sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Versando sobre a não-identidade


Na teoria de Theodor W. Adorno o ponto central, talvez possamos resumir assim, é a não-identidade, a ruptura negativa da pseudo-harmonia da realidade existente[1]. E isso não deve ser entendido como algo posto pela teoria, ou mesmo uma “utopia” – algo que está fora e além, no futuro, de qualquer realidade. A negatividade é propriedade das coisas, ou, como diria Adorno, do objeto, do movimento da própria realidade. No entanto, a negatividade não é aparente, ou melhor, é ocultada para o bom andamento do todo – diga-se, do todo ideológico. Se nos limitarmos ao capitalismo como sistema social, não só como modo econômico, podemos dizer que ele se compõe como uma sociedade duplamente falsa: em primeiro, um todo falso pois fruto da “práxis do objeto”, isto é, da atividade reificada do próprio capital e não obra dos Homens; em segundo, consequentemente, uma sociedade falsa pois oculta sua verdade (ou melhor, como diria Adorno: o núcleo temporal e dialético da verdade), e, ao ocultar, faz aparecer uma harmonia, supostamente preexistente, como verdade natural e eterna.  
Sucintamente, a primeira determinação – falsidade como práxis do capital – pode ser compreendida caso se leve em consideração a teoria madura de Marx. O capital, por um lado, é produto da atividade humana. Todavia, por outro, é ele quem põe as possibilidades para que essa atividade humana se realize, isto é, ele determina sua própria produção (ou autorreprodução). Nesse movimento, o capital toma para si a capacidade de pôr aquilo que deveria ser síntese (resultado) da relação entre os Homens e entre eles e a natureza: as relações sociais. A práxis não é mais obra dos humanos, ainda que seja domínio do sujeito. Contudo, o sujeito agora é o capital, ele que produz a sociedade em sua totalidade[2] – aliás, a reprodução da sociedade se daria, em Adorno, pela indústria cultural, pela formação (Bildung) determinada pelo movimento abstrato da sociedade retirada ao controle humano.
Com isso, a segunda determinação que colocamos – a dialética da sociedade ocultada por uma pseudo-harmonia – versa exatamente na tentativa constante de não deixar aparecer as contradições sociais e, quando aparecem, isolá-las e colocá-las na conta dos indivíduos, dos grupos e etc.. Mas, não só isso. As contradições que aparecem são, quando muito, fenômenos derivados das contradições fundamentais e, por isso, no mais das vezes são incorporadas pela totalidade falsa a fim de fortalecer esta totalidade, o capital. Em suma, toda contradição poderia, caso fosse aprofundada, levar às contradições mais basilares, deixar à luz do dia seu núcleo e, com isso, tender a superá-la. No entanto, antes que isso aconteça, podemos dizer assim, o capital “dá um jeito” de incorporar o diferente – aquilo que é não-idêntico e, por isso, iminente ruptura – e torná-lo “igual”, “mesmice”. Se quisermos, um exemplo simples disso são os “movimentos alternativos” que, na aparência de diferença, se perdem na mesmice sem perceber: indústrias “alternativas” são criadas para estes nichos, apresentam-se como diferentes, mas a lógica dura do capital não se altera: são consumidores atentos na mesma medida em que a acumulação cada vez mais crescente é igual aos demais ramos da “indústria tradicional”[3].
Na teoria adorniana, a experiência negativa de ruptura, que poderia levar as contradições às últimas consequências, é podada e incorporada, sugada e subjugada pelo movimento do capital. Porém, como dissemos acima, a aparência de diferença se mantém, ainda que somente como aparência. E é nessa manutenção da aparência que o diferente, agora tornado igual (ou, o negativo, agora tornado positivo), vale-se, é na aparência que ele se apega e leva adiante seu giro em falso sem que perceba sua coisificação, sua conduta quase plenamente controlada.
Ainda assim, dissemos que a não-identidade é propriedade do objeto, não da teoria. E sendo formadora do objeto, imanentemente, a negatividade sempre tem potencialidade de romper com a realidade dada, ainda que nem sempre isso aconteça. Podemos exemplificar isso, de forma tanto quanto sucinta, remetendo-nos a Nietzsche. Em Nietzsche, em sua filosofia da linguagem, os objetos possuem várias determinações e mesmo um objeto semelhante a outro nunca é igual ao outro. No entanto, para comunicar, precisamos isolar toda diferença, ainda que mínima. O problema é que ao fazermos isso, tomamos aquela qualidade singular do objeto como a totalidade do objeto, escondendo e, por fim, esquecendo aquelas qualidades que ocultamos[4]. Em suma, conceituamos as coisas, isto é, criamos conceitos a partir das coisas e, inversamente, achamos que os conceitos que criaram as coisas. Por ex.: quando dizemos que uma folha (de árvore) é um conceito, tudo que for “folha” entrará nesse conceito, isto é, tudo que existir como tal em árvores – árvores diferentes entre si; folhas nunca iguais umas as outras – será “folha”. Logo estaremos dizendo, como a leitura mais corrente (e também mais senso comum) de Platão, que existe “A folha”, um conceito abstrato do qual todos os entes existentes e concretos são “cópias imperfeitas”. Abrimos mão das múltiplas diferenças dos objetos para dar plena atenção a uma característica determinada (formato, cor, tamanho etc.). Fazemos o diferente se tornar igual e, numa inversão, dizemos que essa qualidade de ser “sempre-igual” é das coisas e não de nossa incapacidade... Aliás, se quisermos um exemplo atual, em São Paulo, especialmente na capital, o Nordeste e o Norte do país são uma só coisa, homogênea, na qual todos têm os mesmos costumes, o mesmo sotaque, a mesma cor de pele, formato de cabeça e etc., e todos se conhecem. Aqui, todo mundo é “baiano” (em tom pejorativo). A mesma coisa acontece quando se fala de África. Ela não é um continente, com vários povos, matizes, culturas e etc.: é uma rua onde todo mundo joga bola junto e fofoca da vida alheia; e, quando não, possuem alguma DST ou ebola... Mas aqui, nestes exemplos, o “sempre-igual” aparece mais por preconceito e discriminação do que pelo movimento abstrato da Coisa.
Enfim, a identidade, em toda sua extensão, é aquela feita com e partir do capital, mediada pela reificação dos indivíduos. Toda identidade é anulação das diferenças intrínsecas no objeto[5]. Identificar, no capitalismo tardio, é coisificar, tornar igual aquilo que não é igual; tornar tudo idêntico ao “sujeito objetivo” desta relação: a sociedade abstraída do controle humano e posta pelo capital; em última instância, tornar tudo idêntico ao capital, à coisa e suas determinações objetivas. Tudo que se identifica perde sua identidade dialética, negativa; sucumbe à aparência dominante e dominadora da realidade efetiva. Assim, trazer à tona a não-identidade, pela interpretação, pela teoria, é um meio de combate prático à redução fetichista do capital, desta sociedade que engole tudo.
Se quisermos deixar “concreta” toda essa “abstração teórica”, podemos nos referir aos movimentos que existem e que, cada um a seu modo, combatem as mazelas da realidade efetiva. Os negros, por exemplo, desde sempre, especialmente nas Américas, foram levados a criar uma identidade negativa, isto é, criar sua própria identidade não simplesmente para se diferenciar dos demais, mas para resistir aos demais, ao movimento objetivo opressor. No entanto, sucintamente falando, não cabe manter a criação da identidade negra perpetuamente: enquanto, como negros, tivermos que nos diferenciar para resistir, existirá a opressão, isto é, somente teremos que criar uma identidade própria enquanto existir o modus operandi que cria essa necessidade. Todavia, a própria sociedade tende a “nos incorporar”, a nos “incluir”. Só que a inclusão do excluído, nesse todo, é subjugação. A ruptura está não em identificar, mas em romper com o “princípio que identifica”: a identidade dos negros é o não-idêntico dentro do capital e tende a romper com essa sociedade. Em outras palavras, a superação do racismo não é a inclusão dos negros, mas a superação da condição dos negros: destruir as condições objetivas que nos determina a ser negros, que nos determina a ter que criar essa identidade negativa de resistência. Somente com a ruptura das condições objetivas que propiciam o surgimento dessas situações de opressão é que poderemos vislumbrar inclusão efetiva: somente como “negro superado” que seremos incluídos; ou seja, somente seremos incluídos quando não formos mais “negros”, mas pessoas, em toda nossa multiplicidade.
Por outro lado, da mesma forma que nos remetemos ao exemplo de Nietzsche, acima, podemos dizer que temos de superar nossa condição que nos “conceitua”, nos determina por apenas um de nossos aspectos. Enquanto a redução de nossa identidade humana for posta em um dos aspectos de nosso corpo (aliás, se quisermos, Aristóteles chama estes aspectos de “acidentes”, visto que são inessenciais), teremos situação de opressão. Da mesma forma, enquanto olharmos e classificarmos pessoas pelos gostos, opções, orientações sexuais e etc., reduzindo todo o humano ali a alguma determinação singular, teremos uma situação que gera e retroalimenta a opressão. Nesse sentido estrito, o humano completo surge, com força, como o não-idêntico: a afirmação da complexidade e multiplicidade rompe com o simplismo ao qual fomos submetidos, obrigados a viver. A violência do idêntico é a violência de uma sociedade que preza pela mesmice: o diferente deve ser eliminado por conta de seu perigo à totalidade[6].
Enquanto uma determinação singular tiver o poder de conferir significado à totalidade, tanto do indivíduo quanto da sociedade, viveremos em situação de violência, de opressão e dominação. (Por ex.: um indivíduo negro é, antes de tudo, reduzido à condição de “ser negro” e todos os “adjetivos” e “atributos” negativos e positivos que vêm junto a isso, para depois, caso prove que seja “digno”, seja visto como pessoa). A superação das opressões e da dominação só pode se efetivar caso se leve a não-identidade às últimas consequências que ela pode levar: ruptura com a situação que a oprime. Em suma, ruptura com a totalidade social capitalista – com o capital e a complexidade das relações sociais colocadas por ele.  





[1] Quanto a esta questão, quem quiser aprofundamentos, veja os textos tardios de Adorno. Aqui indico, especialmente, “O Ensaio como forma”; “Sobre Sujeito e Objeto”; “Notas marginais sobre Teoria e Práxis”; a Dialética Negativa; e, ainda que não sejam textos tardios, a Dialética do Esclarecimento e a Minima Moralia.

[2] Quanto a esta questão, confira os textos maduros de Marx, especialmente os Grundrisse e O Capital. Também indico “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”, de Oskar Negt e Alexander Kluge. Além destes, Tempo, trabalho e dominação social, de Moishe Postone (sobre este, uma tradução recente saiu pela Editora Boitempo – aliás, tradução tão aguardada há anos! Contudo, ainda não tive contato com esta recente tradução. Levando em consideração o rigor da Boitempo, imagino que seja válida e boa).

[3] No texto “Indústria Cultural...”, Adorno e Horkheimer demonstram isso, inclusive com exemplos. Por todo o texto e, especialmente, no último parágrafo há um exemplo elucidativo.

[4] Escrevi um texto sobre a relação entre a filosofia da linguagem de Nietzsche e sua relação com o não-idêntico em Adorno. Cf. A Primazia do Objeto: esboços da relação Nietzsche-Adorno.

[5] Cabe referenciar, ainda que eu não vá desdobrar esta questão aqui, que o sujeito, para Adorno, deve ser tomado como objeto, como composto em seu núcleo pelo objeto, isto é, ele mesmo produto do movimento de constituição da História e da sociedade, ele mesmo produto da relação com o objeto e, no capitalismo tardio, produto da “vontade objetiva” do objeto.

[6] Sobre isso, escrevi algo há algum tempo aqui mesmo no Diálogos do Subsolo. Confira: Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano.

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