quinta-feira, 24 de maio de 2018

Apontamentos #2


     
De um ponto de vista dialético – se é que se pode chamar a dialética de ponto de vista –, a afirmação irrestrita da realidade efetiva é afirmação da ideologia efetiva. Por um lado, há aqueles que, ingenuamente ou por má fé e mau caráter, anulam os aspectos “negativos” (do ponto de vista deles) para afirmarem os “positivos” (idem), colocando a contradição em suspenso (senão a anulando). Por outro, há os que concorrem com aberrações o posto de alto comando do lunatismo: também totalizam um aspecto parcial para fazer valer sua visão desvairada do “mundo” (um mundo à parte, de fazer inveja ao desenho animado Bob ou a qualquer Stultifera Navis). Excluindo estes, vejamos até que ponto vai o outro.
O novo lumpemproletariado acha que pode, a partir de si e somente de si engendrar uma visão crítica da realidade. Rejeita toda e qualquer autoridade – que seja alteridade em relação a ele – como se, por si só, autoridade fosse autoritária; renuncia à experiência da adversidade (se é que ainda é possível) e ao debate crítico profícuo e profundo na medida em que, de um lado, não satisfaz o ego individual e, de outro, é (pros)elitismo. Só se aceita, por conseguinte, o que vem de dentro, o que já está dentro, o que já está dado – e dado por si próprio: na era da “pós-verdade” (sic!), só aceita a autoverdade. A questão, aqui, é que esta – a autoverdade – não é monadológica, niilista ou algo do tipo: é universal e universalizada. Sua visão crítica se dá a partir de suas vivências. Esquece-se, é claro, toda contradição implicada na ideia de “vivência”: autossuficientes, sem necessidade de distanciamento e de crítica que vá para além do que já têm como “crítico”, esquecem-se as mediações da tal vivência. Vivência de quê e como, a partir de quais lentes se olha e se filtra a realidade – lentes produzidas onde e por quem? A diferenciação subjetiva (ainda há subjetividade?), a vida supostamente autoalimentada (apenas por si mesma), vida independente tanto de outros quanto de condicionamentos – salvo pelos condicionamentos escolhidos pelos próprios autossuficientes e, também, pelo grupo ao qual se identificam sem prévio aviso, anulando todas as diferenças que poderiam elevar as contradições à dignidade de seu posto real – esquece-se, sumariamente, que depende de uma totalidade que permita e que dê condições para que haja individuação. Só há diferenciação subjetiva sob uma objetividade específica.
Nenhuma realidade se dá à vivência, ou à semiexperiência, sem filtros. Isto não quer dizer que sejam “fenômenos”, aquilo que aparece vindo de uma “coisa-em-si” oculta e inalcançável. Trata-se de não esquecer as mediações, abstratamente concretas, que condicionam e determinam a vivência e mesmo a experiência (se é que ainda é possível falar disto!).
Anulam, então, as contradições de si mesmos e de suas produções (formação? Semiformação?). Invalidam, num golpe mais fatal que de Kill Bill, toda e qualquer mediação que não seja autocontrolada, isto é, própria (se é que há autonomia para tanto).
Ora, quando a totalidade – complexa por si só, extremamente difícil de ser percebida por sua complexidade e por sua produção como unidade e singularidade aparente (na qual a própria totalidade se anula para aparecer aos indivíduos como coisa simples e sem mistérios – tal como se dá na espetacularidade da mercadoria e de sua forma no fabuloso primeiro capítulo de Das Kapital) –, [então, quando a totalidade] aparece como unidade simples, como manifesta sem mistérios, e deixa-se ser apreendida sem grande esforço (imagina-se, ao menos), ela já engoliu por completo aquele não viu nada de ofensivo e bárbaro – tal como naqueles quadros de crianças, envoltos em lendas aberrantes, que virados de cabeça para baixo representam (dizem, pois nunca vi nada de mais – talvez por insensibilidade própria) a alta barbárie da morte pelo monstro. Se é assim, se a totalidade se esconde e se autoanula para se fazer valer como totalidade – em todas suas mediações – qual possibilidade de a vivência ser crítica antecipando-se à totalização do capital e todas suas mediações que coisificam o indivíduo – mesmo o que tem consciência disso? Qual possibilidade de a vivência ser produtora do diferente no mundo do sempre-igual? Só um esforço descomunal e terrível permitiria ao indivíduo perceber toda (auto)coisificação e dominação. Mas isto demandaria a própria superação de si, ou seja, anulando a ideia de mônada, de autossuficiência: seria a percepção teórico-prática das insuficiências e deficiências, e suas superações, que daria o tom da vivência. A vivência só seria, então, quando já não existisse mais, quando se tornasse experiência de formação, ainda que seja formação incompleta por conta das mediações que a impossibilitam de todo.
A anulação dos aspectos “negativos” (negativos em sentido não-dialético), faz afirmar um vazio: o que a vivência produziu. Vazio que, diferente de nada, é repleto de forma: vazio que é a confluência das mediações da totalidade, que é o ponto de inflexão da indústria de produção da subjetividade. Vazio que aparece ao indivíduo como completamente seu todo, como sua totalidade singular. A realidade que vê “criticamente” é reflexo de si e ele mesmo é produto alienado do capital. O que vê, e que não percebe (quase) nunca e cada vez menos, é a própria totalidade que nega sua existência (duplamente: a totalidade nega a existência dele, ao passo que ele nega que exista tal totalidade, como um cético sem ceticismo – na medida em que afirma com todas as letras sua autoverdade  nesse jogo de forças, não é preciso dizer de qual lado a corda arrebenta). Prescinde-se das mediações: quanto menos mediada é a visão da coisa, mais nítida sua “verdade” para o eu. As mediações ofuscam. Cabe retirá-las ou nem trazê-las ao jogo.  

Nau dos Loucos
(navegava pelo rio Reno, na Idade Média, recolhendo toda gama de “loucos”. Dava-se, também, reverência à “loucura”, certa divinização por não conseguir “compreendê-la”: poderia ser manifestação dos mistérios divinos)

Jogado à deriva em um mar sitiado, joguete de uma mão múltipla que domina invisível, o novo lumpemproletariado, agarrado à vivência e abdicando e esquecendo tudo aquilo que não lhe convém, afirma onde deveria negar e nega aquilo que deveria, ao menos, levar em conta. Sua contravenção ratifica a totalidade dada como se se manifestasse contra ela. O reconhecimento de si, que exige o outro e dele prescinde, ao mesmo tempo, é a anulação da individuação pela vivência imediata: é a mediação do sempre-igual que padece de má-consciência. Quanto mais individualizado o “vivente”, mais coisificado e igualado ao todo. Proscrevendo o trabalho do negativo na própria Coisa – as contradições que deveriam suscitar a superação do estado de coisas vigente ou, ao menos, a consciência sobre tal estado –, anula-se a crítica, afirma-se a Coisa tal como é: um imenso fetiche da produção (da indústria cultural) capitalista.
A afirmação de si com todas as forças (quais?), vazias e preenchidas de conteúdo alienado, é a negação mais ferrenha da possibilidade do próprio si. Quem, se não for por ingenuidade ou mau caratismo, festeja a “negritude” da mais nova dama inglesa? Prescrevem as mediações ao ponto de poder afirmar que as revoluções industriais realizaram a superação do capital pela natureza viva que, agora, se impõe soberana sobre a técnica: Stultifera Navis. Mais poderia a tal “negra” ser residente do Jardim Europa ou de Moema – ninguém daria conta. Todavia, vivas ao empoderamento, à sororidade e à identidade! Qual a medida, por outro lado, para pular as mediações, tal como a mágica do Barão de Münchhausen, a fim de afirmar (ratificar) o filtro sociocultural da indústria da perversão, da exclusão e da continuidade – o vestibular – simplesmente negando” (em aparência) a absorção completa da mercadoria pela indústria cultural? Vivas à sobrevivência no inferno! A falta de senso é o pôr completo do eu vazio (preenchido pela vivência) no objeto para ver apenas a si mesmo refletido nele: afirmação do eu e da barbárie são a mesma coisa.
O momento no qual se prescinde da divisão de classes, e se nega tal divisão, é o mesmo (momento) no qual a divisão mais se impõe e se totaliza como uma das mediações universais: racionais aqueles que aceitam a exclusão pela absorção fetichista da periferia (que anula, por ser fetichista, a própria ideia de periferia ao usá-la, ao mesmo tempo, como ponto de apoio para mais aprofundamento de sua própria existência sistêmica e totalizadora)? Críticos aqueles que simplesmente vociferam sem critério, sem eira nem beira, sem perceber o que está por trás? Empoderados aqueles que assumem a posição subalterna e glorificam um aspecto (vazio e ratificador; mediado e coisificado) como se fosse a grande vitória? Alguns se “esquecem” das mediações – de como a coisa chegou ali, qual processo que tem por trás dela – por má-fé: são alertados e não querem fazer a crítica de fato porque têm medo de suscitar contradição. Esquecem, igualmente, que suscitar contradição é elevar a contradição ao patamar digno do nome, é revelar a contradição da Coisa, não do indivíduo (trocando em miúdos: a contradição não é minha, é própria do sistema). Outros não se dão conta por ingenuidade. Destes, que o mar pelo qual navega a Nau dos Loucos tenha piedade – não terá, mas não custa anular uma mediação para ficar bonito e dar esperança, afinal, todo mundo faz isso.

Subsolo!


sábado, 5 de maio de 2018

Apontamentos #1



          De tudo que é efêmero, o mais palpável é o sentimento da morte. É o mais palpável e, contraditoriamente, o mais fugaz, esfumaçado. Todo prédio que cai leva consigo um pedaço da persistência. Não a persistência do concreto: a persistência do tabu. Nada fica, nada teima em permanecer e cumprir seu papel. De tudo que estava, nada havia que tenha permanecido, que não tivesse já o destino da fumaça. Estava, pois as coisas apenas estavam. Estavam, pois a coisas nunca mais se deram no presente. O luto, que deveria cumprir seu papel psíquico, persistir e alterar a configuração do todo pelo momento, é tabu: “tabu não é morrer; tabu é a morte”. Esta mesma que se esmaga, que se esvai na abstração do que valia mais: o higienismo e sua reprodução massiva na profusão sempre-igual dos milhares de discursos, ou a transferência da culpa, ela em sua disseminação vazia que só revela o que tem dentro dos indivíduos – o que tem dentro, não a interioridade. E o que se tem dentro passa de reprodução? Mas, reprodução de quem, de quê? Pouco importa. O luto não persiste, tampouco cumpre seu papel: a face humana da morte morreu antes dela mesma.
        Vários tiros ou o corpo arrastado em via pública – ou o corpo sumido por instância pública... Nada vale. E mesmo se valesse, valeria como mercadoria. O paradoxo está dado: valer ou não valer, that’s the question! E não se culpe o outro, bourgeois ou citoyen. A efemeridade é doença também do “crítico”. O anjo da história olharia para frente – duplamente atônito: o passado já não está mais atrás das costas. “Tabu não é morrer. Tabu é a morte!”

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          Estado de exceção? Quando? Onde? Quem não sabe definir, define. Só com uma mordaça se poderia definir exceção – ou sem ela, tanto faz. Quanto menos exceção, quanto mais naturalidade em tudo, mais exceção. O Estado de exceção não é poder não falar; ao contrário, é falar só o que se pode – e o que se pode nem sempre é identificável imediatamente. A “seriedade bovina” é mais realização da exceção que a mordaça.

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         Dia 05 de maio. Quem ainda lê Marx é um gênio – leitor gênio de gênio. E ser gênio não é para qualquer um. Tanto é que ele, há 150 anos, passava 10 horas se esfolando com os livros na biblioteca pública de Londres – menos aos domingos, quando passeava com as filhas, aquelas mesmas para quem lia toda noite, Shakespeare de preferência, antes de dormirem. O primeiro rascunho sério de O Capital, os Grundrisse, datam de 10 anos antes da primeira edição do volume 1 do dito cujo. Gênio! Gênio? Será? Fôlego, paciência, persistência, Trabalho – com T. Quem define o gênio nunca foi leitor seriamente. Quem se define gênio nunca se deu conta que o cosmo não é o próprio umbigo – ou o eu, que dá no mesmo.
         O sujeito mais difamado de, pelo menos, 150 anos para cá, teve e tem poucos leitores que o levaram a sério. Parvoíce und cretinice! Sim, é assim que se define. Pois crítico é quem lê, interpreta, sua em cima do texto e do pensamento. Quem difama – consequentemente sem ter lido nada além da capa, nem orelha! – não pode ser dito crítico. Gênio? Risos. Viva os 200 anos do primeiro crítico sério da banalidade sistematizada. Luto ou festejo? Pouco importa: dia 06 ninguém mais se lembrará de nada.

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      Um corpo que cai – só em Hitchcock! Reprodução à exaustão. Discursos efusivos. Os “sensíveis” fazem o mesmo jogo dos brutos: quem entra na ciranda tem de cirandar. Quem fez a ciranda? Só a abstração sabe. Efusivos, parvos, títeres. Quem entra na roda, roda. E como roda. O jogo não se supera com gol, mas com a superação do campo. Se um corpo cai, um espírito deveria se cindir. Mas o verbo no futuro do pretérito anula desde antes a ação. O corpo cai, se desfaz no concreto armado em fogo. O concreto? Só a abstração dominante prevalece. Alguns chamam pelo nome da mediação, obliquamente: especulação. Outros criam todo tipo de “teoria” – reprodução? – para justificar seus próprios eus. O que fica... bem, o que fica é o que antes já estava: pouco importa o que se deu. Mesmo os daqui – os “sensíveis” – justificam a barbárie – basta ver os perfis sorridentes que em luto permanecem sorridentes. “Morrer não é tabu. Tabu é a morte”. A forma mercadoria permanece igual e faz o meio de campo de tudo: ela produz, também, a sua forma de consumo – frise-se: ela produz – o resto é predicado quase banal. Tabu? É a morte!  

Subsolo!

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Acerca de Sobre Feministas Negras e Solidariedade Racial: uma crítica


Acerca de Sobre Feministas Negras e Solidariedade Racial: uma crítica[1]


Todo texto – toda ideia – que aponta, no futuro do pretérito, algo que deve se realizar e que está bloqueado – deveria, portanto –, sem realizar a crítica imanente das condições objetivas dos porquês de tal bloqueio, sucumbe antes mesmo de se fazer valer. É sempre lá onde falta uma perspectiva de constituição da totalidade da sociedade que a culpa recai sobre indivíduos ou grupos isolados, como se eles, tanto uns quanto outros, não fossem também produto subjetivo de uma objetividade determinada.
É sempre um palavrório sem fundamento, que, no mais das vezes, não passa de reprodução daquelas formulações que todos os que se sentem oprimidos – pelo menos segundo este ponto de vista limitado e limitador – gostam, querem e, especialmente, precisam ouvir:

muitos ataques a feministas negras são feitos por homens negros. Algumas vezes eles reproduzem
esquemas mentais destinados a justificar a dominação masculina. Certas críticas estão baseadas na ideia de que a mulher negra ocupa um lugar natural dentro da estrutura familiar. Ela existe para cuidar do marido e da prole, posição que reduz a noção de pertencimento social à tradicional estrutura hierárquica típica das relações heterossexuais. 

As questões que faltam são as seguintes: de onde se tira isso? Por qual motivo isso acontece? Sem respostas a estas questões, fica parecendo que é um traço individual e subjetivo – uma doença moral – do indivíduo isoladamente, sem mais.

Esses mesmos indivíduos também reproduzem as falácias argumentativas destinadas a manter a dominação racial. Isso ocorre principalmente em função da defesa do individualismo como doutrina social, o que encara o racismo não como algo sistêmico, mas sim como um comportamento de algumas pessoas que destoam de um suposto ideal de tratamento igualitário que existiria entre nós. Iludidos com alguns privilégios de classe, essas pessoas pensam que conquistaram respeito e apreço de pessoas brancas. É claro que eles também fazem essas críticas gratuitas porque não gostam de ver mulheres negras tendo qualquer tipo de notoriedade social. Afinal, o falocentrismo está sempre presente nas mentes de homens negros e brancos.

Qual a função de usar jargões? Bem, no âmbito do embate de que “vale mais quem usa mais jargão, mais palavra designativa e pomposa”, o discurso que supostamente defenda uma minoria e que, para isso, use toda a gama de palavras com sentidos prefixados e impactantes, ganha. E ter de “ganhar”, por si só, já revela a profundidade do problema.

[A] solidariedade racial deve ser pensada como um tipo de identificação política: todas as pessoas negras compartilham experiências de discriminação que afetam o status material e o status cultural delas. A falta de respeito e apreço social por pessoas negras faz com que todos nós sempre estejamos em uma situação de vulnerabilidade, independentemente da nossa posição no sistema de classes. 

Todas as pessoas negras compartilham de ocorrências de discriminação. No entanto, o efeito que isso causa dependerá de diversos fatores, inclusive daqueles que não se podem apreender teoricamente (fatores individuais, psicológicos e etc.) e de outros que determinam os indivíduos tanto ou mais que um único fator isolado. A última frase é emblemática: “todos nós sempre estejamos em uma situação de vulnerabilidade, independentemente da nossa posição no sistema de classes.” De Capitães do mato a Obama, passando pelas diversas perseguições e ditaduras nos países negros, entram na conta? Uma determinação social – ser negro –, apesar de imprimir uma ligação intrínseca aos que dela participam, é tênue. Ela é uma dentre várias determinações. É uma e, dependendo do caso, não é, nem de longe, a mais importante – frise-se: ser a mais visível, identificável imediatamente, não confere status privilegiado a ela. A aparência esconde e revela, ao mesmo tempo, a dominação real. Não se trata de uma “essência” escondida por detrás de tal aparência. Antes, de uma totalidade que constitui, inclusive o indivíduo em questão, independente de sua negritude, branquitude ou seja o que for. Numa totalidade constituída em classes, até que ponto a questão das classes pode ser posta completamente de lado? Colocando-a assim, Holidays, Pittas, Obamas e toda gama de negros que exploram pessoas, inclusive os negros, direta ou indiretamente, deve ser posta como patologia? Como se explica os próprios “homens negros que rebaixam mulheres negras?” Como pessoas carentes de moralidade? Ora, mas não é esse o discurso, desde os tempos de colônia, para caçar e encarcerar pretos em massa? Não é o discurso de Datenas, Alckmins e Cia?
“Apenas um tipo de solidariedade racial que questiona esses mecanismos de opressão poderá permitir a criação de um sentimento de comunidade que contribua para o sucesso de nossa luta por emancipação.” Solidariedade, inclusive, com aqueles que nos oprimem?
Nunca fiz isto em texto, mas vamos ao caso: Eu, como homem negro, pobre, estereotipado e tudo que se tem direito, preciso ser solidário com o PM negro que mata igual um cachorro raivoso? Careço ser solidário, pois o problema dele é que ainda não se conscientizou (sic!) de sua falha moral e de seu “dever histórico”? Ora, a solidariedade dele para comigo será com a quadrada, duplamente fria, apontada para minha nuca. Ao contrário de tudo isso, a questão principal aqui é de formação: como o sujeito é formado na sociedade na qual estamos? Quais a fontes de produção do indivíduo, de sua consciência e inconsciente nesta forma social? Não é, nem de longe, um problema moral de solidariedade, nem de irmandade por um único fator. Não é e nem deve ser isso sem se levar em conta o tal indivíduo como um produto, como objeto resultante, determinado por uma totalidade constituída à sua revelia e, além do mais, totalidade que extrapola a associação simples por um único fator – reiterando: tão tênue.
De fato, o texto caminha pelo lado moral-individual. Sem problematizar nada, apela à “consciência” moral do “delinquente” que comete o crime de não ser “solidário” como um “dever cívico-negro”. Mais uma vez: se eu, como negro, critico e exponho meu contra-discurso, que vai para um lugar não-desejado pela crítica cool e descolada, o meu problema é de falta de caráter? O que diferencia, quem assim julga, de Datenas e etc.?

A solidariedade racial implica então uma etiqueta social específica entre pessoas negras. Primeiro, a demonstração de cordialidade é um dever moral que devemos ter uns com os outros. Ninguém é obrigado a conviver com pessoas negras apenas porque são negras, mas a demonstração de respeito por pessoas que são sistematicamente desprezadas do mesmo jeito que nós deve ser vista como uma exigência moral. É por isso que o ataque público a uma mulher negra porque ela expõe as formas como o sexismo afeta as mulheres da nossa comunidade serve para manter os padrões de exclusão social inalterados. Pensar que só homens negros podem falar pelos negros é algo ridículo e infantil.

O texto continua dizendo o que se deve fazer, tal como uma cartilha moral – o que, aliás, está em alta moda. Não se trata de pensar o mundo, mas de aceitá-lo como é, adaptar-se da melhor maneira possível, e corrigir-se o quanto antes – aliás (e este texto será recheado de “aliás”), não é isso que sofreu um negro emblemático: Lima Barreto? Era incorrigível – do ponto de vista da moralidade vigente –, por isso, foi trancafiado.
Adiante, o texto cai por si só: entra em contradição com o dito, interditando-se:

(...) pessoas negras que querem participar do debate público sobre racismo precisam ter conhecimento intelectual sobre o tema. Nossas experiências pessoais com o racismo são relevantes, mas elas não são os únicos parâmetros para defendermos posições sobre esse assunto. É preciso entender como o racismo está relacionado com a vida econômica, com a vida política, com a vida cultural, com as narrativas jurídicas, com a forma como as pessoas raciocinam. É preciso compreender que a população negra possui uma diversidade econômica, intelectual, sexual e religiosa. Isso significa que os diferentes segmentos experimentam o racismo de forma distinta.

Ora, e aquela identidade que todos os negros tinham por sofrer os mesmos tipos de discriminação? E qual o motivo da apelação para o status cultural hegemônico? Será que é preciso ser “cultivado”, formado “intelectualmente”, tal como manda a cartilha burguesa desde o século XVI – ou desde Goethe e dos Iluminismos francês e alemão para a formação cultural burguesa? As experiências pessoais, de fato, não são os únicos parâmetros (aliás, é o que estou defendendo desde o início: nem experiências pessoais, pois são podadas na raiz numa sociedade alienada e que coisifica os indivíduos, nem um único fator que está, inclusive, fora do alcance de controle do próprio indivíduo). O trecho acima continua: “É preciso entender como o racismo está relacionado com a vida econômica, com a vida política, com a vida cultural, com as narrativas jurídicas, com a forma como as pessoas raciocinam.” Ora, mas agora entraram na jogada os outros fatores que eram irrelevantes no início do texto? “Esse é o motivo pelo qual precisamos escutar o que as mulheres negras falam.” Mas, qual mulher negra? A preparada intelectualmente ou minha mãe, que sempre foi preta e passou por experiências? Em quem eu devo acreditar? Quem devo escutar? Aquela que dá carteiradas, ainda que (semi)formada intelectualmente, é menos confiável que minha mãe com sua experiência “iletrada”.
O que vem a seguir vai em destaque: “Reduzir o racismo a um problema individual é a mais antiga estratégia de dominação racial adotada no nosso país. É preciso reconhecer a dimensão sistêmica e institucional do racismo. Jamais iremos a lugar algum sem isso. Não foi exatamente isto que o texto fez, durante todo o tempo? Não reduziu o racismo a um problema tanto particular (isolado das outras tantas determinações sociais) quanto individual (como problema moral do homem negro que não sabe se comportar bem no debate público)? Qual a dimensão sistêmica e institucional da coisa? Qual sistema? Capitalismo? Sociedade de classes fundada na exploração do trabalho e, em nosso caso, na vigência dos grandes resquícios dos quase 400 anos de escravidão? Ficar jogando jargões sem teorizá-los, sem fundamentá-los, serve de pouco ou nada.
Se suas críticas não têm o propósito de corrigir possíveis compreensões inadequadas da realidade social que podem comprometer a busca pela justiça racial, fique calado. Compreender a realidade social passa, necessariamente, por estar de acordo com o que foi (???) exposto no texto? O que é justiça social? O fim do racismo? Mas o fim do racismo não leva, necessariamente, a uma sociedade outra, onde negros não precisariam se determinar por serem negros e os “brancos” não seriam O Mal simplesmente por serem brancos? – Tenho a impressão que vão me mandar calar...
Homem negro nem homem nenhum deveriam tratar mulher negra, nem quem quer que seja, como inferior! O problema, que existe, não é da ordem moral. Não é a moralidade fraca de indivíduos que faz com que isso ocorra – ninguém precisa ser Steve Biko, Malcolm X, João Cândido ou seja quem for! O problema é estrutural, de fato; é fruto de uma dominação abstrata, que não se mostra, e que, contudo, se instala por dentro nas pessoas, e nelas aparece de imediato, como se fosse problema delas exclusivamente, ou uma forma de absorção equivocada, por parte delas, das problemáticas raciais. A semiformação vigente dos indivíduos não é um problema de falta de informação sobre coisa alguma – antes, é até com sua ajuda que a questão se reforça. Numa sociedade formada à revelia da autonomia dos indivíduos, e que retroage sobre eles formando-os como objetos altamente determinados, não é a consciência moral ou os acordos prefixados – por quem? – que regem o “debate público” que irão salvar a esfera pública de discursos de ódio e a vida cotidiana do ódio vivo e efetivo. Na medida em que se faz isso – hastear a bandeira do moralismo burguês-ilustrado – as consequências são nefastas: em primeiro, aceitam-se as regras dominantes da sociedade vigente, as regras daqueles que dominam – ainda que não precisem abrir suas bocas para dizer uma palavra, pois os oprimidos se digladiam segundo as regras do jogo que, claro, não são suas regras criadas em sua autonomia; segundo, esquece-se que a estruturação sistemática (e sistêmica) do racismo remonta à formação da sociedade brasileira, em específico, e ao limiar da modernidade, em geral. É a conjugação, no caso brasileiro, entre base escravista, capitalismo e assistencialismo capitalista que nada resolve, somente tapa o problema para que depois ele retorne com força redobrada, e associação intrínseca entre capitalismo e racismo, de todos os matizes, no caso mundial.
O racismo, “revelado” nos e através dos “racistas”, não revela um indivíduo ao qual falta caráter, um indivíduo patológico. Revela, acima de tudo, uma sociedade doente, que faz sofrer imediatamente os oprimidos, em primeiro plano (as minorias sociais) e, mediatamente, toda sociedade. O indivíduo doente é produto de uma sociedade irracional e patológica; não é ele quem faz a sociedade ficar doente: sua ação somente expõe, elevada à potência, a fratura contraditória da totalidade social. Por outro lado, formação dos indivíduos – uma formação coisificada e alienada – pega todos em cheio: o racismo, ou qualquer tipo de opressão, manifesta-se inclusive através daqueles que estão na ponta de baixo. Os negros – ou qualquer grupo social excluído – não estão imunes a serem agentes racistas, tampouco estão mais aptos a resolver o problema (que não é só seu, ainda que na aparência objetiva seja).
Lutar com a gramática do acordo (o “debate público”, tal como Jürgen Habermas e consortes) a partir de uma gramática moral (tal como Axel Honneth e seus seguidores), não coloca em questão o principal: se o problema é estrutural, por qual motivo não se contesta, nem de longe, a estrutura na qual ele se assenta? De todos os jargões que jazem no texto, os que colocam em pauta a totalidade social capitalista não se apresentam à festa. Assumir que o problema do racismo é antissocial (independe da formação do todo da sociedade) – já que é um fragmento quase autônomo na sociedade – e, por isso, não colocar em questão que ele revela e sustém a totalidade (social), é assumir que o racismo não terá fim, e que os discursos bonitos, “contestatórios” e “representativos”, valem mais que a realização de uma emancipação radical e propriamente dita. O simulacro de emancipação – a elevação da “autoestima”, o “respeito” discursivo e prático, e etc. – não substitui a emancipação real, nem aqui, nem em qualquer lugar no qual a totalidade social do capital determina e domina.


Subsolo!




[1] Este texto é uma crítica ao texto Sobre Feministas Negras e Solidariedade Racial, de Adilson José Moreira, publicado no site do Justificando (Carta Capital), em 5 de fevereiro de 2018. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/05/sobre-feministas-negras-e-solidariedade-racial-2/.