segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Fundamentos da Crítica – Pressupostos da Prática

        Não há prática sem teoria, da mesma forma que não há teoria sem práxis. A prática sem teoria, ou embasada em pseudoteoria possui limitações que não podem ser vistas por aqueles que aderem a este viés. Alienada das condições de si mesma, a “atitude” que reivindica prática acima de tudo – e prescindindo de tudo – não consegue conceber os muros que cria para si: sua falsa infinidade é sua limitação – no espaço e no tempo – mais ferrenha. Por outro lado, a teoria que não se imbrica com a prática, como processo, está aquém de toda História: sucumbe à sua inação e ao seu pessimismo. Não basta dizer que “o mundo não tem jeito”. Este tipo de afirmação é ignorante duplamente: primeiro, ignora sua composição histórica que decorre do passado, do presente e das projeções; segundo, é inativa por sua unilateralidade intrínseca. Neste caso, é unilateral na medida em que quer organizar o mundo no/através do pensamento sem perceber suas contradições e, consequentemente, deixando de lado o fato de que o pensamento é duplo: produto e produtor. Ele só é sujeito crítico na medida em que se entende como objeto entre objetos, isto é, ao passo em que se sabe parte do movimento da história social. “Parte do movimento”, não “primeiro-motor” isento e plenamente autônomo. Sua unilateralidade, nesse sentido, é fruto de uma perspectiva limitada e condicionada pela ideologia dominante. Esta ideologia quer que se diga, ininterruptamente, que “o mundo não tem jeito”, exatamente para que permaneça do jeito que está.  
      Por sua vez, prática “sem” teoria é possível, mas também limitada. Que teoria e prática não se desligam não quer dizer que a teoria preceda a prática em tudo. Contudo, uma prática sem teoria está “aberta” a qualquer interpretação na mesma medida em que já possui sua interpretação do mundo – ainda que seja de forma inacabada ou mesmo inconsciente. Isto indica que não há prática sem teoria: toda prática parte, mesmo sem saber, de alguma concepção (ainda que débil) sobre os modos de organização do mundo. Cabe aos indivíduos, coletivamente, reivindicar, numa correlação de forças políticas, a interpretação “mais adequada” e hegemônica para determinada prática. A prática, indeterminável em sua completude por excelência, sempre ficará aberta a novos rumos dependendo da teoria (ainda que inconsciente) intrínseca ao seu processo. Assim, a crítica não é “teórica” no sentido tradicional. Uma crítica – ainda que teoria crítica – já é prática na medida em que depende de uma determinada maneira de conceber os processos sociais. Ela só é crítica ao se compreender objeto social mais que sujeito: ao se saber inserida no movimento da sociedade e receber forte influência dele. E só é crítica na medida em que se compreende sujeito mais que objeto: ao se saber produtora do movimento da sociedade e ter forte influência e determinação sobre ele. Abrir mão de uma das vias querendo privilegiar a outra é sucumbir à “teoria tradicional”: a prática e a teoria se coisificam mais a mais ao mesmo tempo em que pensam ser somente sujeito social.
      As teorias vigentes são, ainda que não queiram e detestem tal fato, ideológicas por caírem na armadilha que, “criticamente”, condenam. O nó se dá no seguinte: na compreensão de que as coisas (fatos sociais) se bastam a si mesmas; que tudo que “são” é o que aparece imediatamente; que a “forma concreta” das coisas, aquela que “é” no tempo e no espaço, isola-se dos demais “fatos” e ignoram completamente aquilo que consideram “(teórica e praticamente) abstrato”. Sua astúcia é sua cova profunda. Pensar a prática – e agir a prática – é, ainda que não mova um galho do chão no “aqui e agora”, romper com a ilusão capitalista de que as coisas são fatos isolados e devem ser resolvidos pelo que imediatamente se concebe através da “teoria” (e por “teoria”, aqui, pode-se entender qualquer concepção, mais ou menos organizada, de pessoas comuns; não depende de “teóricos de escritório” – tal como aquela mesma “crítica” tenta diminuir aqueles que “não possuem a vivência prática cotidiana do fato”).      
     A prática crítica não pode prescindir de uma perspectiva da totalidade social, tampouco pode abrir mão das mediações sociais. De um lado, a totalidade social se faz presente em qualquer “fato isolado”. De outro, os “fatos isolados” são mediados pelas categorias centrais da totalidade. Em palavras mais simples, uma prática crítica na atualidade não deveria prescindir da forma da luta de classes, da reificação, da capacidade do capital de organizar sua composição ao desorganizar a sociedade (no plano da aparência) e fragmentar a sociabilidade (como se cada “coisa”, cada “fato” não tivesse relação alguma com os demais). Não há “interesse humano” que se sustente concretamente sem levar em conta os vieses de classe no qual se fundamenta; não há, assim, interesse “da humanidade” se não se considerar de qual lado, em qual “bloco”, está: do lado do capital ou do trabalho (assalariado, alienado etc.). Em outros termos: não há como pensar num interesse comum para capitalistas (que exploram e dominam) e para aqueles que vivem da venda da força de trabalho (que são explorados e dominados – mesmo que não percebam ou não queiram). Ao mesmo tempo, não há como intentar pensar criticamente uma situação particular como se não dissesse respeito à totalidade das relações. Por exemplo: o problema de determinado grupo social excluído não poderá ser superado – ainda que conquiste avanços mais ou menos significativos – caso não seja pensado dentro de um todo que organiza (ainda que pareça desorganizar) e mantém “as coisas como estão”. O “fato” é mediado pela totalidade social: o que “é” só é na medida em que há uma sociedade que produz e absorve sua existência; somente existe enquanto existem condições que mantenham esse “é”. Não há como pensar, por exemplo, a situação atual das escolas de SP (a possível reorganização e etc.) sem se levar em consideração os interesses de classe (da classe dominante, especialmente), nem os interesses do capital (que reorganiza a sociedade a seu bel-prazer, e, ainda, não é completamente controlado pela classe dominante).
      Pensar a prática nestes termos, e mais ainda pensar a “reorganização escolar” proposta e a práxis crítica dos estudantes é ter de considerar que, ainda que não seja muito elaborado nem mesmo completamente consciente, eles sabem que as proposta de fechamento das escolas (e na reorganização dos ciclos) possuem interesses maiores, não só do governador, mas de mais gente que se beneficiaria com isso – sejam beneficiários diretos ligados à educação ou mesmo alheios a ela. Mesmo assim, a prática, até para ser organizada de forma político-crítica, impõe para si a necessidade de se pensar para além do imediato, ou seja, precisa ser teoricamente fundamentada. E é aqui que entram no jogo dois fatores: primeiro, a questão de que a escola, em particular, e a educação, em geral, não se detêm em si mesmas, são problemas históricos e sociais do Brasil, tanto no que tange à educação como à formação das relações sociais generalizadas; segundo, surgem os grupos que irão propor os rumos do “movimento”, tanto grupos “externos” à educação quanto os próprios estudantes envolvidos diretamente que terão de pensar para além desse “momento isolado”. De alguma forma, os estudantes estão mostrando a possibilidade – e a necessidade! – de se pensar a escola e a educação de outra forma, rompendo paradigmas e propondo novas formas de relacionamento social (tal como aqueles que pintaram as escolas ocupadas, capinaram, fizeram saraus, encontros, debates e etc.). Uma das grandes vitórias já em curso é a proposição que diz que outra forma de relacionamento humano é possível.
     O pensar crítico e o agir crítico necessitam um do outro na mesma medida em que nascem unidos. Mesmo que aparentemente um venha à tona antes do outro, ou mesmo aparentemente prescindam do outro, isto não quer dizer que estão isolados ou não exista a conexão. E esta conexão é mais profunda na medida em que revela as contradições e problemas totais de uma sociedade organizada em determinados moldes. Pensar e agir criticamente acerca de qualquer situação é apontar para sua (possível) superação. E isso só se dá na medida em que se leva em consideração relações sociais mediando umas as outras; isto é, que as relações se fazem conjuntamente e determinam-se mutuamente pois possuem um “denominador comum”. 

Subsolo!


quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Adjetivação e contradição

A última moda em alta – e em ascendência – é o julgamento, que mesmo se esquivando do cunho moral volta-se a ele com força e se enreda em todo tipo de interdição moral. Esta interdição, por sua vez, é dialética. Ela corrompe tanto o dito, quanto o interdito: ela se vinga daquele que diz; vinga-se daquilo que fala e impõe (ou tenta, ao menos) ao mundo e aos outros. E é dialética – pautada na via de mão dupla contraditória e mediada pela estrutura das relações na sociedade vigente –, pois o sujeito que julga é mediado pelo julgamento. O que julga – e entenda-se bem: o que (alguém) julga e não quem julga –, é também produto social, do indivíduo em sociedade, das relações sociais, não de um indivíduo puro acima dela (da sociedade), nem mesmo “produto” da natureza ou algo predeterminado geneticamente no indivíduo julgado. O julgamento que um indivíduo (ou um conjunto de indivíduos) faz em relação a alguém (ou um conjunto de fatos), é também, ainda que não saiba, um julgamento às relações sociais as quais participa como produtor e produto. Mesmo que em aparência esteja, o indivíduo, envolvido apenas indiretamente nas situações, ele está diretamente emaranhado na sociedade. Nele transparecem, umas vezes mais outras menos, as determinações universais da sociedade e de suas relações. Romper com tais situações, ainda que se leve em consideração a autonomia dos indivíduos, só pode ocorrer com a ruptura (superação) do universal (a sociedade e suas relações). A autonomia do indivíduo deve ser considerada em sua luta contra as determinações da sociedade, mas ele não pode prescindir da sociedade e suas determinações, mesmo que queira e se esforce ao último. Mesmo o mais atento e politizado indivíduo, o mais consciente e regrado, está sujeito às determinações sociais, seja externamente (tendo de se curvar às instituições) ou internamente (na medida em que absorve a história em si ainda que não queira ou não saiba). Escorregar, no sentido de estar sujeito a falhas em sua conduta, é algo plausível e, até certo ponto, normal. O sujeito politizado e regrado 24 horas por dia, que mantém uma conduta impecável perante a realidade, não existe e engana a si mesmo. Sua existência (falsa em si mesma) é de ordem positiva, pois anula o movimento da história e da sociedade: (o indivíduo) é antidialético ainda que reivindique a dialética como método. Extático – e estático – diante do mundo, ele anula a si mesmo, ou anula sua sombra que somente existe para si, não na realidade efetiva. Estar envolto e absorvido por essa situação histórico-social é determinação histórico-social: não há como fugir – e isto não quer dizer que não há como transformar. A terceira das Teses sobre Feuerbach, de Marx, exemplar, é síntese disso: “... o educador precisa ser educado”[1].
Adjetivação, que se quer figura de linguagem, não se limita à “linguagem” – tal como compreendida pelo senso comum. E esta não se limita a simples meio de comunicação. A adjetivação é o princípio norteador e formador do ser social em sua completude finita, ao passo que a linguagem é a forma concreta de existência desse ser social. Pensar e ser necessitam de dois fatores: da sociedade (seja qual for) – e todos os limites e determinações que ela impõe – e da linguagem. Sem linguagem, não existiria ser nem pensar. A linguagem não é, portanto, uma forma simples de comunicação ou algo externo ao ser social. Ela é forma. Mesmo que imponha limitações – pois a linguagem se contradiz e não consegue abarcar tudo que deseja –, é exatamente através dessas limitações que se deve tentar superar as restrições autoimpostas. Para existir, é preciso qualificar as coisas. O adjetivo[2], como forma, é a expressão do pensamento e do ser, não seu complemento. Sem ele, o pensamento sequer existe. Entretanto, que não se entenda que o adjetivo cria o ser, ou o ser cria o adjetivo. Não é disso que se trata. Antes, dialeticamente pensando, são os sujeitos que determinam a objetividade social, e esta, ao mesmo tempo, produz o sujeito (que também é, como produzido, objeto – tanto da objetividade social quanto de si mesmo na medida em que é criador e criatura). A linguagem, e com ela a “criação” de sujeito e objeto, é a forma da realidade. A adjetivação é intrínseca a toda linguagem, portanto, a todo ser. Reduzir a linguagem à mera comunicação entre sujeitos – como fizeram J. Habermas, A. Honneth entre outros – é se perder no equívoco de um ser que criaria autonomamente a partir de si, como ser mais ou menos “indeterminável”, sendo as relações sociais criações autônomas desse ser, e externas a ele (isto é, sem que pudessem determinar, dialeticamente, o próprio “ser”).
Como sujeito-objeto, o sujeito (determinado internamente pela sociedade, já que é ser social e objeto tanto quanto sujeito das relações sociais), não pode se isentar das particularidades da sociedade, mesmo que “não lhe diga respeito”. As particularidades da sociedade (“fatos” supostamente isolados que ocorrem “distantes” ou não e que, também supostamente, não envolvem o indivíduo em questão) revelam o todo da sociedade. Os “fatos” particulares expõem, de um modo ou de outros, as determinações sociais e, com elas, as parcelas de participação singular de cada indivíduo. Assim, julgar de modo imediato as coisas e fatos como se não lhes dissesse respeito e estivessem “erradas” do ponto de vista do sujeito que se acha acima da situação, é no mínimo um equívoco. A forma imediata de julgamento – para esclarecer – não quer dizer que o “fato” acontece e o sujeito julga no “aqui e agora”. Diferente disso, diz respeito ao julgamento que não se põe no centro do julgado. O indivíduo coloca aquele julgado como algo que não lhe diz respeito de maneira alguma. Ele não percebe que algo que ocorre na sociedade é da sociedade e, portanto, revela a totalidade desta sociedade. Revela, ainda mais, uma espécie de “mea-culpa” do indivíduo que julga. O indivíduo não se percebe, além disso, como sujeito mediado, que é, tal como o fato que julga, produto da sociedade e de suas relações. Ele não se dá conta, também, que julga conforme estas relações determinem como deve ser o julgamento. Quanto mais imediato o indivíduo – ou seja, quanto menos se entenda dentro da situação, que é a sociedade revelando suas fraturas centrais em “fatos” particulares –, menos possibilidade de perceber o movimento determinante – e ideológico – das relações sociais que aparecem totalmente em seu julgamento “isento” e “autônomo”. Porém, as contradições também se revelam aí, nesse ser supostamente imediato. Elas despontam através do julgamento das situações; surgem no indivíduo que se contradiz já que não consegue conectar sua própria existência em si mesma. Para deixar claro isto: indivíduo X julga a vida como bem mais precioso; o mesmo indivíduo clama pela morte como solução para o seu bem mais precioso (a vida)[3]. Além destas, as (outras) contradições da sociedade também se revelam no indivíduo. Uma sociedade não-livre produz indivíduos não-livres, mas que se entendem livres – isto é: uma situação na qual a liberdade é condição sine qua non de existência desta sociedade. A ruptura da ilusão poderia ser o primeiro passo para a ruptura da totalidade. Romper a ilusão significa quebrar a imediatidade em seu núcleo profundo.
O que dá vida – lesada – a esta sociedade é, por um lado, a adjetivação como elevação de uma particularidade ao âmbito do universal. Por outro, a imediatidade da própria adjetivação. Imediatidade e, consequentemente, seu vazio de sentido que cobra do indivíduo um conteúdo. Este conteúdo é a própria privação do sujeito e sua (auto)sentença de morte. Como é mediado – ainda que pense prescindir disso ou não sabia de forma alguma dessa sua condição –, o sujeito trai a si mesmo. A linguagem trai seu melhor. Isto indica que ao passo em que expressa o mundo, a linguagem não consegue abarcá-lo por conta de suas próprias limitações. Limitações estas que se agravam pela “inconsciência” do indivíduo: sua imediatez. A adjetivação reificada – não-mediada – frustra as intenções mais conscientes do sujeito, na mesma medida em que satisfaz sua condição de objeto mediado por uma sociedade que deixou de ser “sua”. Concomitante à imediatidade dos julgamentos – e, junto a ela, imediatidade da existência –, e por consequência dela, particularidades são ressaltadas e elevadas ao domínio do universal, tal como se fossem de fato o universal. Eis a fórmula irredutível de toda discriminação: tomar uma parte pelo todo. Esta parte é, invariavelmente, transcendida ao próprio julgamento, como se fizesse parte da “coisa mesma”, da natureza, e não da falta de percepção – e da imediatidade – daquele que julga. Mas, como se disse, o juiz é também o julgado, mesmo que não queira e não saiba, e mesmo que se ache isento. As mazelas que condena são também produtos da condenação – seja esta implícita ou explícita. Condenação – em palavras que coadunam com o texto: adjetivação – não existe somente quando a palavra é proferida. A ação – mãe da palavra e da linguagem, pois estas são ação – é executada também na omissão, e em seu contrário: a não-ação. Delimitar é negar. Agir de determinada maneira é negar todas as outras formas potenciais possíveis. Não-agir não é “não-negar”: é negar tanto quanto. Não existe não-agir. Deixar de fazer algo é fazer outro algo – ainda que pareça um “não-fazer”. Como alusão, tal como diria J.-P. Sartre: estamos condenados a agir (a escolher, a “sermos livres”)[4].
Adjetivar é necessidade intrínseca de toda interpretação. E a interpretação é obrigatoriedade da existência. Mesmo quando não interpreta – e não julga – já julga e interpreta. A falha cardeal de toda linguagem, reiterando, é não conseguir abarcar o que se quer, a totalidade, por meio de si. Ela falha em seu maior intento. Mas nem por isso é preciso (tampouco é possível) abrir mão da tentativa. Através dessa mesma limitação é possível superar o que ficou vago e indefinido, superar aquilo que pareceu antes impossível. É o pensar mediado, e a existência que se entende também como objeto, que pode propor superar as limitações autoimpostas. O ato de vida – a ação – deve ser refletido mais de uma vez, para que a vida seja compreendida e agida. Ação sem pensamento refletido frustra-se já antes do início[5]. Pensar o julgamento, os adjetivos, a predicação, é pensar o mundo dialeticamente – por uma particularidade que seja, já que o universal compõe e se manifesta no particular. Para deixar “menos” abstrato, pode-se pensar a partir de exemplos (mesmo que os exemplos sejam, tal como a linguagem, imperfeitos em seu desígnio). Aqui nos limitaremos a alguns exemplos. O restante da reflexão – que cabe ao leitor – pode ser feita com esforço e participação.[6]
1. Um primeiro exemplo que, pelo menos aparentemente, se limita ao domínio lógico, mas nem por isso deixa de ser instrutivo. – “Deus é tão intenso que não cabe em definições.”[7] O que há de errado nisso? Aparentemente, nada. Aliás, aparentemente é até uma bela expressão, bem construída e que diz o que deveria ser dito. Contudo, ela se trai. “Deus é tão intenso”. A intensidade é uma definição. Ela exclui – para não estender em demasia a reflexão sobre este exemplo – seu contrário: a não-intensidade. Até aí, nada de errado, pois Deus não poderia ser “não-intenso”. Porém, se Deus é intenso ele não poderia ser Deus. Ser “algo” é ser delimitado; ser algo é negar todos os outros “algos” que poderiam existir. Como definição de Deus (único) ele é, na teologia monoteísta cristã, onipotente, onisciente, onipresente; é a perfeição e a totalidade. Estes adjetivos, que também se traem, contradizem o “intenso”. Pois sendo perfeição e totalidade ele deveria abarcar tudo, inclusive a “não-intensidade”. Se ele, Deus, não abarca tudo, então ele não é totalidade, tampouco perfeição. A própria definição de intenso trai seu propósito sem mesmo o saber. Se se unir as duas expressões – “Deus é tão intenso que não cabe em definições”, a contradição fica mais clara, e dupla. Ele “não cabe em definições” ao passo que é definido duas vezes: é intenso e também é definido como aquele que não pode ser definido. No plano da lógica formal o Proslogion de (Sto.) Anselmo dá conta de resolver esta questão. Todavia, a lógica formal se vale das palavras isoladas da construção do mundo, isenta-se completamente da imbricação entre universal e particular, entre sociedade e linguagem. Ela se vale das palavras por elas mesmas, independente da forma concreta das mediações. Ainda, esta lógica não pressupõe o que não está explícito, em palavras, no texto: o que lhe importa são as palavras, não as construções das mesmas, não como elas chegaram até ali (como significado). É como se a linguagem e as palavras fossem estanques, sem movimento. Não obstante, esta não é a discussão na qual queremos entrar. O que nos interessa são a contradição inerente e suas consequências. A linguagem trai a si mesma, trai seu melhor. Ela falha (sempre) em seu intento. Quanto mais i-mediada, prescindindo das mediações, mais reversa será. Reversa no sentido de reverter-se a si mesma, “dar um tiro no pé”. A adjetivação volta-se contra o “adjetivador”. Apesar disso, este exemplo é simples, está mais para mostrar a falha cardeal da lógica formal, ou de como a lógica formal contradiz seu intento e “se safa” ao abdicar de todo conteúdo concreto (que é contraditório por si só). Assim, adjetivar algo é relacioná-lo ao que se excluiu, àquilo que “não se disse”. E não dizer de Deus é uma contradição com o conceito: “Deus é”; qualquer adjetivação trairia a intenção.
2. Muitas expressões, que possuem até boa intenção, deturpam-se por conta de seus desenvolvimentos. Chegam mesmo a “matar” pela raiz seu intento. Por exemplo: “A PM não tem o direito de matar... nós somos trabalhadores!”. Uma defesa apaixonada é, ao mesmo tempo, o julgamento de “todo o resto” como passível de morte. Defende-se a vida pressupondo a morte. O adjetivo – ou predicação, ou complemento – volta a arma para quem profere o dito. Mas não se pode esquecer que o predicado tem raízes sociais. A “defesa” da vida dos trabalhadores se embasa numa sociedade do trabalho, na qual, suposta e implicitamente, está dado que quem trabalha é honesto e melhor. Historicamente, foi a passagem da Idade Média à Modernidade que conferiu essa definição positiva – e tudo que viria junto a ela – à ideia de “trabalho”[8]. Socialmente, esta ideia reforça e aprofunda a crise humana sob o capitalismo: venerar o trabalho, como algo divino, natural e eterno, é ratificar esta sociedade que depende do trabalho (da exploração do trabalho humano) e o glorifica, pois ele mantém as coisas como estão e gera riqueza e poder de dominação quase-total para uma parcela privilegiada da sociedade. A adjetivação “somos trabalhadores” traz consigo toda a complexidade da sociedade que venera o trabalho. As contradições sociais determinam o dito, ao mesmo tempo em que o dito ratifica e coloca em outro patamar de existência (mais elevado) as relações sociais exteriores aos indivíduos (exteriores e que os controlam). A boa ação, que não permite a morte “aos trabalhadores”, admite e até a deseja para os demais. Quando os “demais” são mortos pela PM, por exemplo, os “trabalhadores” não se identificam de pronto com a situação, já que “nada lhes diz respeito” e o “não-trabalho” traiu o morto. Ainda assim, à revelia, o “outro” é sempre o mesmo: este outro ao qual se deseja implícita e inconscientemente a morte também faz parte da classe que vive do trabalho. O adjetivo, por fim, revela quem deve ser poupado e quem não deve; manifesta, além do mais, a cisão da sociedade, a dissensão do humano consigo mesmo. Demonstra fortemente que uma sociedade centrada no trabalho determina, pela lógica social do trabalho e de suas consequências, todo o restante das relações sociais. Este exemplo, incompleto em si mesmo, poderia ser substituído e argumentado (ainda que de maneira mais ou menos diversa) por qualquer outra designação particular da sociedade. O que importa, por fim, é que o universal se manifesta no particular e tem sua existência através dele. A linguagem, a adjetivação, é uma de suas manifestações que, por conseguinte, torna visível o todo, pois é o todo e parte dele.
Qualquer adjetivação atual – verificando-se o senso comum reinante – resulta em uma aceitação da totalidade, ainda que pretensamente negue uma particularidade (por exemplo: nega-se o machismo, como particularidade, mas ratifica-se, em grande parte dos casos, a estrutura que o dá suporte e o engendra). E como se pauta na particularidade, não é simplesmente o “adjetivo concreto” que deve ser levado em consideração. O mesmo adjetivo – por ex.: “corrupto” – é aplicado dependendo de um referencial externo. Descontextualizado em relação ao significado e ao todo social, o adjetivo é relativizado conforme as preferências pessoais e inclinações sensíveis, emocionais e etc., daquele que referencia. Não é a corrupção que é ruim, mas o sujeito determinado que corrompe; não é a corrupção que é ruim, mas aquilo que foi eleito como tal (de modo estanque). Por um lado, a historiografia social do Brasil pode dar um viés explicativo para isso: cordialidade – no sentido conferido na década de 1940 por Sérgio Buarque de Holanda[9]. Por outro, o adjetivo trai o “militante” da linguagem e da retidão moral ao se aliar à relativização. A totalidade e suas contradições, que se mostram com força na linguagem, não são, todavia, levadas em consideração por aquele que se vale dos adjetivos concretos. Pouco importa o conteúdo abstrato – “abstrato” no sentido de “geral” e relacionado à totalidade – que permeia o dito. Contudo, contraditoriamente, é este conteúdo abstrato que se volta ao sujeito e o suga para seu vórtice, esfacelando-o.
A linguagem é a expressão concreta das contradições da sociedade. Ela revela as relações sociais vigentes, ainda que de maneira invertida, ideológica. Mas não só: como a linguagem é pensamento e ação – tanto concretos quanto abstratos – ela própria determina o todo social ao ser determinada por ele. Mesmo na imediatidade aparente do ato, ela traz à tona as mediações. Os indivíduos, queiram ou não, são produtos concretos de uma dominação abstrata da totalidade que se apresenta toda em cada particularidade. Mesmo que ela traia a intenção, pois a adjetivação mostra as contradições e dá um golpe na moralidade, politicamente a linguagem pode ir até as últimas consequências, e em suas limitações manifestar o falso todo: a totalidade abstraída dos indivíduos que se volta contra eles, domina-os, podando a experiência – que poderia se apropriar de tais contradições e, quiçá, superá-las – e substituindo-a por uma formação reificada da sociedade e dos indivíduos, uma formação substitutiva que possui o capital e suas designações totalitárias na base do processo de formação cultural dos indivíduos, da sociabilidade e da sociedade[10]. Semiformado, coisificado e deixando de ser humano, o indivíduo não consegue absorver suas próprias ações, tampouco a sociedade. Quanto mais adjetiva – sempre em direção ao outro, seja quem for este “outro” –, mais envolto na produção da barbárie que tanto condena moralmente: condenação moral e ratificação política são irmãs gêmeas.
A adjetivação revela, portanto, as contradições da sociedade e a falta de liberdade dos indivíduos. Uma sociedade que somente sobrevive podando a liberdade e a substituindo por um simulacro, cria sujeitos estanques que se manifestam pela imediatidade da ação. Quanto mais imediatos e radicais se tornam os indivíduos, “cobrando” retidão de um outro qualquer (seja indivíduo ou algo abstrato), menos liberdade e autonomia terão. Mais fincam os pés na lama da dominação que retroage sobre eles na mesma medida em que tentam ressuscitar o morto com a pá que cavam a cova. A contradição da totalidade somente se revela nos indivíduos quando a totalidade é também os indivíduos, as particularidades. Os julgamentos morais são, em suma, uma imediata frustração inconsciente do indivíduo consigo mesmo, e sua forma de “sublimação” é o ataque mediado a si próprio[11].




[1] Karl Marx, “Teses sobre Feuerbach”. Seria interessante, também, ver o texto de Ernest Bloch, Princípio Esperança, vol. I, no qual o autor faz uma belíssima interpretação sobre essas Teses de Marx.
[2] Adjetivo, aqui, não se refere somente a qualificação e definição. Isto é: não se limita, somente, aos adjetivos como forma de atribuir uma qualidade boa ou má a algo. Adjetivação é predicação. Sem predicação qualificativa nada existe para o sujeito social, nem sequer ele mesmo e seu mundo. Como exemplo pode-se dizer do trabalho: o trabalho cria algo a partir da relação do sujeito com o objeto. No entanto, em primeiro lugar, conformar a natureza, mesmo que seja em um “trabalho do pensamento” (como quando se olha para nuvens e se vê “formas” definidas), é limitar a natureza, predicá-la: isto pode ser um galho de árvore ou uma alavanca. Em ambos os casos depende-se da definição da coisa. Em segundo lugar, ao definir a coisa o sujeito define a si mesmo, pois delimita seu campo do ser. Sem delimitar as coisas não se delimita a si próprio, e não há como ser Ser, tampouco haveria como se diferenciar da natureza (quanto a isso, seria interessante o texto de Walter Benjamin: “Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem”). Em terceiro, o sujeito, em sociedade, não delimita as coisas sozinho e, portanto, não delimita a si mesmo em completa autonomia (Aliás, mais de uma vez Marx aludiu a isso remetendo à Robinson Crusoé, de D. Defoe. O que Marx dizia é que mesmo isolado na ilha, Crusoé era um ser social – isto é, independente de seu “isolamento” da sociedade, levava-a – a sociedade – em si: as determinações sociais estavam em Crusoé). Como ser social, ele é determinado a determinar. Não cabe a pergunta se a determinação veio primeiro que o determinante, pois não é possível pensar um sujeito primordial fora da sociedade que criaria a sociedade, nem, por outro lado, pensar uma sociedade sem sujeitos que a crie. “Definir é negar”, dizia G. W. F. Hegel. Ao se dar uma “determinação positiva para algo” (por ex.: este algo é X), nega-se todas as outras potencialidades (possibilidades que poderiam vir a ser) contidas no objeto (ou no sujeito). Se se tomar F. Nietzsche, em seu Verdade e mentira no sentido extramoral, o problema fica ainda maior: ao “delimitar” algo a partir de uma particularidade deste algo – como se tal particularidade fosse idêntica em todos os elementos semelhantes (o formato de uma folha, por exemplo) –, exclui-se todas as diferenças entres os elementos daquele “algo” e, ainda, toma um aspecto particular (algumas vezes irrisório) e o torna “o todo”, como se ele fosse a própria coisa. Delimitar, neste caso, é falsear: cria-se a imagem de uma coisa primordial da qual todas as coisas que existem são dependentes; isto é, cria-se uma definição transcendente, que não seria criada mas criadora da coisa, e dos humanos que se relacionam com a coisa, por consequência (tratei mais detidamente disto aqui: A primazia do objeto).  Todavia, sem a negação determinada de tudo que existe – sem a delimitação, sem determinação e negação do restante – nada existiria. É nesse processo que a História é possível. É, igualmente, nela que o sujeito é possível – e também o objeto. É aí que reside a autonomia e a liberdade: em tomar as rédeas dentro de uma situação na qual não se escolheu estar mas se está (quanto a isto, seria bom o livro Saint Genet, de Jean-Paul Sartre). O sujeito, que não tem primazia sobre o objeto pois ele é também um objeto, ainda que seja um “objeto privilegiado” que também é sujeito, tem a opção histórica de, mesmo dentro das determinações sociais e históricas inelimináveis, ser protagonista ou ser objeto de valor mais baixo entre objetos [coisa que o capitalismo faz com os indivíduos quando o capital – uma coisa, totalidade social reificada – passa a ditar as regras sociais ao tomar do controle dos indivíduos a decisão acerca da síntese social (as relações sociais) e recolocá-la ao seu bel-prazer. Quanto a isto, seria interessante o texto “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”, de Oskar Negt e Alexander Kluge]. Quanto à situação do sujeito também ser objeto, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno: “Sobre sujeito e objeto”. Por fim, o sujeito, ser de linguagem, necessita interpretar, pois é por meio da interpretação ativa que ele existe e define-se no mundo. Não há como não interpretar. E por interpretação não se deve compreender a mera opinião passiva que exclui o sujeito do movimento total da sociedade e o torna, mesmo quando não quer, um “moralista”. Interpretar é ser dialético. Ser dialético é se entender como mediado além de ser mediador. O contrário disso seria o “ser imediato” – e falso – que pretensamente existe e se entroniza fora do mundo para julgá-lo conforme sua “sublime” perfeição. Quanto a isto, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno: “O Ensaio como forma”; e também o terceiro manuscrito de Karl Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, no qual o filósofo faz uma crítica aos “hegelianos de esquerda” e ao idealismo acrítico, dizendo, entre outras coisas, que eles se postam fora do mundo, acham-se “pensando” o mundo perfeito e querem, por fim, impor suas ideias ao mundo imperfeito. O que vale, aqui, é que se colocar fora do mundo e pensar sua perfeição fora do movimento histórico da realidade para depois julgar o mundo como um equívoco, não é lá das coisas mais sensatas e críticas: pelo contrário, é ideológico e produto desta sociedade, na mesma medida em que são as mediações sociais coisificadas – isto é, tomadas do indivíduo – que determinam e possibilitam que o indivíduo se poste “fora” do mundo e se ponha a julgá-lo. A possibilidade de se compreender livre de qualquer determinação – imediato –, somente é possível numa situação em que a não-liberdade radical aparece como liberdade total.
[3] Ainda assim, este exemplo é imperfeito. Trata-se de pensar algo que seja, em si mesmo, contraditório. Portanto: indivíduo “X” julga algo (digamos, o machismo) e aponta para algum “julgado” (outro indivíduo que perpetrou diretamente o ato). O que aquele indivíduo “X” não percebe é que, primeiro, o indivíduo “Y” (aquele que cometeu a infração) revela, em seu ato aparentemente imediato, as contradições e determinações sociais; expõe, ainda mais, as fissuras da sociedade e sua violência intrínseca; segundo, não compreende que ele, “X”, é um dos polos que possibilita a “ação” de “Y”: ele é também mediado e mediador da violência das relações sociais. Quando esta violência “surge” em algum canto traz consigo também o indivíduo “X” como partícipe da totalidade social. Interessante seria, mas não é tão simples dada a ideologia dominante “postmodern” , apreender a totalidade social (as relações “estruturais” e “estruturantes” da sociedade e dos indivíduos) quando esta se manifestasse no “particular” (em um fato ou indivíduo “isolado”). Deixando mais simples: o machismo não é simplesmente “culpa” do machista (ainda que este deva responder sumamente por seu ato, pois, por mais determinado que seja, possui opções, um resquício de autonomia); ele é produto de uma sociedade que, à revelia do que pensam através da ideologia (“reificadamente”), coloca seu ponto de inflexão em seu contrário: no feminino. A ideia de feminino, por exemplo, somente existe na medida em que é produto histórico-determinado de uma situação que depende de tal “afirmação” para fazer valer sua dominação: o machismo e a ideia de feminino, tal como colocada pela ideologia e mesmo sendo afirmada em sua radicalidade contestadora, são faces que se ligam e necessitam se superar mutuamente. Algo semelhante ocorre com o racismo: afirmar o “preto”, tentando firmar com todas as forças uma “identidade”, pode ser, por essa interpretação, afirmar a situação que coloca o “ser preto” como subalterno e subjugado: afirmar a identidade do “preto” é ratificar a situação social que engendrou (e engendra) esta determinação definidora. Superar o racismo, por essa via, é superar a situação na qual o racismo é condição basilar de sustentação social. Por fim, para deixar claro o que aqui se quer dizer: as “mediações” sociais fazem com que uma única coisa possua contradição em si mesma, seja ela mesma produto e produtora (ainda que talvez não diretamente) da situação na qual está envolvida. Um último exemplo que destoa dos anteriores: o estuprador – em sentido lato – é o mesmo que é bombardeado por determinações (propagandas, formas de ser, consumo, formas de pensar e etc..) que exigem gozo em todos os momentos, com todas as coisas, e que, ainda que exigindo gozo (prazer irrestrito, sem limites) em tudo, poda a capacidade do indivíduo de alcançar tal gozo (pois este gozo é falso em si mesmo) e está, além de tudo, fundamentada em tabus que na tentativa de interditar o gozo (ou o ato que busca o prazer proibido), incentiva-o. O estuprador é produto de uma neurose social e coletiva profunda, não (tão somente) produto de si mesmo.
[4] Seriam interessantes os livros de Jean-Paul Sartre, tanto filosóficos quanto literários. Vou me restringir a indicar alguns: O ser e o nada (filosófico), A náusea e Entre quatro paredes (ambos literários).
[5] Quanto a isto, seria interessante o texto “Notas marginais sobre teoria e práxis”, de T. W. Adorno.
[6] No texto “O Ensaio como forma”, T. W. Adorno diz que a interpretação deve ser ativa, que o leitor deve participar do texto e incidir sobre ele, interpretá-lo. Um texto, além disso, é quando o leitor o interpreta. Não há como escapar a isso.
[7] Esta frase, “adesivada” em vidros de carros, lembra o Proslogion, ou Argumento ontológico sobre a existência de Deus, de Anselmo de Cantuária.  
[8] Quanto a isto, seriam interessantes os seguintes livros: A ética protestante e o espírito do capitalismo, clássico de Max Weber; e, História da riqueza do homem, de Leo Huberman.
[9] Seria interessante o livro Raízes do Brasil, clássico da historiografia crítica brasileira, de Sérgio Buarque de Holanda. Ao mesmo tempo, seria de suma importância o excelente artigo de Francisco de Oliveira: “Jeitinho e jeitão”, que pode ser encontrado aqui: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-73/tribuna-livre-da-luta-de-classes/jeitinho-e-jeitao.
[10] Quanto a isso, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno “Teoria da semiformação” (há duas traduções deste texto: a primeira, traduzida como “Teoria da Semicultura”, que pode ser econtrado na web, foi publicada em 1996; a mais recente, 2010, Halbbildung foi traduzido por semiformaçãosemiformação cultural. Esta se encontra na coletânea Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa, organizada por Bruno Pucci, Antônio Zuin e Luiz Calmon Nabuco Lastória, publicada pela Autores Associados). Além deste, os seguintes textos do professor Wolfgang Leo Maar: “Materialismo e primado do objeto em Adorno”; “Adorno, semiformação e educação”; e, “Lukács, Adorno e o problema da formação”, todos disponíveis na web.
[11] O indivíduo isolado, portanto, não possui (quase) nenhum poder. “Atacar” um indivíduo racista, por exemplo, pode até ser satisfatório para o ego e uma forma de lutar contra o racismo. Porém, eliminar o indivíduo racista não toca no problema central: o racismo. O racismo não é uma soma de racistas, como se a cada racista que se vai (é preso, processado, muda de ideia e etc.) o racismo diminuísse. Ele, como uma particularidade social, é também expressão da estrutura universal da sociedade. Mesmo o não-racista pode ser racista na medida em que se está envolto numa situação complexa da qual é impossível sair sozinho, tampouco sair ileso. Usar a lógica do pensamento pós-moderno do senso comum, que se vale de uma estrutura fragmentada, pois o pensamento é fragmentado e não consegue conceber nada além daquilo que os olhos podem ver, ...usar esta lógica, portanto, é se enveredar por uma via que depõe também, e talvez com mais força, contra a testemunha. Valer-se desta lógica pode levar ao absurdo de ter de ratificar inclusive aquilo que se condena. Como é possível, por exemplo, alguém que é contra e luta contra o racismo, o machismo e etc., mas acha que o racismo, o machismo e etc., são unicamente produtos do indivíduo racista, machista e etc., (como é possível então) que este que pensa dessa maneira possa contra-argumentar em relação à redução da maioridade penal, por exemplo? Ora, a lógica é a mesma: para o “outro”, o problema é o indivíduo concreto, e isolado, que é criminoso. Nada mais justo, então, – pela mesmíssima lógica – que condená-lo. Veja-se, por exemplo, a traição adjetivadora das seguintes frases, pressupondo esta “lógica do absurdo”: “Quais as causas do estupro?” – pergunta-se. “A única causa é o estuprador.” Ou, outro exemplo: “Quais as causas do machismo?” – Ora, é “óbvio” (para os que pensam assim): “a causa são os machistas!” (os mais radicais dizem: “são os homens!”). Não levar a totalidade em consideração, a estrutura e as determinações sociais totais, é se enredar em contradições insolúveis e, como é fácil perceber, é dar um tiro certeiro em si mesmo – agora não mais no pé, mas no coração! As relações sociais determinadas, e junto a elas os indivíduos sociais determinados por tais relações à revelia de si mesmos, devem ser consideradas. Caso contrário, a luta pode ser em vão, mesmo que pareça moralmente satisfatória. Um adendo: a partir dessa lógica, impõe-se, por dentro, que os pretos devem lutar e discursar contra o racismo; que as mulheres devem lutar e discursar contra o machismo e etc.. Um dos problemas é que “lutar e discursar” significa, aqui, “lutar e discursar exatamente igual àqueles que impõem isso”, isto é, qualquer discurso que “varie” da forma convencionalmente aceita é rechaçado de pronto, imediatamente. As “revelações” individuais quanto a estes “fatos isolados” são (leia-se: podem ser; nem sempre são assim) da melhor espécie: “você não é negro (ou não é “tão negro quanto esperávamos que fosse”) para falar sobre racismo”; “você não é mulher, não possui o direito (inato, deve ser) de falar acerca do machismo”; e etc.. 

Subsolo!

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Inabalável Pureza

A linguagem trai seu melhor. Ela sufoca tudo aquilo que deveria dizer, dizendo. A cópula impõe a subversão: a copulação de dois traiçoeiros. Mesmo o mais bem intencionado dá um golpe fatal em si quando transa as palavras. O amigo mais íntimo do sentido imediato – o adjetivo – aponta arma invertida para trás, em direção àquele que o colocou na jogada. Sua mãe-mestra, a adjetivação, sorri. Sabem a si mesmos imprescindíveis. E por isso traem. Seu jeito atraente não se desvencilha de um sorriso sarcástico. Adjetivar é matar o melhor; não fazê-lo é impossível.
O pensar, mais simples que seja, exige o adjetivo. Começa-se no sujeito – o tolo que acha ser seu melhor amigo. Ele clama pela adjetivação para fazer sua vida plena de sentido. O adjetivo, por sua vez, sempre bem recebido e quisto, nunca falha em seu desígnio, exceto pelo fato que sempre coloca tudo como numa câmara escura – de cabeça para baixo. Este, com seu jeito inocente, dá sentido de ida, que agrada o sujeito mais descontextualizado. O sujeito sente-se feliz e, risonho, agradece aquele pelas belas definições. Não percebe, porém, que a traição é a vida do adjetivo, que copula à revelia do sujeito, deixando a este as migalhas com as quais se lambuza. Talvez nada faça sentido. Isso nada mais é que a ação perfectiva da adjetivação: ela trai o melhor. Mesmo o sujeito mais lúcido, mais atento e contextualizado, enreda-se na lábia do outro. Perde-se na vingança perfeita de seu suposto amigo. Mas adjetivo, caro amigo, não mata. Sua intenção é o vexame público, o definhamento do sujeito. Mesmo no âmbito particular, privado, o adjetivo sai ileso. Ele não tem culpa, é inocente em seu crime primoroso, já que se acopla ao sujeito, pela cópula, e nele se dilui, some – ainda que ali esteja com todas suas letras.
Todavia, para que tudo isso? Para que dizer se se pode calar? Não, caro amigo, não se deve nem se pode calar. Não dizer não é calar: o pensamento, por mais insensato que seja, não permite pausas. O sujeito, sozinho, não é ninguém. Adjetivado, copulado com seu melhor – e traiçoeiro – amigo, é tudo. O apaixonado imaculado e parvo – o sujeito – é tudo o que se tem, mesmo na mais ampla e alta adjetivação. Entretanto, não nos esqueçamos: o sujeito não é ponto de partida, mas ponto de inflexão. Ele é mediação, pois é mediado. O adjetivo, inocente e sem maiores intenções secundárias, é, antes de tudo, produtor do sujeito. Ele é o mundo. E como mundo fabrica o sujeito a seu bel-prazer – e depõe contra ele! O sujeito, objeto da adjetivação, é também o sujeito da adjetivação: é produto de si mesmo. O crime perfeito do adjetivo – se é que me entendem, meus caros – é sua capacidade de nunca se pôr no centro, sair sempre ileso. Enquanto trai o melhor, retira-se inocentado.
O adjetivo é o mestre dos disfarces. Sua mestra faz com que a cada uso se transmute, como se fosse sempre um novo. O sujeito, casto, não se dá conta das mutações do sempre-mesmo. Faz sonatas apaixonadas e cegas, todas as noites, em sua exímia e inabalável pureza, debaixo da janela do adjetivo. Sua força apaixonada é sua fraqueza mais terrível. Seu amor é incestuoso e esquizofrênico. Quanto mais sujeito o adjetivo se torna, menos sujeito o é. Quanto mais se perde – o sujeito de fato, o tolo concreto – na multiplicidade da adjetivação – quanto mais amor dá ao outro, seu amante – mais envolto na perdição. Submergido até o âmago, ele não se sabe no centro do joguete da situação. Sua loucura, imediata, é o desenrolar do seu processo de amante do adjetivo em suas múltiplas faces ao mesmo tempo. Mais a mais se envolve, mais a mais não perdoa a si próprio. Seu alvo, linear ou perpendicular, é o reflexo de si mesmo, de sua paixão e de seus maiores medos. O adjetivo não se importa para onde vai: apenas vai – e, variando, sorri sarcástico. Enquanto o grande mestre dos disfarces se transmuta, ele, o malfadado amigo, é sempre o mesmo. Ainda que o inseparável e ingrato aliado não se transforme em outro – e isto é quase uma aberração, pois seu grande defeito é não conseguir se manter estável em sua figura, mesmo que possa sustentar seu humor –, é sempre o sujeito que se apresenta em sua aparência indefectível. Na cópula o adjetivo se perde no sujeito, embora esteja lá, presente, e faça falsete do grande estardalhaço. Mesmo sozinho – ora! e quando apareceria sozinho?! –, ele traz consigo seu “amigo” que doente não se dispôs a sair de casa. É este, o tolo, que recebe todas as graças. O adjetivo não se dói por isso. A adjetivação sorri, com seus lábios cáusticos, por sua não-presença que tudo habita e destrói. Amante i-mediado de si mesmo, o sujeito é o único que existe. Para si, o adjetivo é seu amigo; na verdade, ele é. Substantivo e verbo são os únicos que existem. O adjetivo é predicado do sujeito, seu íntimo exposto – é adjetivo duas vezes sem ser nenhuma. Ele não existe senão em função do sujeito – é o que este pensa. 
O sujeito é o achincalhado dos séculos que tudo aceita, pois nada sabe; que se vê envolto por completo na culpa – e não se safa, nunca! – mesmo fazendo as honrarias mais elevadas ao julgamento. Aqui, sem perceber, seu amante muda de lado e imediatamente o destrói em sua reputação. Seu amor é sua morte (vio)lenta. A traição e sua paixão desenfreada são gêmeas.
A autonomia do adjetivo – para não dizer que não dei explicações! – é plena. Ele não se liga a nenhum sujeito. Seu ser é exatamente este. Quanto mais amor recebe, menos necessita de esforço para se desvencilhar. Quanto mais do sujeito é, menos pertence. A natureza plena da adjetivação é servir a qualquer sujeito como a um amo. Desgarrado, seu serviço é puro, porém sempre bem cobrado. O adjetivo cobra caro por suas rondas pelo mundo. Quanto mais ecoa, mais e mais valioso seu ofício insubstituível. Chega mesmo a formar frases quase sozinho – como se formasse cartéis, quadrilhas! –, em múltiplas formas, nas quais não varia, invariavelmente, o humor. Mesmo o masoquismo inconsciente do sujeito depende duplamente do adjetivo. Primeiro para ser masoquista; segundo por ser masoquista. Aquele e sua mestra se riem em largo. O intento do sujeito é sua imediata frustração: quanto mais ama, mais o ódio – seu mesmo, mediado por seu ilustre e insubstituível amigo – o escarnece.
A inabalável pureza, que deveria ser creditada ao sujeito, é de seu amigo-algoz. Ele, sujeito, na conjugação do si, acha ser puro. Contudo, somente ele: o sujeito, não um único sujeito. O sujeito... O artigo é definido, o sujeito não. Qualquer rebento, pouco importa, ocupa papel principal na construção da realidade. Adjetivar, julgar, qualificar: eis seu grande intento. No infinitivo o adjetivo é um atributo intrínseco ao sujeito: sem cópula, a transa de ambos se torna fusão. O adjetivo, em sua nobre esperteza, funde-se inseparavelmente ao sujeito. Sua composição é sujeito – ainda que seja arranjo falso.
Inconscientemente atônito, o sujeito julga. Imprescindível, portanto, é o adjetivo. A castidade do sujeito só se dá na imediatez – e somente para si mesmo. Disse-se: a linguagem trai o seu melhor. O adjetivo se volta ao seu amigo mais fiel, mas não de imediato, tampouco i-mediado. O julgamento possui, sem que se saiba, três vias. O sujeito só sabe de uma. Porém sua inconsciência não o isenta. A segunda é o envolvimento erótico do sujeito com seu alvo – com mais paixão, até, do que aquela que o sujeito dispensa ao seu predicado amancebado. O outro, por sua vez, é, antes de tudo, o si mesmo: a mediação se completa. Mal sabe o sujeito que sua paixão odiosa, que tudo julga com grande afinco, em detrimento, é seu inextricável complemento. Sua bela alma, de casta moralidade, não vê a terceira via – tal como não viu a segunda: ele é o outro; o outro é... E aqui, caro amigo, não importa a adjetivação: é a cópula que sobressai. A candidez do sujeito não se exime. Seu complemento, o julgado, é seu lado simétrico, sua fonte permanente de existência, sua produção espiritual mais rematada e perfeita. O adjetivo, sorridente consigo mesmo, cumpre sua função: nega todas as outras possibilidades ao se aferrar, como convidado de honra do sujeito, em designações perturbadoras. A válvula de escape deste é o prazer de se isentar vazando toda sua culpa inconsciente. Entre sujeito e seu complemento não há só a cópula: há cópula. Existe um mundo imenso, todo, que vincula o sujeito a si mesmo ao fazer a ponte que o engendra com todo o resto. Mas sua verdade, imediata, parece fazer jus ao seu âmago: nada deve, pois tudo teme. Seu julgamento moral imediato é produto de sua angústia frente ao mundo criado – e criador! -, descontrolado e sóbrio em sua justeza. Não é mais imediato, nem nunca foi. A linguagem, como se disse, trai seu melhor. Ela, composta primordialmente não pelo sujeito, mas pela adjetivação – agora protagonista –, transforma a pureza em seu outro, diametralmente oposto. Todavia, a pureza, inabalável em si mesma, mantém-se firme em seu posto. Debochadora de sua própria decadência, ela isenta o sujeito ao bloquear as outras duas vias do predicado. Deixa de perceber, no entanto, que sua imediatez também não é de sua posse, assim como nem os adjetivos o são. O traidor, no fim das contas, somente revela a real face do sujeito. No fim das contas, o adjetivo é o contraditório portador da verdade tímida, que nunca mostra sua face por completo, tampouco de imediato.
Certa vez alguém disse que a linguagem não pode expressar o que quer. Sua falta de sorte se alia a sua carência de percepção. Com o tempo ela se desvincula da imediatez do sujeito – ele não se vê mais criador. Agora, alienado, é criado pela linguagem. Esta, e todos seus desígnios – inclusive a adjetivação e a subjetividade –, torna-se natureza. Sendo natureza – algo divina –, pode deixar que se processem tudo e todos na imediatez. O sujeito não se vê mais como sujeito, ainda que reivindique subjetividade. Seu predicado é sua alma gêmea. Como alma, produto de outro mundo. A imediatez do sujeito, caro amigo, somente se completa quando não se percebe ser de linguagem. Agora, sem o saber, é ser – se é que é de fato serda linguagem, sua proprietária. E a linguagem é mais que conjunto de palavras e expressões, ainda que mal feitas. Ela é o mundo, totalidade. A produção de mão dupla da linguagem e de seu mundo – o mundo! –, é obra perfectiva do sujeito de linguagem: História. Dentro do mundo, mediado, pensa-se isolado em sua imediatez. Somente assim pode adjetivar sem escrúpulos e manter sua pureza inabalada, entronizada em si mesma. Quanto mais julga, mais e mais se isenta; quanto mais produz, menos a menos se sente parte do produzido – e menos a menos se sente como produzido, de si mesmo e de seu mundo.
Contextualizado à revelia de si mesmo, objeto entre objetos que se move sem se produzir autonomamente, o sujeito é um mundo: um mundo, não sua parte. Ele revela em si todas as proezas e discórdias do mundo; todas as perversões de fundo; toda sandice e toda neurose. Ele, particular, é o portador do universal. Ele, universal exemplar em uma particularidade, é tudo, é o mundo, e sua destreza nada mais revela que isto: sua mea-culpa. –– Não cabe, caros amigos que desde o início adjetivaram este pequeno excurso sem a mínima gravidade na consciência, a pergunta de quem viria primeiro – aquela que os mais tolos fazem frente à galinha. Se ainda não percebeu que não há espaço para esta singela questão aqui, retorne ao início. Quanto a nós, propomos terminar este breve excurso e retornar ao nosso assunto cardeal. –– Adjetivador imediato do mundo, o sujeito é exatamente o adjetivado: seus julgamentos nada mais revelam que sua impureza, ao mesmo tempo sua face mórbida. Mediado: adjetivador de si, mesmo sem se colocar no predicado – ou nas ou 3ª pessoas. O adjetivo trai quando revela que um e outro – sujeito e sujeito, neste caso – são siameses, frutos de um mesmo ventre que se esforçam constantemente para produzir e manter – alguns, no entanto, em plena inconsciência de seus feitos. É do ventre que vem também toda a gama de disfarces dos adjetivos. No final das contas, o adjetivo é sujeito por ser sua parte mais essencial, ser sua vida e movimento vivo de seu ser mais íntimo. A adjetivação é filha daquele ventre que o sujeito fez para nascer, ele mesmo, sujeito. A contradição encontra sua reconciliação na força destrutiva do sujeito. Quanto mais ele ama, apaixonadamente como sujeito que se exime de culpa, mais lambuzado em sua própria fonte de prazer e satisfação, de traição e tortura. Quanto mais natural, mais puro e inocente; mais isolado e acima de si mesmo – fora de si. Sujeito: mediado. Adjetivo: seu complemento mais próprio, sua realidade para além de si mesmo.  
Não obstante, na moral tudo deve ser imediato. Rompida a imediatez – ou concebida a verdade do adjetivo e de sua mestra –, ela, a moral, desvanece. Quando não, reina absoluta com sua destreza, aliciando aos olhos do apaixonado sujeito – falsamente – a adjetivação como se fosse sua serva mais dócil. Sujeito e adjetivo são duas faces da mesma história, completam-se e se afundam juntos, um mediado pelo outro; ambos mediados pelo todo. O sujeito, mediado, julga a si próprio, sua exímia decadência, sua elegante tortura prazerosa. Masoquista de aparência, sádico

Subsolo!

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Febre do rato

Distopia: personagens semivivos, semimortos, caminham pela República. Atrás de um-são. Não se encontra; não se encontram. Perdem-se a cada vez mais que se buscam no local desumanizado. Veem através de um reflexo de si mesmos, na sujeira, iluminação. Parca iluminação! Concebem salvação onde existe morte. – Febre do rato! Alucina mais que mata. Mata pelas beiradas, pela alucinação. A salvação é sua própria imagem reflexa; parece invertida, contudo, é produção sua, de si mesmo. A distopia prevê antes a morte de tudo – como salvação de um certo mundo – do que saída por uma terceira via. Só há ida e volta. Não há opções. A liberdade, mediada pela febre que ataca, é prisão insensata, vida abismada, morte apaixonada – ainda que a paixão seja medo.
Semivida, liberdade, medo e caos: os vivos não estão mais neste estado: precisam enterrar seus mortos, largar suas vísceras já esfaceladas e correr, correr. Não pela única estrada, de mão única, que concebem mediados pela cegueira. Ao contrário, abrindo mata, fazendo da velha estrada algo risível e deslocada da realidade. Liberdade se faz arte. Arte da vida. Sem fechar feridas: escancarando-as! O medo mata. O caos habita a pele suicida dos rinocerontes abafados pela febre. Semivida não é vida, é caos! E caos é o estado permanente da ordem. O desordenamento do mundo é a vida profunda que rompe a paixão do medo. Desordem não é caos, é liberdade efetivada, superada na angústia. Semivida é morte. E morte é o que não se quer, ainda que já se esteja atolado nela. Liberdade é ruptura e suicídio da morte. Morte morre. Escorre sangue à dentro. “Os ratos não sabem morrer na calçada”. Já estão mortos; ou, por outra, são a própria morte!
Afazia: a memória falha. Os órgãos falham. A vida falha. O esquecimento é o princípio. Não princípio degenerativo. Mas o princípio positivo: nada se perde, pois nada se tem na memória. Consciência e culpa se misturam. A febre distópica que afaga personas semivivas-semimortas é processo de culpa incubado; é vida que escorre pelo ralo. É halo sobre terra firme movediça. O inferno é reflexo direto, sem mediações. O mesmo que aponta aberrações alimenta-as desde o início. Mudança é peso que não se pode carregar, pois culpa pesa mais de mil toneladas. Morte à consciência!
Papel encenado já é outro e o Personagem morto: quem se diz vivo, numa situação que só aceita os vivos, é morto. Quem morre para essa situação revive sobre o caos, esmagando-o. Encenar a mesma cena é reduplicar a fantasia – fantasia no sentido da ilusão; é lutar contra a afazia; é manter tudo como está, ainda que com ares de persistência revelacionária. Revelacionária: o papel cumprido, na grande peça extática, pelo personagem que, antes de tudo, revela A Verdade. E esta, em sua exímia sapiência divina, mostra-se como o espírito do tempo da morte do personagem. Uma fantástica fábrica de mortos. A vida dos outros – se é que existe – é revelada como falsa, aos urros, pelo secundário que se entende protagonista. Romper “A verdade” é morrer para essa vida que se faz morte – e somente morte; é incendiar a corte, que se quer nobre; é deixar de ser personagem – que vive uma vida podre! – e incendiar o teatro. Quem busca ordem, clama por morte. A veneração pelos ratos, a exigência de sua febre, a distopia catastrófica e inerte, a morte revelada e a culpa assumida, não me servem! Aqui, o papel já é outro e o personagem, morto! O medo dos semivivos é que a morte por completa os pegue. A morte completa é anima dos semivivos.

Subsolo!

sábado, 26 de setembro de 2015

Definição do tempo histórico: entre a distorção e a loucura


Tudo caótico! A vida se passa em um momento louco. Os mais medrosos defendem os interesses dos outros – e dizem ser mesmo deles. Os mais espertos defendem os interesses aparentes dos outros – mas são, na verdade, seus mesmos. Os outros, por sua vez, sequer sabem que estão sendo debatidos, jogados aos dois lados. Os lados, cada qual em seu canto, somente se resumem em dois: nem quadrado, nem nada. Todo imobilizado. Não formam figura. Tudo imediato: a verdade do processo é tomada de assalto, esquartejada. E isto exatamente por quem mais diz defendê-la. A proeza, que vem da ex-querda, revolve-se nas tumbas. É isto! Ela morreu – aquele lado – e quer se dizer viva. Seja como for, sobra apenas o reflexo distorcido do que foi um dia. Nostalgia? Nem! O processo da história engole tudo, inclusive aqueles que dizem apontar seu norte. Mas que nada! O medo é poder coeso, expresso de modo inverso, parece guerreiro mas é cachorro acuado, rabo entre as pernas. Ou, de outra forma, é capacho de Casa-Grande: defende o interesse do senhor, limpa seus pés – e sua barra – como se fosse seu serviço mais nobre. Sua autonomia reside – e morre! – na porta de entrada: recebe bem enquanto é enlameado.

A totalidade – outrora levada em consideração pelos jacobinos – agora é sumamente ignorada. Nada mais lhe diz respeito. A totalidade – a outra, a falsa, o fetiche, a reificada – vence. E vence com pompa de natureza: sem ser notada, se impõe; naturalizada, nem se esforça. O desespero, amigo do medo, nem mais bate à porta: entra sorrateiro ao mesmo tempo sorridente e toma tudo com grande armada. Sua sacada: não se esforçar. É sempre bem recebido por aqueles que deixaram a utopia de lado e se voltaram ao caos: evitam a distopia a perfazendo do centro às beiradas; das beiradas ao centro. Cão espumento que morde menos, ainda é cão. Ainda transmite raiva. Ainda é cilada.

De dois lados não se faz nada. Ou são paralelas, ou têm histórias cruzadas, e se confundem. Enquanto se enroscam uma na outra, o papel é o mesmo e define os limites das linhas – que se querem lado mesmo que sejam somente retas tortas oblíquas e dissimuladas –, ainda que pareça seu amigo natural. O papel não aparece, nem para aqueles, nem a estes. Mas são aqueles que se beneficiam. São eles os verdadeiros amigos da limitação do papel. O benefício? Bem, é somente de quem produz a celulose. Não são estes, certeza.
É muita boca para falar aos quatro ventos. É muita boca passando fome sem querer comer, cedendo seu prato ao gordo do outro lado, que mal sabe o que é a fome; que não para, só come. A nobreza e o altruísmo do faminto, pobre, é sua morte, podre. Sua defesa apaixonada é com a pá que cava. Sete palmos em sete anos. Quatorze anos é o dobro.

Enquanto a totalidade não é tocada – o papel ainda o mesmo e o personagem morto – a vida escorre – nem vive, nem desenvolve. Nada se resolve. Tudo caótico. O medo é tópico, é distópico. A morte é viva. A menina, o outro, a faminta e o lobo. Todos se acham com razão imediata. Enquanto a Coisa – sim, o capital, a totalidade, para não dizer que fiquei na abstração – segue seu curso ininterrupto. No fim, fomos covardes e pilantras, ao mesmo tempo. A covardia nos tornou pilantras. A pilantragem nos fez coveiro. A cova virou calvário. E o calvário se tornou o medo da perda. Perda de quê? Pois bem, eis o que não se tem. Nada não se perde, todavia somente a ilusão quando se rompe.

Subsolo!

terça-feira, 14 de julho de 2015

Uma Ode ao Ódio

“Mata! Mata!” Este é o lema explícito do ódio à flor da pele. Ódio, este, esvaziado de seu significado: torna-se o bem supremo dos bons. Ainda que não seja dito pela boca de alguns, é o pensamento mais íntimo, o desejo mais perverso e sorridente: é o que se quer, ainda que secretamente, ainda que não exprimam publicamente este desejo, por algum resquício de certo pudor (meio enviesado) ou por timidez.
Mas este ódio, esvaziado de significado imediato, ganha um significado complexo implícito, ideológico. Ele recorta, quase que por si só, quem deve ser odiado. Relativo, o ódio não tem fixidez com qualquer finalidade: se sua finalidade é a morte em um determinado contexto, é a vida em outro. Concomitantemente, o ódio é o elixir mais elevado da vida: a morte do indesejado – que é, inversamente e que o completa, o mais fortemente desejado – é relativizada. O ódio é bom. Ele alimenta a vida, exprime-a, sustenta-a. Ainda que vazio de um conteúdo imediato, ele se preenche pelo recorte livre e autônomo do ser-de-ódio: aquele ao qual é endereçado o ódio é muito bem escolhido, ainda que à revelia daquele que odeia. Isto é explícito – talvez não para aquele que odeia e não é o alvo público do ódio. Quem deve morrer é como gado para corte: já está marcado desde o início do processo. Assim o significado complexo do ódio adquire novos contornos: no imaginário popular coletivo, o odiado tem classe social, cor, sexualidade, religião – mesmo que alguns desses fatores possam, também eles, ser relativizados conforme o contexto e o momento de disparo do ódio.
Aquele que odeia não tem face de mau. Pelo contrário, é o sujeito simpático, muitas vezes recatado e religioso que mora ao lado. É o mesmo que dá bom dia aos vizinhos e sorri às crianças quando sobe a rua. Ele nem mesmo cogita que odeia algo, alguém, ou mesmo um grupo. Não cogita que faz parte da massa que odeia o ódio e odeia odiar aqueles que não eles: ele se considera o indivíduo comum. No entanto, o indivíduo comum é o mesmo que quer que todos sejam “indivíduos comuns”: todos precisam ser como ele, caso contrário, o ódio é como uma exigência que o outro faz a ele. É o indivíduo comum que se revolta contra as mazelas que o sistema cria. Ou melhor: que se revolta com as mazelas que dizem a ele que existem. Se existem ou não, se são daquela forma ou não, se os “culpados” são mesmo aqueles ou não, pouco importa. A imagem do individuo que odeia é aquela do indivíduo que chega em lugar lotado e vê uma aglomeração mais um menos linear: sem saber do que se trata – se é que se trata de algo; e mesmo se se tratar, não sabe e nem se importa se esse algo lhe interessa – ele entra na “fila” e ainda briga para manter seu lugar e não ser tapeado por algum “fura-fila”. O ódio faz parte dele como seu DNA faz parte de seu ser genético: pouco importa como o DNA é, qual sua estrutura; importa, antes, que ele mantém o corpo e todas suas funções em seu funcionamento perfeito, dá as características “imutáveis” do indivíduo e sua personalidade como um todo. O ódio faz parte dele pois ele nem sabe o que faz: apenas faz.
A morte, tabu social, somente choca, ainda que momentaneamente, quando atinge diretamente o indivíduo. Caso contrário, ela é como o brigadeiro de padaria: gera um prazer imensurável no momento, depois cria um desejo incontrolável de “quero mais”. Não importa qual, como, nem as condições que rodeiam o indivíduo (nem aquelas que permeiam a padaria e o brigadeiro): apenas se quer mais e mais. A eliminação do brigadeiro é o objetivo, tal como é o objetivo a eliminação do altamente in-desejado. Diz, consigo mesmo, que brigadeiros são péssimos e que quanto mais comer e mais rápido, mais eles serão eliminados e deixarão a sociedade livre dessa praga. O que ele não percebe, pois não olha para trás, é que o dono da padaria sorri loucamente enquanto açoita o confeiteiro para que produza, em progressão geométrica, mais e mais brigadeiros. O lucro do dono da padaria – e o mais-valor pela alta exploração do confeiteiro – aumentam também em progressão geométrica pelo ódio aos brigadeiros. Quase todos – exceto o dono da padaria – começam a odiar os brigadeiros. “Morte aos brigadeiros!” – é o que dizem.
O ódio passa a receber elogios, ainda que tímidos, pois nunca tocam em seu nome diretamente. Canções de louvor são feitas a ele. Templos sagrados são erguidos. E os já existentes transmutam-se para receber a peregrinação em seu nome, que quase nunca é dito. Continências, reverências, coroas de louro mergulhadas em sangue. Altos muros, cercas elétricas, segurança privada. Vidros blindados e medo. Muito medo. O ódio causa medo. O medo, ainda que um sem-sentido, gera ódio. O resultado é uma grande Ode ao ódio.
A padronização da existência cotidiana sustenta o ódio como colunas centrais. De um e de outro lado as exigências são as mesmas: morte aos que querem ódio – contraditoriamente.
Todos, nesse balaio, querem seus super-heróis – ou querem eles mesmos ser super-heróis. O problema, que não se pensa, é que todos os super-heróis a fim de salvar a sociedade, os bons e seus bons costumes, a socialidade, a ética, a ordem, a aparência e etc., primeiro destroem tudo: destroem completamente a cidade para salvar a cidade – ou salvar seja lá o que restar, se é que restará alguma coisa. Mas, por fim, ainda é importante lembrar que o ódio não tem a intenção, ainda que não saiba disso, de destruir aquilo que é odiado: a destruição deste seria sua própria destruição (pelo menos pela lógica). Ele quer, acima de tudo, manter a si mesmo e se fortalecer. O ódio gera a horda que quer destruir e, como uma Ode, ele ama e é a alma gêmea daquilo que odeia. 

Subsolo!