terça-feira, 10 de maio de 2016

Tempo perdido: diálogos transeuntes

Essas conversas foram ouvidas
e registradas na memória.
Se fazem jus ou não ao tempo
se há acordo entre o que foi dito
e o que aqui é relatado, não cabe, a mim, julgar.



– O que parece, por bem da verdade, é que a realidade não tem lá muito a ver com a vida comum. Parece que o tempo não tem liga, não se cola consigo mesmo. É tudo muito confuso. É como se vivêssemos em um tempo outro, diferente daquele que realmente acontece ou dizem acontecer.
– Ora! Você não consegue mais que se iludir nessas suas viagens! Isto tudo é fantasia. O que realmente importa é que tudo isto que diz não nos importa! Não importa para pessoas comuns, é coisa deles e somente deles: deixe que se resolvam. Vamos, vamos andando mais depressa que estamos atrasados.

***

– Vou lhe contar uma história. Outro dia estava ali naquela calçada[1] e passou uma moça, bonita, bem vestida, com um rapaz do mesmo jeito. Os dois conversavam e pareceriam aflitos. Do que consegui ouvir, pois pararam na frente da escada do metrô, e do que consegui entender já que falavam umas palavras bastante esquisitas, falavam sobre como a pobreza era um problema que deveria ser solucionado. Começaram a conversa assim, pois antes falavam de outra coisa, que não sei dizer por que não entendi nada. Um disse, durante um longo tempo, sobre o papel central do Estado e de como parecia que a pobreza já estava sendo solucionada, ainda que aos poucos, por conta de algumas coisas, que também não entendi, que estão sendo feitas pelo governo. A moça balançava a cabeça parecendo não concordar. Quando foi sua vez de falar, ela agitava muitos os braços, como que explicando também com as mãos. Dizia que nada do que o rapaz havia falado fazia sentido, já que havia ainda muita pobreza e deveria existir uma revolução para que esse problema deixasse de existir de vez. Escute bem, parece que esta história não faz muito sentido, mas espere chegar até o final. Então, continuando. Ambos concordaram que ainda era pouco o que estava sendo feito. O rapaz dizia que não haveria a tal da revolução por algum motivo. Ele falava que era preciso calma, e que as coisas estavam mudando, mas que agora era hora deles agirem para mudar corações e mentes. Aí então a moça disse algo como que a tarefa que eles deveriam cumprir. Nessa hora não entendi se era coisa do trabalho deles ou qualquer outra coisa. Mas ela completou dizendo que havia necessidade de se mudar a estrutura e que a consciência das pessoas deveria ser mudada. O rapaz concordou e disse que esta parte talvez fosse fácil para eles. No fim da conversa, olharam para o lado, viram aqueles dois moleques ali[2], se olharam e desceram rapidamente a escada do metrô. Eu acabei rindo, e os meninos também, pois acharam que eu havia feito alguma pegadinha com o casal. Te conto esta história só para dizer que os dois bem alimentados quase brigavam entre si porque um queria ter uma solução para a pobreza melhor que o outro e quando a pobreza apareceu na frente deles correram com cara de medo.

***

– Olha, minha filha, isto é alguma provação divina. Deus há de prover. Não se avexe, viu?! O Senhor há de prover, pois é dele todo o poder. O dia da volta do Senhor está próximo. E quando ele voltar todo aquele que não se arrepender será condenado. Vá buscar a palavra do Senhor, minha filha. Vá e não se demore. Quanto mais demorar, mais sofrimento terá...
– Olha, minha senhora. A senhora está dizendo que eu serei condenada?! Eu não vou me arrepender de nada, entende? Não tem dia de volta do senhor nem de ninguém. Estamos sozinhos nesse mundo e a senhora ainda está sendo enganada. Não tem provação divina nenhuma. Eu faço o que bem entender, ninguém manda em minha vida.
– Não, minha filha. Você não entende. O Senhor já enviou a mensagem, Pastor MF[3] já está cumprindo a missão de Cristo aqui. Você e esta sua amiga com quem você estava terão de pagar por tudo, por todos seus pecados. Arrependam-se que ainda há tempo.
– A senhora é uma preconceituosa! Vive no passado. E, olha, eu vou embora para evitar confusão e a senhora tem sorte de ser velha. E vá procurar um psicólogo ou louça para lavar por que isso aí é doença. Gente cheia de preconceito e retrógrada!

***

– Deveríamos investir mais em educação, formação de professores, mais critério para acabar com pessoas mal formadas, que não conseguem dar conta de educar nossos adolescentes.
– Isto é doutrinação ideológica! O que parece que vocês querem é formar militantes para que doutrinem os adolescentes, tirando-lhes a liberdade de livre pensamento. Professores bem formados, na visão de pessoas como você, parece ser sinônimo de professores que levam os alunos a pensarem essa besteira que vocês pensam e acabar com nossas instituições. Faça-me o favor! Quem pensa assim acha que o problema se resolve com mais ideólogos de esquerda, sendo que é este exatamente o mal: uma parte dos professores serem doutrinadores.
[Um terceiro entra na conversa] – Vocês acham mesmo que formação de professores resolverá alguma coisa? O problema da educação é o processo no qual a educação está assentada. Não há cristo que faça os adolescentes de hoje pensarem por si mesmos, seja para a esquerda ou para a direita. Eles já entram formados por uma sociedade que os forma e que exige da escola apenas uma formalidade sem sentido. Professor nenhum conseguiria fazer nada, visto também ser a escola uma instituição sem sentido no processo social. A escola não tem poder nenhum de fazer nada, nem doutrinar nem “desdoutrinar”. É um lugar no qual só se ratifica aquilo que já existe e alimenta a barbárie.
[O primeiro sujeito que falou volta a discursar] – Você não está sabendo muito sobre o que diz. É muito radical. As relações entre professor e aluno precisam ser mais abertas, com professores mais bem formados. Os adolescentes não têm culpa de estarem inseridos em uma vida que os relega. É preciso coragem dos professores para formar bem essa molecada. Senão acontece o que agora está acontecendo: eles vêm para cá[4] sem saber nem ler um texto, sem cultura. E isto é problema da escola que não possui profissionais capacitados para tratar suas clientelas, sejam elas quem forem e em quais bairros forem.
[O segundo sujeito] – Não tem saída. Enquanto ensinarem essas porcarias nas faculdades de educação para que os professores reproduzam na escola buscando doutrinar alunos, não terá solução. É fato. E vocês fiquem aí com essa conversa sem sentido de vocês. [Este se retirou logo após dizer isso].
[O terceiro...] – Olha, vamos tomar um café. Continuamos a conversa por lá. Mas digo, desde já, que você se perde nessa utopia. Ele [o sujeito que se foi] nem conta. Não sabe dialogar. E se não existe diálogo aqui, imagine nas escolas. Os Professores não resolverão questão alguma enquanto não tivermos uma escola que de fato forme os alunos, que os retire da barbárie que vivem cotidianamente e... [a partir daqui não consegui mais ouvir a conversa].

***

– E esses bandidos, hein? Essa corja que não vale nada, rapaz! Deviam matar todos eles. Colocar num tonel de óleo fervendo...
– Haha. Xiii, meu amigo. Isso não adianta, não. O problema mesmo são esses políticos safados. Tinha é que jogar todo mundo em alto mar, jogar para os leões em algum zoológico...
– Mas o interessante mesmo é que essa é uma raça de gente safada. Só tem safado e vagabundo, rapaz.
Ôh, Bigode, desce mais uma aí.
É uma raça que não presta. Tudo drogado, viciado e vagabundo. Tinha que matar tudo! E esses vagabundos aqui, que ficam aí só querendo pedir as coisas. Bate na porta de um e de outro pedindo dinheiro para encher a cara.
Dá seu copo aqui.
Outro dia tava em casa e veio um desses. Eita raça desgraçada. Veio pedindo comida. Olha só! Onze e meia da manhã, dia de semana, e vagabundo vem me pedir comida?! Sorte dele que foi a mulher quem atendeu, se fosse eu tinha botado para correr.
– É... complicado. Mas tem a crise também, né?! Muita gente está desempregada aí...
– Que, que! E isso lá é desculpa? Vá catar papelão! Pegar latinha na rua! Fica aí pedindo dinheiro para encher a cara de cachaça! Ah, vá!
Ôh, Bigode. Vê aquela lá para mim.
Tinha é que colocar tudo na cadeia e fazer trabalhar pra pagar o que consome lá. Né não?
Opa! Essa é da forte. Quer uma bicada aí?
– Não, não. Tenho que ir daqui a pouco pra casa, ajudar minha mulher. Ela pediu pra comprar umas coisas ali no mercado... Tô enrolando aqui.
– Lá em casa não tem essa não. Minha mulher faz tudo. Não tem ajuda minha nem do moleque. Onde já se viu?! Homem fazendo serviço de mulher? Cê num deveria fazer não, meu.
– É... Mas tô desempregado, morando de favor na casa da sogra, tem que fazer. Já me ameaçaram botar na rua. A mulher só não fez por causa das crianças. E aquela mulher... Minha sogra num presta, rapaz! Mas a casa é dela, ela quem tá ajudando a gente com dinheiro... tá difícil, rapaz. Essa crise... E aí tenho que engolir de vez em quando.

***

– (...) a grande questão aqui é que as instituições políticas, o Estado especialmente, estão descoladas da sociedade e se sobrepõem a ela. Há um deslocamento temporal que se efetiva no espaço. Por outro lado, os atores políticos, tanto os institucionais quanto a esquerda militante, também estão fora do local, em disritmia com o tempo. Tal como naquela passagem de Marx em que diz que a situação da Alemanha em 1843 estava aquém da situação histórica da França pré-revolucionária, a situação histórica e política aqui é de um anacronismo espacio-temporal bem parecido. Alguns não conseguem se desvencilhar das fazendas dos finais do século XIX e tratam o Estado como se fosse a extensão da casa-grande. Outros jogam tão a frente que não conseguem perceber que a situação atual carece de bases concretas para dar efetividade às suas ideias. Pensam em defesa da democracia, do Estado como corpo político rousseauneano sem que de fato isso tenha existido alguma vez por aqui. As ideias vão além da realidade. E por outro lado, se existem ideias, elas estão encravadas num passado fantasioso mas glorioso para os que controlam o aparelho estatal que, não obstante, apenas os beneficiam.
– Me sinto um estrangeiro nessa situação. E essa sua fala me faz lembrar de uma das ideias centrais daquelas Ideias fora do lugar. Parece que estamos em um descompasso gigantesco entre aquilo que se produz em termos de teoria, ou melhor, de ilusão travestida, e a realidade... Aliás, essa situação é tão ruim, dá uma angústia tão forte que às vezes me sinto como na frente do Espelho, do Machado, sabe? Então, como se esse descompasso, esse anacronismo sem precedentes colocasse uma camisa-de-força como segunda pele, que se sobrepõe inteiramente à primeira, e faz com que a gente só se reconheça metido na farda. A farda histórica... Parece que o único sentimento que acompanha esse descompasso e talvez o suporte, não que o aceite mas suporte no sentido de tentar sempre o superar, é esse sentimento de estrangeiro, que percebe tudo com estranheza, onde tudo causa uma certa ânsia, uma angústia... Não sei dizer direito...
– Parece que somos estrangeiros. Parece que o descompasso permanecerá, assim como essa angústia; se não isto, vigorará, tal como já se faz presente, o lunatismo. Não nos sobrará nada a não ser continuarmos estrangeiros... [neste momento meu ônibus se aproximava. Como estava tarde, não pude ficar para ouvir o desfecho dessa conversa alheia].

***

– Olha, meu filho. Não confie em ninguém na rua; não aceite dinheiro, não aceite doce, não converse com nenhum estranho em local que não tenha mais gente, não vá para onde eles te chamarem, nem nada disso. Não converse com morador de rua, nem dê atenção para gente estranha, com cara de criminoso. Você olha para a cara da pessoa, se tiver cara esquisita saia de perto. Venha direto para casa. Esse mundo de hoje está muito violento.
– Está bem, mãe.
[O menino pegou o ônibus, provavelmente para ir à escola. Uma senhora que estava no ponto desfechou o assunto com a mãe] – É, a senhora está certa mesmo. As pessoas estão muito violentas, muito frias. Não existe mais respeito, não existe mais nada no ser humano que salve, viu?! E vou te contar: esses políticos também... [neste momento quem se afastou fui eu, já cansado desses papos].





[1] A calçada é a da Praça da República, na esquina da Rua Sete de Abril.
[2] Ele me apontou os moleques, eram dois adolescentes, escuros e provavelmente conhecidos dele e moradores da região.
[3] Vamos ocultar o nome, e MF dá um bom trocadilho.
[4] Local: uma Academia renomada da metrópole.