[Do livro: KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, s/ data, pp. 17-23]
Todas as coisas na natureza operam segundo leis. Apenas um ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou, por outras palavras, só ele possui uma vontade. E, uma vez que, para das leis derivar as ações, é necessária a razão, a vontade outra coisa não é senão a razão prática. Quando, num ser, a razão determina infalivelmente a vontade, as ações deste ser, que são Reconhecidas objetivamente necessárias, são necessárias também subjetivamente; quer dizer que então a vontade é uma faculdade de escolher somente aquilo que a razão, independentemente de toda inclinação, reconhece como praticamente necessário, isto é, como bom. Mas se a razão não determina suficientemente por si só a vontade, se esta é ainda subordinada a condições subjetivas (ou a certos impulsos) que nem sempre concordam com as condições objetivas; numa palavra, se a vontade não é em si completamente conforme à razão (como acontece realmente com os homens), então as ações reconhecidas necessárias objetivamente são subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade conformemente a leis objetivas é uma coação; por outras palavras, a relação das leis objetivas com uma vontade não completamente boa é representada como sendo a determinação da vontade de um ser racional por meio de princípios da razão, aos quais entanto aquela vontade, mercê de sua natureza, não é necessariamente dócil.
A representação de um princípio objetivo, na medida em que coage a vontade, denomina-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se IMPERATIVO.
Todos os imperativos são expressos pelo verbo (dever e indicam, por esse modo, a relação entre uma lei objetiva da razão e uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não é necessariamente determinada por essa lei (uma coação)- Declaram eles, que seria bom fazer tal coisa ou abster-se dela, mas declaram-no a uma vontade que nem sempre faz uma coisa, porque lhe é apresentada como boa para ser feita. Portanto, praticamente é bom o que determina a vontade por meio de representações da razão, isto é, não em virtude de causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por meio de princípios que são válidos para todo ser racional enquanto tal. O bem prático é, pois, distinto do agradável, isto é, do que exerce influxo sobre a vontade unicamente por meio da sensação, por causas puramente subjetivas, válidas apenas para a sensibilidade deste e daquele, e não como princípio da razão, válido para todos[1]. Uma vontade perfeitamente boa estaria, pois, tão sujeita ao império de leis objetivas (leis do bem) quanto uma vontade imperfeita; mas nem por isso poderia ser representada como coagida a ações conformes à lei, porque, mercê de sua constituição subjetiva, ela só pode ser determinada pela representação do bem. Eis por que não há imperativo válido para a vontade divina, e em geral para uma vontade santa; o dever não tem aqui cabimento, porque o querer já por si é necessariamente concorde com a lei. Por isso, os imperativos são apenas fórmulas que exprimem a relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva da vontade deste ou daquele ser racional, por exemplo, da vontade humana.
Ora, todos os Imperativos preceituam ou hipoteticamente ou categoricamente. Os imperativos hipotéticos representam a necessidade de uma ação possível, como meio para alcançar alguma outra coisa que se pretende (ou que, pelo menos, é possível que se
pretenda). O imperativo categórico seria aquele que representa uma ação como necessária por si mesma, sem relação com nenhum outro escopo, como objetivamente necessária.
Dado que toda lei prática representa uma ação possível como boa é, conseguintemente, como necessária para um sujeito capaz de ser determinado praticamente pela razão, todos os imperativos são fórmulas, pelas quais é determinada a ação que, segundo os princípios de uma vontade de qualquer modo boa, é necessária. Ora, quando a ação não é boa senão como meio de obter alguma outra coisa , o imperativo é hipotético; mas, quando a ação é representada como boa em si, e, portanto, como necessária numa vontade conforme em si mesma a razão considerada como princípio do querer, então o imperativo é categórico.
O imperativo indica, pois, qual ação, para mim possível. I seria boa, e representa a regra
prática em relação com uma vontade que não executa imediatamente urna ação porque é
boa, em parte porque o sujeito não sabe sempre se ela é boa, e, em parte, porque, mesmo que o soubesse, suas máximas poderiam, não obstante, ser contrárias aos 'princípios objetivos de uma razão prática.
O imperativo hipotético significa, portanto, apenas, que a ação é boa com relação a um escopo possível ou real. No primeiro caso, é um princípio PROBLEMÀTICAMENTE prático; no segundo caso, é um princípio ASSERTORICAMENTE prático. Pelo contrário, o imperativo categórico, que declara a ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com algum fim, isto é, sem qualquer outro fim, tem o valor de princípio APODÍCTICAMENTE prático.
Podemos imaginar que tudo quanto é possível apenas pelas forças de algum ser racional é também um escopo possível para qualquer vontade; por isso, os princípios da ação, enquanto esta é representada como necessária para a aquisição de algum fim possível, susceptível de ser por ela realizado, são, de fato, infinitos em número- Todas as ciências têm uma parte prática, constante de problemas que supõem que qualquer fim é possível para nós, e de imperativos que indicam como tais fins podem ser alcançados. Estes imperativos podem, por isso, chamar-se em geral imperativos da HABILIDADE. Não se trata, neste caso, de saber se o escopo é racional e bom, mas só de saber o que se deve fazer para o alcançar. As prescrições que um médico segue para curar radicalmente o seu enfermo, e as do envenenador para o matar seguramente, têm igual valor, na medida em que umas e outras servem para realizar perfeitamente o escopo que se tem em vista.
Como nos primeiros anos da juventude ignoramos as surpresas que a vida nos reserva no porvir, os pais empenham-se principalmente em que os filhos aprendam quantidade de coisas diversas, e cuidam em que eles se tornem hábeis no uso dos meios necessários para alcançarem toda sorte de fins desejáveis. São eles incapazes de saber se algum desses fins virá a ser, mais tarde, realmente desejado por seus filhos, mas ê possível que isso aconteça um dia; e esta preocupação é tão grave, que eles comumente se descuidam
de formar e corrigir o juízo dos filhos acerca do valor das coisas que estes poderiam propor-se como fins.
Há, todavia, um escopo, que se pode supor real para todos os seres racionais (na medida em que os imperativos se aplicam a estes seres considerados como dependentes); portanto, um escopo que eles não só podem propor-se, mas do qual se pode certamente admitir que todos o propõem a si efetivamente, em virtude de uma necessidade natural, e
este escopo é a felicidade. O imperativo categórico, que apresenta a necessidade prática da ação como meio para alcançar a felicidade, é ASSERTÓRIO.Não podemos apresentá-lo simplesmente tomo indispensável à realização de um fim incerto, puramente possível, mas de um fim que se pode seguramente e a priori supor em todos os homens, porque faz parte da natureza deles. Pode dar-se o nome de prudência[2], com a condição de tomar este vocábulo em seu mais estrito significado! à habilidade em escolher os meios que nos proporcionam maior bem-estar. Sendo assim, o imperativo que se refere à escolha dos meios capazes de assegurar nossa felicidade pessoal, isto é, a prescrição da prudência, é sempre hipotético; a ação é ordenada, não de modo absoluto, mas só como meio de alcançar outro escopo.
Enfim, há um imperativo que, sem assentar como condição fundamental a obtenção de um escopo, ordena imediatamente este procedimento. Tal imperativo é CATEGÓRICO. Diz respeito, não à matéria da ação, nem às conseqüências que dela possam redundar, mas à forma e ao princípio donde ela resulta; donde, o que no ato há de essencialmente bom consiste na intenção, sejam quais forem as conseqüências. A este imperativo pode dar-se o nome de IMPERATIVO DA MORALIDADE.
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O imperativo categórico é, pois, um só e precisamente este: Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se tome em lei universal.
Ora, se deste só imperativo podem ser derivados, como de seu princípio, todos os imperativos do dever, embora deixamos de lado a questão de saber se aquilo, a que se dá o nome de dever, não é, no fundo, um conceito oco, poderemos todavia, ao menos, mostrar o que entendemos por isso e o que este conceito pretende significar.
Uma vez que a universalidade da lei, segundo a qual se produzem efeitos, constitui o que propriamente se chama natureza no sentido mais geral (quanto à forma), isto é, constitui a existência dos objetos, enquanto determinada por leis universais, o imperativo universal do dever pode ainda ser expresso nos termos seguintes: Procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em LEI UNIVERSAL DA NATUREZA.
[1] A dependência da faculdade apetitiva a respeito de sensações denomina-se inclinação, e, por conseguinte, esta é sempre prova de uma necessidade. A dependência de uma vontade, capaz de ser determinada de modo contingente pelos princípios da razão, chama-se interesse. O interesse encontra-se, pois, tão somente numa vontade dependente, a qual não é por si mesma sempre conforme à razão; na vontade divina é impossível conceber qualquer interesse. Mas também a vontade humana pode tomar interesse por uma coisa, sem por isso agir por interesse. A primeira expressão significa o interesse prático pela ação; a segunda, o interesse patológico pelo objeto da ação. A primeira indica apenas a dependência da vontade a respeito dos princípios da razão em si mesma; a segunda, a dependência da vontade a respeito dos princípios da razão posta ao serviço da inclinação, no qual caso, a razão ministra somente a regra prática para poder satisfazer as necessidades da inclinação. No primeiro caso, interessa-me a ação; no segundo, interessa-me o objeto da ação (na medida em que me é agradável). Na Primeira Secção, verificamos que, numa ação executada, por dever, importa considerar, não o interesse pelo objeto, mas unicamente o Interesse pela própria ação e seu princípio racional (a lei).
[2] A palavra prudência é tomada em duplo sentido: no primeiro sentido, designa a prudência nas relações que lemos com o mundo; no segundo sentido, a prudência pessoal. A primeira indica a habilidade que um homem possui de aluar sobre outros, para deles se servir em benefício de seus fins. A segunda é a sagacidade em fazer convergir estes fins para sua vantagem pessoal e estável. A esta última se reduz propriamente o valor da primeira; e daquele que é prudente no primeiro sentido, não o sendo no segundo, com melhor razão se diria: é engenhoso e astuto, mas, em suma, imprudente.