quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Um fantasma ronda a...

Resquícios de ditadura. Ou, talvez, muito mais que isso. Talvez, muito mais que reminiscências opacas: prelúdios, prefácios à “grande obra”. Mesmo assim, ainda não é tão simples. Um “prefácio” é, antes de tudo, uma compilação de anos de aprendizagem; além, é um resumo sintomático de toda a obra. Na história social, é a síntese formadora, cultural, e que, ainda, aponta para frente, para o que há de vir, o que está aí, em projeções.
No momento atual, do Espetáculo, no qual as relações sociais são espetaculares, são fundadoras da imagem e não simplesmente postas por ela, o absurdo, a barbárie e a exceção são naturalizados, são eventos do “fantástico show da vida” (ou do inverso desta) que devem acontecer e, por mais próximo que estejam, são distantes. Se por um lado a fantasia ordena a realidade – aquela fantasia que esconde as rachaduras do Real, as feridas abertas, feias e traumáticas –; por outro, o espetáculo a expõe – a realidade – como forma: todo evento social, fundado nas relações sociais dessa monta, são fantasias espetaculares, que jogam o absurdo como absurdo, a tragédia como tragédia e etc., em nossa cara, escancarados. A trama ideológica atual não se dá ao encobrir a realidade, visto que ela própria já é aparência; antes, acontece em abrir as vísceras dessa realidade com toda indiferença. Isso tira toda a força crítica em torno da realidade e, ainda, inclui as práticas possivelmente transformadoras no eixo pré-concebido do Real. Mesmo as ações mais “radicais” são mudas, não possuem linguagem específica que rompa com o establishment. Está-se tão dentro da realidade, tudo tão absorvido por ela, por sua forma, que parece nada poder romper. Não se consegue enxergar para além, as possibilidades: a utopia perde a força crítica, é abstrata e sem fundamentos.
A morte, aparecendo como espetáculo, perde a força corrosiva e aterradora que deveria ter. Ver alguém morto ou morrendo, ao vivo ou altamente distribuído, compartilhado – como doces em Cosme e Damião –, transforma o evento mais brutal o mais corriqueiro e sem sentido, tendo sentido conferido apenas como espetáculo. Além disso, é um mote para que as “verdades” mais absurdas entrem em cena, sejam golfadas na cara de todos: “verdades”, mais uma peça pronta que compõe e fecha o espetáculo – segundo ato! Contudo, cabe lembrar, é sempre a morte do outro indesejado, trazido como peça descartável – ou peça a ser eliminada o mais rápido possível –, que é vista como motivo de uma reespetacularização, já que ela já é espetáculo uma vez quando aparece. Tal outro é qualquer um que não seja o indivíduo massificado, ainda que sempre melhor quando esse outro é uma espécie de “inimigo” ou surgido como tal. Ainda assim, o que fica patente é que a morte como espetáculo fantástico perdeu o viés crítico, não choca, não traumatiza, não tira da normalidade. Pelo contrário, ela tem se tornado cada vez mais uma ordenadora da realidade, algo que põe a realidade nos eixos novamente.
É necessário repensar, reelaborar nosso passado, o passado de nossa formação cultural, para que os traumas do Real possam vir à tona, abalar a normalidade da realidade. É imprescindível levar em consideração nossos aspectos mais peculiares, fundadores de quem somos, de como somos. Acrescente-se aí o que é produzido abstratamente, espiritualmente pela ordem abstrata que nos coordena, pela ordem que nos dá uma liberdade aparente que só serve para nos acorrentar mais. Enfim, é importante repensar que as consequências trágicas, absurdas de hoje são frutos do jeitinho, do sadismo vindo da casa-grande, do coronelismo, nepotismo e coleguismo formador do caráter brasileiro, do racismo estrutural, invisível e abstrato, da luta de classes tardia e das diferenças peculiares a cada classe (raciais, de gênero e etc.). Isso nos leva, entre outras coisas, a “resolver” nossos problemas sempre do modo mais irrefletido, mais “fácil” (ou pelo caminho aparentemente “mais curto” e menos cansativo), recolocando, enfim, o problema de modo redobrado.
Aquilo que está por vir, que já está aí e de algum modo sempre esteve, não são simples resquícios ou rememorações. Antes de tudo, são produtos da prática histórica, são sínteses sociais que se transformam agora em tese e apontam para o por vir, para o que “nos aguarda no futuro”. Ainda que caiba a ressalva anti-determinista, que alerta para o perigo de se tomar isso como dado, como algo que “deve e só pode ser assim”, é necessário não desconsiderar o peso de nossa formação, enquanto indivíduos e sujeitos históricos.
Há um fantasma que ronda nossa sociedade, o fantasma que nos assombra, que nos persegue e que, no fim, é nossa sombra, nossos mortos que não foram devidamente enterrados no passado e que agora vagam assolando os vivos. A burocratização extrema, a PM, as leis da primeira metade do século passado; o jeitinho, o sadismo, a cultura vinda da casa-grande, dos capitães-do-mato, dos engenhos; a abertura democrática apenas periférica, marginal, que efetivamente não abriu as sociedades política e civil e não as despojou dos restos perniciosos do passado, a decadência gritante das ciências críticas e da educação, a inclusão simplesmente pelo consumo, pelo fetiche do capital, as exclusões pela luta de classes e por sua multiplicidade, a superdependência do Estado e da Política em relação à burocracia e, principalmente, à burguesia. Por tudo isso, o fantasma nos assombra e não deixará de crescer. Sua sombra deve permanecer mais viva que as projeções dos vivos na realidade, já que ele se alimenta dos casos não ou mal resolvidos, do processo não rompido, da transformação que não veio.

Subsolo Urbano!