Resquícios de
ditadura. Ou, talvez, muito mais que isso. Talvez, muito mais que
reminiscências opacas: prelúdios, prefácios à “grande obra”. Mesmo assim, ainda
não é tão simples. Um “prefácio” é, antes de tudo, uma compilação de anos de
aprendizagem; além, é um resumo sintomático de toda a obra. Na história social,
é a síntese formadora, cultural, e que, ainda, aponta para frente, para o que
há de vir, o que está aí, em projeções.
No momento
atual, do Espetáculo, no qual as
relações sociais são espetaculares,
são fundadoras da imagem e não simplesmente postas por ela, o absurdo, a barbárie e a exceção são
naturalizados, são eventos do “fantástico show da vida” (ou do inverso desta)
que devem acontecer e, por mais
próximo que estejam, são distantes. Se por um lado a fantasia ordena a
realidade – aquela fantasia que esconde as rachaduras do Real, as feridas
abertas, feias e traumáticas –; por outro, o espetáculo a expõe – a realidade –
como forma: todo evento social,
fundado nas relações sociais dessa monta, são fantasias espetaculares, que
jogam o absurdo como absurdo, a tragédia como tragédia e etc., em nossa cara,
escancarados. A trama ideológica atual não se dá ao encobrir a realidade, visto
que ela própria já é aparência; antes, acontece em abrir as vísceras dessa
realidade com toda indiferença. Isso tira toda a força crítica em torno da
realidade e, ainda, inclui as práticas possivelmente transformadoras no eixo pré-concebido
do Real. Mesmo as ações mais “radicais” são mudas, não possuem linguagem
específica que rompa com o establishment.
Está-se tão dentro da realidade, tudo tão absorvido por ela, por sua forma, que
parece nada poder romper. Não se consegue enxergar para além, as
possibilidades: a utopia perde a força crítica, é abstrata e sem fundamentos.
A morte,
aparecendo como espetáculo, perde a força corrosiva e aterradora que deveria
ter. Ver alguém morto ou morrendo, ao vivo ou altamente distribuído, compartilhado
– como doces em Cosme e Damião –, transforma o evento mais brutal o mais
corriqueiro e sem sentido, tendo sentido conferido apenas como espetáculo. Além
disso, é um mote para que as “verdades” mais absurdas entrem em cena, sejam
golfadas na cara de todos: “verdades”, mais uma peça pronta que compõe e fecha
o espetáculo – segundo ato! Contudo,
cabe lembrar, é sempre a morte do outro indesejado, trazido como peça
descartável – ou peça a ser eliminada o mais rápido possível –, que é vista
como motivo de uma reespetacularização,
já que ela já é espetáculo uma vez quando aparece. Tal outro é qualquer um que
não seja o indivíduo massificado, ainda que sempre melhor quando esse outro é
uma espécie de “inimigo” ou surgido como tal. Ainda assim, o que fica patente é
que a morte como espetáculo fantástico perdeu o viés crítico, não choca, não
traumatiza, não tira da normalidade. Pelo contrário, ela tem se tornado cada
vez mais uma ordenadora da realidade, algo que põe a realidade nos eixos novamente.
É necessário
repensar, reelaborar nosso passado, o passado de nossa formação cultural, para
que os traumas do Real possam vir à tona, abalar a normalidade da realidade. É imprescindível
levar em consideração nossos aspectos mais peculiares, fundadores de quem
somos, de como somos. Acrescente-se aí o que é produzido abstratamente,
espiritualmente pela ordem abstrata que nos coordena, pela ordem que nos dá uma
liberdade aparente que só serve para nos acorrentar mais. Enfim, é importante repensar
que as consequências trágicas, absurdas de hoje são frutos do jeitinho, do sadismo vindo da
casa-grande, do coronelismo, nepotismo e coleguismo formador do caráter
brasileiro, do racismo estrutural, invisível e abstrato, da luta de classes
tardia e das diferenças peculiares a cada classe (raciais, de gênero e etc.).
Isso nos leva, entre outras coisas, a “resolver” nossos problemas sempre do
modo mais irrefletido, mais “fácil” (ou pelo caminho aparentemente “mais curto”
e menos cansativo), recolocando, enfim, o problema de modo redobrado.
Aquilo que está
por vir, que já está aí e de algum modo sempre esteve, não são simples
resquícios ou rememorações. Antes de tudo, são produtos da prática histórica,
são sínteses sociais que se transformam agora em tese e apontam para o por vir,
para o que “nos aguarda no futuro”. Ainda que caiba a ressalva anti-determinista,
que alerta para o perigo de se tomar isso como dado, como algo que “deve e só
pode ser assim”, é necessário não desconsiderar o peso de nossa formação,
enquanto indivíduos e sujeitos históricos.
Há um fantasma
que ronda nossa sociedade, o fantasma que nos assombra, que nos persegue e que,
no fim, é nossa sombra, nossos mortos que não foram devidamente enterrados no
passado e que agora vagam assolando os vivos. A burocratização extrema, a PM,
as leis da primeira metade do século passado; o jeitinho, o sadismo, a cultura
vinda da casa-grande, dos capitães-do-mato, dos engenhos; a abertura democrática
apenas periférica, marginal, que efetivamente não abriu as sociedades política
e civil e não as despojou dos restos perniciosos do passado, a decadência
gritante das ciências críticas e da educação, a inclusão simplesmente pelo
consumo, pelo fetiche do capital, as exclusões pela luta de classes e por sua
multiplicidade, a superdependência do Estado e da Política em relação à
burocracia e, principalmente, à burguesia. Por tudo isso, o fantasma nos assombra
e não deixará de crescer. Sua sombra deve permanecer mais viva que as projeções
dos vivos na realidade, já que ele se alimenta dos casos não ou mal resolvidos,
do processo não rompido, da transformação que não veio.
Subsolo Urbano!