se tornou a regra de convivência do “bom mocismo militante-loquaz” vigente. O que dizer de homens pretos que deploram aqueles que assumem relacionamento com mulheres brancas mas, na surdina, saem com brancas, apesar de sempre assumirem relacionamentos somente com a “preta padrão” (intelectualizada, consciente e etc.)? Não é o caso julgar ninguém. Porém, cabe romper com o cinismo e com a falsidade, ou, principalmente, com a “interpretação de superfícies” e entrar na coisa, entendê-la e rompê-la, não ficar a mantendo indefinidamente somente para, ainda que inconscientemente, manter seu próprio status.
[6] Para não ficar repetitivo, saiba que vale para o inverso: gosto de homem preto...
[7] Suposta condição social: entra no mesmo argumento. Entende-se, tradicionalmente, que o fato de alguém ser preto lhe dá superpoderes que o confere a capacidade de ter milhares de atributos dentro da sociedade, para o bem e para o mal. 


Subsolo!