sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Ostentação, Consumismo: Século XXI

As duas últimas décadas do século XX, pelo menos no Brasil, foram duras, pelo menos para a maior parte da população, para as periferias e margens do “Brasil profundo”.
Por um lado, na década de 1980 o projeto de crescimento econômico típico do período militar demonstrava sua verdadeira face. Tinha “dado errado” e o Brasil caíra num profundo abismo do fim de um ciclo, abismo inflacionário, de alto índice de desemprego e baixíssimo de “desenvolvimento social”. A “abertura democrática” se dá mais por conta do esgotamento desse “modelo” do que por pressão social ou mesmo por “iluminação humanista” que clamaria pelo fim dos absurdos de uma ditadura militar. Por outro lado, na década de 1990 desemboca-se a tragédia econômica do Brasil. Já em seu início, o inflacionamento grotesco da economia – resquício de uma política econômica falida – traz consigo a “revitalização” do que de pior havia no período anterior (ditadura militar) e que, às avessas do que se tinha pensado, não fora removido da cena com a “abertura” em 1985: o recrudescimento da força violenta militar, para “inibir” o crescimento da violência física por conta da insatisfação e miséria econômica, visando “manter a ordem” (a mesma ordem, mas agora com outra máscara); e, ainda, revitaliza também a falta de investimento em estruturas compensatórias da miséria que a fariam, ao menos, ser contida.   
Além disso, no decorrer da mesma década, o Estado passa a se isentar cada vez mais em relação às suas responsabilidades perante a sociedade civil, isentando-se dos meandros da economia. O período FHC atesta isso não somente com privatizações de empresas estatais, mas também pela diminuição quase total da intervenção do Estado nos assuntos econômicos de interesse público.
Esta é a década do Rap, a “música de protesto” da periferia. Não uma rememoração daquela música das décadas passadas (1960-1970) que protestava a partir de uma classe média culta e minimamente “bem alimentada” contra a ditadura. O Rap, assim como o samba de Bezerra da Silva outrora, era a expressão legítima das periferias, em todos os aspectos. Poesia “pesada” aos ouvidos pois dizia exatamente o que a maioria sentia, mas não queria ouvir. Da denúncia dos descasos do Estado e suas intervenções armadas à miséria corrente e o racismo desvairado e mortífero, o Rap só pôde existir nesse contexto, fruto de processo histórico que possibilitou seu surgimento nesse formato.
Com a virada de milênio há a virada política: com saída de cena dessa política de isenção quase total, entra outra que, apesar das continuidades em alguns aspectos, visa intervir no âmbito social fortalecendo o Estado e redistribuindo as “riquezas” para a/na sociedade civil (redistribuição: seja como for, independente das formas que tenha sido e etc., não é disso que trata o texto). Tal virada política fomenta mudanças na sociedade antes inatingíveis e inimagináveis. A política social é amplamente renovada (insisto: seja como for!) e a sociedade, os indivíduos periféricos/marginalizados são incluídos, mesmo que a reboque, na ordem. Aqui reside o cerne do problema sócio-político brasileiro: a ordem, bem ou mal, continua a mesma, ainda que “deformada” pela inclusão de marginais (não entenda, caro leitor amigo, marginal como “fora-da-lei”), e, desse modo, a própria inclusão se dá em vias de criar condições para que tais indivíduos sejam inseridos. Estas condições, criadas, inserem indivíduos não como cidadãos, mas como consumidores plenos: consumidores de educação (ou o que se vende com esse nome), de status, de cultura (ou o que quer que seja), de informação (ainda que vendida como “conhecimento”) e etc.. Isso fomenta, de modo mais profundo, uma mentalidade de indivíduo-coisa. Não é nem o indivíduo pleno, autônomo, nem é mais aquele a que falta subjetividade por conta da miséria quase total (não só econômica), aquele que é mais um algo do que uma pessoa, já que sem acesso a nada falta, inclusive para si, a dignidade de pessoa. Tal mentalidade é, de modo breve, a redução de todos os aspectos da vida ao consumo de aparências. Em outras palavras, é o consumo de um estilo de vida (ainda que não real) que possa ser amplamente visto, cobiçado, invejado, que possa demonstrar riqueza por meio da aparência, ainda que no âmbito privado esse mesmo indivíduo passe fome, alimente-se mal e etc..
A “redistribuição” de renda – seja por meio da diminuição da pobreza e do desemprego, seja pelo melhoramento de serviços e políticas sociais – criou um boom na ordem de consumo de bens e, principalmente, na busca de um estilo de vida previamente estabelecido. Por meio da busca desvairada pela aparência, este estilo é a cópia imperfeita do status fictício da boa vida da classe média. No entanto – apenas para problematizar um pouco, já que não é esse o foco do texto –, este status fictício começa a mostrar sua face real: sua podridão interna desde antes existente e, agora, cada vez mais agarrado em suas aparências, fomentando outro boom: o da violência simbólica (e também física), na tentativa de manter a ficção, o agarramento neurótico a um estado de coisas nunca existente realmente mas mantido como status simbólico.
Não é mais a década do Rap ou da música “consciente” e de protesto (como explosão por meio do grito do oprimido). Da mesma forma que a classe média sempre ostentou seu suposto poder e status de forma clara e aparente, a “nova” classe média (pelo menos simbolicamente) tende a ostentar, de modo ainda mais abissal: sem todo o “glamour” dos “bem criados”.  Não se trata de viver bem, mas aparentar muito bem isso. Não se trata, tampouco, de ter poder: trata-se de demonstrar isso da maneira que for possível, ainda que falso. O que a classe média não aceita é fruto do recalque (ou mesmo da inveja), da “perda” dos seus “privilégios” particulares, que lhe diferenciava da “grande massa”, da ralé. Como todo consumo por aqui se reduz ao consumo de status, aparência, de ideias e não simplesmente de coisas concretas, e, ainda, toda a vida é reduzida a esses aspectos, o próprio protesto por “inclusão” some, pois se efetiva. Quase todos, agora, de uma forma ou de outra, foram incluídos na ordem, nivelando por baixo – pela coisificação – o quê e como deve ser vivido ou entendido como “boa vida”. Não é mais a década do Rap: é a década da música (ou seja o que for) de ostentação. O “Funk ostentação” é uma consequência – trágica – do processo histórico desse período. E, ainda, ele possui uma “vantagem” (por meio de suas próprias desvantagens) em relação aos outros tipos de “música” (ou de “artes”): a vantagem de ser direto, que é fruto de sua desvantagem (uma vantagem pequeno-burguesa) de ser “sútil”. “Músicos” renomados da indústria cultural são tanto mais carregados de ostentação do que os meninos e meninas funkeiros das periferias. A diferença é que aqueles possuem um status de “berço” (são classe média “de verdade”), coisa que estes, os funkeiros, não possuem, já que são na maioria pretos e periféricos, não são sutis nem “cultos”.
O que deve ficar claro é que as manifestações culturais, ainda que coisificadas, não são criações “do nada” e menos ainda frutos da “cabeça vazia” de alguns. São culturais, isto é, resultados de processos históricos. O século XXI não começa em 2001: seu início se dá bem antes, remonta pelo menos à década de 1980. Enquanto a classe média ostenta títulos acadêmicos, músicos “cultos”, viagens à Paris, a “nova” classe média ostenta a si própria, o que ela é na realidade efetiva, por mais que isso coadune com sua aparência e no fim se reduza a ela.

É o que se tem pra hoje. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O Desespero do mundo ou O Medo como forma de existência

[NOTA: tentei escrever algo curto e didático. Não saiu nem curto nem didático. Ao final do texto há uma versão em PDF para aqueles que quiserem baixar.]

Que o mundo caminha desesperado, já é lugar-comum. Não se trata de caminhar em direção a algo nefasto; é, acima de tudo, o caminhar funesto, a própria realização do desespero, permeando tudo, como que constituinte integral e permanente – natural ou naturalizado – do todo. E exatamente por isso, por esse invólucro no qual objetivamente se está, o todo caminha suave, tranquilo, como em mansidão, já que, para si mesmo, tudo se desenrola como que por previsão, naturalmente.
O desenvolvimento da Razão iluminista, fora e após o século XVIII, cinde-se em dois[1]. De um lado, uma racionalidade que ganha forma e toma corpo com toda a força do espírito humano. De outro, a racionalidade – a Razão por excelência – que é envolvida por sua irmã, a técnica, e engolida viva como uma filha de Cronos. Tal desenrolar da Razão nos séculos XIX e XX (e XXI como consequência) se dá pela via da dominação da Natureza – tanto a natureza externa quanto a natureza humana. Essa via visava, ao menos teoricamente, fazer do Progresso da Razão o fim último da busca do humano no mundo: felicidade, liberdade, em suma, realização plena e satisfeita consigo mesma – a reconciliação do Homem com a Natureza, fossem estes de estatutos ontológicos idênticos (Hegel) ou diferentes (Marx). Contudo, o caminho para a realização plena da Razão anula a própria Razão. A técnica (razão instrumental) toma a totalidade das relações por cima e por fora delas: destrói a possibilidade de realização ao mesmo tempo em que se realiza. A razão técnica (ou instrumental) age por meio da contração do tempo, de seu pleno controle, visando a partir dessa apropriação recolocá-lo como algo seu, como seu filho e subordinado. Nada escapa mais à técnica; tudo que está na História, está como vassalo da técnica, da anulação do tempo da experiência como realização do tempo processado sinteticamente: a realização do Esclarecimento – da Razão – em vista de superar o mito, retorna ao mito com mais força (Adorno & Horkheimer). A superação de um estado de coisas no qual ainda havia possibilidade para o acaso, para o desconhecido, torna a existência completamente mecânica, controlada pelo cálculo e pela rentabilidade (economia[2]). Ainda, tal superação também diz respeito à banalização da própria existência humana enquanto Experiência: tudo está previamente dado e nada deve se deixar consumir no/pelo tempo de aprendizado (da Formação Cultural) (Walter Benjamin), tanto porque o tempo mesmo de aprendizado já é um tempo dado como instrumento, como valor de troca. 
A Razão Crítica só sobrevive – ainda que em aparência – na crítica teórica (na crítica da ideologia ou da razão instrumental), dentro das cabeças dos intelectuais e dos escritórios acadêmicos. Porém, somente em aparência. Os resquícios da Razão que parecem sobreviver são como espasmos do moribundo que dá uma espécie de adeus ao mundo. Além disso, somente parece crítica, pois na medida em que o mundo é tecnificado, qualquer “discórdia” pontual surge como se fosse a contraposição dialética da tese. No entanto, com tudo reduzido a opções duaiseste lado ou aquele –, inclusive o que parece ser crítico é apenas o outro lado da técnica. Fazer uma decisão “política” (técnica), por exemplo, ser contraposta por força da lei (revogação ou anulação judicial – também técnica), apesar de parecer “o certo”, no caso de decisões de fato absurdas, é simplesmente a ratificação da técnica: tal decisão judicial só teria força política se fosse obra da Política, da discussão pública e de uma racionalidade para além do cálculo, não do “politicismo” cientificado ou tecnificado, como ocorre.
A dominação da natureza externa, “indomável” até então, por meio da instrumentação do mundo, da substituição quase total da fragilidade humana pela potência quase indestrutível da máquina (da ciência aplicada, tecnologia moderna), leva necessariamente o humano ao posto de apêndice. O movimento que leva da autonomia do indivíduo para a autonomia do produto da atividade humana, é aquele que tem como centro organizador não somente a substituição do humano pela máquina (tecnologia etc.), mas a dependência daquele em relação a esta. A perda das capacidades humanas se dá, não-espontânea e não-autonomamente, por conta da fragmentação do próprio indivíduo, de sua existência dependente não de outros indivíduos, mas das coisas feitas por sua atividade e que se “desligam” de si: o Frankenstein da vida real é o produto do trabalho humano alienado – o fetiche da produção. A dominação da natureza externa coaduna com a dominação da natureza interna ao passo em que aquilo que é “humano” está situado nas coisas (humanizadas): a dependência em relação à técnica e aos seus frutos não é de vontade dos indivíduos, mas necessidade intrínseca já que aquilo que o torna (ou tornaria) humano – qualidades humanas etc. – está nas coisas, é propriedade delas. Fausto só pôde fazer o pacto com Mefistófeles (Goethe), pois tudo aquilo que era e deveria ser já não estava nele e nem dependia mais dele mesmo. A substância do indivíduo moderno é esvaziada, é um nada e no lugar fica um buraco a ser preenchido.
Manipulável como um objeto qualquer – o indivíduo que aparece no limiar da modernidade como o desbravador de si mesmo, o “descobridor” de um novo mundo, utópico (já que ainda não existente) –, o indivíduo moderno é aquele que abdica de si na medida em que vai se realizando. Navegar é preciso; viver não é preciso (Camões). Ao mesmo tempo em que vai configurando seu mundo utópico na realidade histórico-efetiva, ele não só deixa de querer mais, mas é impedido de querer mais: não porque o que se realizou é o “fim da História”, mas por conta de não possuir mais nenhuma capacidade autônoma para tomar qualquer decisão de rumo. Ele se realiza ao mesmo tempo em que não consegue alcançar e sustentar sua realização.
A razão instrumental, a técnica por excelência, não simplesmente coloniza por/de fora o mundo da vida (Habermas), aquele mundo no qual as relações sociais e humanas são conduzidas e se desdobram. Mais profundo que isso, é por meio do próprio agir humano, por meio de suas relações sociais criadas historicamente por sua atividade, que se anulam as próprias relações sociais. Elas são tomadas no momento mesmo em que se produzem. Em outras palavras, na medida em que os indivíduos produzem a si mesmos e suas relações sociais, já não mais controlam a si e suas relações: elas são, de imediato, produtos de uma coisa, são postas por essa coisa como se fossem desde sempre propriedade dela. As relações sociais são relações entre as coisas (Marx) ou, de outro modo, são relações humanas duplicadas, relações sociais postas e determinadas pelas relações entre as coisas (Negt & Kluge). Uma das sínteses da sociedade (resultado da relação entre Humano e Natureza e Humano e Humano), as relações sociais, são expropriadas e recolocadas pelo fruto da atividade humana alienada, que não pertence mais a si (subsunção real – Marx), e que pertence à máquina (técnica, tecnologia, ciência aplicada – em uma palavra, fetiche): todos os movimentos do indivíduo dentro da sociedade são coordenados por algo fora dele e que, ao mesmo tempo, o constituem por dentro, como natureza humana. O indivíduo, reiterando, deixa de ser indivíduo na medida em que realiza, contra e independente de sua vontade, apenas um dos lados da Razão (a razão técnica). Enquanto indivíduo histórico, ele é resultado de relações sociais; e deveria ser resultado de suas próprias relações sociais. Todavia, como tais relações não são colocadas ou determinadas por ele ou pelos sujeitos humanos, pela História e etc., ele é resultado de relações sociais previamente determinadas por uma coisa sem cérebro e sem Razão que vai para além do cálculo e da economia.
Tudo está previsto para todos e cada um. Não há espaço para o acaso, para qualquer contingência. O que aparece como contingência é, nesse terreno, ideológico, ao passo em que a própria técnica põe o problema – ainda que não tenha capacidade de resolvê-lo por si só. A Razão instrumental, que serviu para colocar a natureza num curso guiado pelo humano, desloca inclusive o humano de um rumo qualquer e o repõe no mesmo curso de dominação da natureza. Isto é: concomitante à dominação da natureza, domina-se tudo que é humano, e a finalidade passa a ser a própria reposição e o crescimento da coisa, de modo desenfreado e autônomo.
Cabe ressaltar que, aqui, podemos pensar em duas formas de natureza. O primeiro diz respeito a uma natureza que não teria nenhuma ligação com o humano (ou seja, abstrata e hipotética); no caso seguinte teríamos a natureza como fenômeno, isto é, como um para o outro, para o ser humano e só existente por meio da existência da relação com o humano. Assim, toda a proliferação de teses confusas, principalmente agora no século XXI, que “pensam” uma natureza autônoma frente ao mundo humano, está fadada ao fracasso, pois tal inexiste. A natureza não é um em-si. Ela só existe na medida do humano e, este, só conforme sua atividade em relação à natureza. O nó do problema está aqui: tanto humano quanto natureza tornam-se para outro, transformam-se em meio para a realização plena da coisa (do Capital). Isto quer dizer que tanto natureza quanto humano não existem em independência e, além, não existem fora do poder abstrato e inumano (inumano e também não-natural). Com isso, qualquer tentativa de “pensar” a “salvação” da natureza (de forma emotiva) está, já de início, com o signo do fracasso, na medida em que a própria natureza é fruto de relações sociais determinadas. Greenpeace, Desenvolvimento Sustentável e etc., para além do cinismo, recaem no proselitismo e na incapacidade crítica. São pensados apenas tecnicamente, desligados dos fundamentos do problema, do humano (mesmo que um humano coisificado). Pensar numa outra natureza requer pensar em outro humano, em outras configurações das relações humanas e sociais, tanto a natureza externa quanto natureza interna. Só é possível levar em consideração a natureza abstrata e hipotética pelo caminho do absurdo.
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A incerteza em relação ao futuro cria um desespero em relação ao mundo. Não simplesmente pelo fato de ser incerteza, mas por conta de ser ideologicamente incerta. Isto quer dizer que tudo, inclusive o que está por vir, já está previamente configurado no presente, já dado como um caminho acessível e mais ou menos seguro (do ponto de vista da coisa abstrata). Entretanto, é a segurança da catástrofe, o caminho a ser trilhado, que é permeado de desespero. É esse caminho, imutável e “natural”, surgido como desenvolvimento do humano, que elimina todas as alternativas e, além, revela com toda força a impotência frente ao existente. Impotência humana: talvez, até seja difícil pensar em alguma potência humana na medida em que tudo já foi realizado e vive-se em reprise, na repetição da mesmice colocada pela coisa. O chavão do iluminismo, “O sono da Razão produz monstros” (Goya), pode ser invertido: a vigília plena da razão – instrumental e totalitária – produz monstros, de todos os tipos. É exatamente esse controle total da racionalidade irracional (Marcuse), que ao fechar qualquer possibilidade de autonomia para o humano – e eliminar o humano enquanto tal –, que desespera os indivíduos, quaisquer que sejam.
Por outro lado, a técnica admite maleabilidade interna, isto é, admite que haja “liberdade” de escolha dentro do seu amplo escopo. O indivíduo pode escolher, por meio do cálculo e da rentabilidade, entre várias opções. A liberdade pode ser o mais eficaz meio de dominação (Marcuse). A mesmice, que tanto insiste Adorno, por exemplo, não se dá no campo do particular. Ela é universal, admitindo diferenças de ordem técnica (e somente dessa ordem) no plano do particular. E, neste domínio (o do particular), a mesmice se manifesta pela anulação completa da crítica, de uma Razão de fato humana (já que o humano inexiste). Há possibilidade de escolher, por exemplo, entre uma morte aterradora ou uma aparentemente tranquila. Na vida cotidiana, as liberdade e autonomia são efetivadas com pouco esforço. Contudo, possuem limites, ou seja, só pode ser escolhido o que é dizível e tangível. O indizível e a utopia, que são as únicas possibilidades de romper com tudo aquilo que é dado, são eliminados do horizonte por conterem a barbárie do completamente outro, do diferente. A barbárie não aparece, portanto, como a situação atual. Pelo contrário, aparece como a ruptura de tal situação. Qualquer tentativa de colocar algo novo em cena, que não coadune com o que está dado, é visto como calamidade absurda, completa e ferozmente rechaçada.
O que é completamente outro, para fugir ao quase-total controle da técnica, não pode ser dito. É indizível, já que qualquer linguagem recairia numa aceitação (ainda que aparentemente crítica) das possibilidades previamente dadas. É nisso que, por exemplo, Habermas comete equívoco em sua “crítica” a Adorno. Ele ousa dizer o indizível e, dito, logo se torna parte do universo dado: o que não é só pode ser concebido pela via da negação, da abertura completa frente ao (e para além do) que existe. Em outros termos, qualquer afirmação, qualquer tentativa de dizer positivamente o que pode ser está fadado a recair no universo dado do controle, do cálculo e da técnica. A linguagem é limitada ao que existe. Ela é fruto das relações coisificadas. Assim, ela mesma não consegue dizer um vir a ser completamente outro. O trabalho da crítica é negar o que existe e abrir possibilidades ao não existente. Quando ela se furta a isso e tenta limitar os caminhos, dar as configurações “daquilo que deve ser feito”, já se lambuza na carniça da realidade efetiva, e é recolocada por essa mesma realidade.  
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Na aparente multiplicidade do mundo, no qual todo tipo de manifestações acontecem, o futuro que parecia certo e garantido se rompe ao pretensamente outro, ao novo desconhecido. Por um lado, a multiplicidade concreta é aparente por conta que, ainda que com força de realidade, ela se reduz ao plano objetivo dado, aos limites cabíveis e aceitáveis da instrumentação do mundo: como não há linguagem que defina o completamente outro, usa-se a linguagem existente – e as práticas existentes – e, com isso, reduz-se a potencialidade da ruptura a um acerto, uma correção nos rumos da coisa. Por outro, as manifestações múltiplas – movimentos de inclusão de todos os tipos (gays, negros, pobres etc.) –, se dão conforme os passos já previamente traçados e de alguma forma aceitos. Isto é, ao propor a inclusão neste mundo sem se colocar outro em pauta, já se reduz tudo ao domínio da realidade como naturalidade, na qual se deve apenas fazer um acerto de contas com o presente. A inclusão é, nesse sentido, algo já reificado, coisificado, pois dado previamente. No entanto, pode-se contestar argumentando que tais práticas, por mais que inclusivas, põem de forma imanente a ruptura como finalidade, já que a própria prática de incluir aqueles que foram historicamente excluídos – e assim o são para manter a harmonia do todo – já é um prelúdio de um futuro diferente e transformado. Porém, o que se vê não é isso. Antes, seu contrário que é verdadeiro: na medida em que se luta pela inclusão dos historicamente excluídos, limita-se ao particular e o universal continua seu fluxo harmônico em paz consigo mesmo. É importante lembrar que a coisa, por si só, é maleável e não estanque, ainda que seja dura e abstrata. Ela permite, até para seu mais completo funcionamento, a inclusão de tudo aquilo que antes não fazia parte dela, contanto que isso agregue valores à coisa e não a rompa. Ainda, tais premissas são dadas já no início da ação, não sendo, então, postas após para modelá-la. É isso, por exemplo, que Adorno e Horkheimer têm em mente quando falam da Indústria Cultural: não se trata de adaptar os indivíduos a um mundo estranho, mas já na produção desse mundo ambos, indivíduo e coisa, reconciliam-se, aquele sendo sobrepujado (subsumido) por esta.
Entrementes, mesmo aparente as manifestações de inclusão das diversidades causam um furor desesperado nas pessoas. Elas são levadas a se agarrar ao que existe, à certeza de um futuro de barbárie mas estável (pelo menos ideologicamente estável). São, ainda, levadas a um retrocesso, agarrando-se a um passado ou um presente de fantasia, no qual o todo, de fato, não aparece abalado em nenhuma instância. O medo, unido ao desespero, surge com força como forma de resistência a qualquer tipo de mudança em direção a qualquer novo, ainda que seja um novo já ultrapassado ou já determinado. O diagnóstico é a retração cada vez mais exacerbada em direção a um passado fantasioso e/ou a uma conservação de um presente funesto, mas já aceito. É isso, por exemplo, que faz Ortega y Gasset (A Rebelião das Massas) ao propor a “volta” a uma aristocracia pensante, no qual as massas eram completamente passivas e não corruptoras do saber. O que ele deixa de ver é que as massas não ascenderam ao conhecimento e por isso o deturparam (segundo ele), mas que o próprio movimento da sociedade transformou tudo que poderia vir dos humanos em passividade, em comodidade em relação ao dado e estabelecido. E, por outro lado, que todo o pretenso saber não é corrompido pelas massas, mas é transformado em/posto pela técnica pelo próprio movimento de produção da sociedade. O medo de um “colapso” dos privilégios (ainda que privilégios só como fantasia, como aparência), toma inclusive aqueles que tentam pensar numa solução para os problemas da modernidade. Mas, evidente, pensar em soluções sem se atacar de onde vêm tais problemas, os fundamentos, é algo sempre improdutivo e retrógrado, chegando ao absurdo.
Aqui se pode pensar a extensão totalitária da razão instrumental como um problema intrínseco e de primeira ordem da modernidade. Na medida em que se tem acesso a tudo, no qual todos estão dentro do sistema como natureza, acesso garantido real ou ideologicamente pela própria técnica e dominação da natureza – não só pelo consumo, mas pela plena inclusão, ainda que excluídos em âmbitos pontuais, no mundo desumano –, os indivíduos possuem verdades quase-inatas. São portadores das verdades eternas da natureza social, ou das verdades naturais de uma sociedade estanque. Todo acesso à “informação” não passa de um aprofundamento da tecnificação: a informação deve ter utilidade, independente se tal utilidade é verdadeira ou falsa; o que vale é a redução de tudo, de toda essa informação desnecessária, ao escopo das verdades pré-concebidas do indivíduo “pensante”. Ora, para quê? Para que toda informação/conhecimento disponível? Não importa o que se diga, o que aconteça; importa, antes e além, que tudo se conforme ao que é certo, ao razoavelmente aceito pela reificação. Os indivíduos são incluídos completamente, de maneira plena, ainda que, mesmo fora do âmbito do consumo, eles se comportam, pensam, reagem como o esperado e requerido.
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Os indivíduos sentem-se isolados em meio à multidão. – Quanto mais a técnica permeia o mundo humano de e por dentro, mais distantes, inclusive fisicamente, ficam, as pessoas, umas das outras. – Isso porque a razão instrumental tomou quase tudo, mas deixou algo que não pode se apropriar, que é exatamente aquele vácuo no qual a fantasia e os monstros são possíveis. Ali, tudo que é proto-humano e carece de sentido – o Real (Zizek/Lacan) – atormenta o cérebro dos vivos, dos que ainda dão suspiros, e trazem à tona toda a extensão traumática que não consegue ser elaborada (ou sublimada – Freud): é aqui que se pode falar “welcome to the desert of the Real!” (Matrix/Zizek). E isolados, açoitados de dentro para fora, são levados ao desespero da condição (in)humana.
O desespero não é com a/não está na situação do mundo objetivo: aliás, este vai de vento em popa. Ele se dá, principalmente, no que tange ao buraco negro que se abre por dentro das pessoas. Não um desespero que as coisas continuem como estão. Ao contrário, que elas mudem radicalmente (ou mesmo com aparência fantasiosa de radicalidade). Qualquer precipitação em relação a mudanças que pareçam alterar a configuração harmoniosa da catástrofe já dada gera uma insegurança em relação às identidades. As pessoas, por mais vazias e reificadas que sejam, agarram-se a uma fantasia que as mantém na normalidade, que as deixa seguras, ainda que na indeterminação. As transformações trazem consigo a contingência do futuro, no qual nada do que há de necessário no presente o garante, nenhuma certeza atual justifica-o e lhe dá chão, ainda que um chão movediço, abstrato e fantasioso. Um mundo desesperado é aquele no qual os indivíduos agarram-se em suas loucuras, suas neuroses e psicoses (ainda que só aparentemente suas), atam-se com toda força às comodidades da barbárie, às suas identidades heterônomas, dadas pela coisa.  
Por mais que o mundo administrado conceda espaço para mudanças que agreguem ‘valores’ a si, as pessoas, cada vez mais, limitam essa maleabilidade da coisa, por uma desconfiança de ordem técnica. Quanto mais o mundo se torna contraditoriamente harmônico consigo mesmo, quanto mais ele tenda a se esfacelar por si só, por conta de suas contradições, mais as pessoas fogem da possibilidade do trauma, tanto objetivo quanto, principalmente, subjetivo, mais querem conservar a situação atual: mais vale um na mão do que dois voando. O voo representa a própria libertação da necessidade do se agarrar a um nada, a um vazio instrumental. Os sentidos da vida não precisam fazer sentido. E não fazem. Qualquer dado existente, qualquer situação que aparentemente sustente as coisas como estão, ainda que assolem cada vez mais o que resta do humano, são de extrema necessidade para evitar o choque com o Real e, também, com qualquer mudança, seja qual seja. O sentido é externo. O sentido é interno. É uma síntese, na qual o preenchimento do indivíduo se dá a partir da racionalidade irracional da coisa em contrapartida a sua “necessidade” de fantasia.
O esfacelamento do universo da Experiência junto às suas banalizações produzem o desespero do humano vazio, que tenta sempre achar um sentido estático para a vida e fixá-lo como definição por excelência.  O desespero do mundo está situado exatamente aí: sabemos, todos, que não há solução, que estamos afundando cada vez mais na catástrofe total, e, mesmo assim, continuamos o mesmo caminho, resignados e em espera da morte completa.
Junto a esse desespero, o medo produz efeitos ainda mais perversos. Acuado num canto escuro, tremendo, o indivíduo revida, solta toda sua revolta contra si mesmo. Ainda que não perceba tal fato – pois um dos efeitos da instrumentação do mundo é a fragmentação, a não-relação do fatos, como se fossem cada qual um universal a ser tratado de modo independente –, o indivíduo isolado no mundo tende a se manter vivo pela eliminação do outro, pela anulação completa daquilo que lhe causa estranhamento[3] e medo. O outro só é aceito quando não perturba a paz: só é aceito, portanto, quando pode ser usado de modo calculável e gere um saldo positivo. Assim, além de uma resistência em relação a qualquer coisa que possa causar uma modificação nas configurações do mundo e de sua vida particular, o medo leva ao ataque frontal e direto, sem rodeios. Mesmo aquelas mudanças “dentro da ordem” são ferozmente atacadas e, quiçá, eliminadas.
No cotidiano, o indivíduo se instrumenta cada vez mais de porcarias (objetos desnecessário substancialmente) para se proteger do medo-paranoia. E, como consequência, transporta sua paranoia fantasiosa particular para o âmbito público, universal: tanto no que diz respeito às questões sócio-humanas quanto às políticas, o que vale é o ataque particular universalizado do medo. Assim sendo, ele toma forma abstrata e é configurado da mesma maneira que a técnica. Os “objetos” desnecessários não são apenas concretos, objetos materiais (tecnologias e etc.). São, também e principalmente, objetos espirituais, que salvaguardam o indivíduo em relação a sua personalidade, sua identidade e suas configurações morais e de conduta. O medo é abstrato na medida em que toma o indivíduo em todos os domínios da vida. Se não for por amor, a melhor forma de dominar é pelo medo (Maquiavel). E a coisa, que toma toda a humanidade para si e a transforma em seu contrário, coloca o medo como constituinte da natureza humana. É ele, desse modo, que surge como um monstro destruidor, assim como os “heróis” dos filmes de Hollywood: destroem o mundo para salvá-lo. Como forma de existência, desespero e medo se unem numa santa aliança para defender a continuidade – pacífica espiritualmente, catastrófica na realidade efetiva – harmoniosa do todo.
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Ao engolir a Crítica, a racionalidade instrumental toma para si o direito e a capacidade de pensar o mundo humano. O grande problema disso é que, por um lado, ao substituí-la, perde a capacidade de pensar o humano como humano e pensa-o pelo cálculo objetificado, pela via do interesse da coisa. Por outro, ela repõe, a partir de si, uma falsa totalidade – já que o cerne da totalidade (o humano) é relegado a um momento. Isto é, a técnica não consegue “fechar a conta” da realidade pois não consegue lidar com o humano como humano, somente como ser reificado. A dominação da Natureza toma o lugar de uma reconciliação com a natureza e da possibilidade de um acerto de contas do indivíduo consigo mesmo, pela via da autonomia e da liberdade. O desespero e o medo são, a um só tempo, as expressões mais latentes e mais profundas da realidade atual – e tendem a permanecer como tal. No fim, o que nos espera já está dado, a barbárie não-longe, nem no passado nem no futuro: ela é processo, constituinte fundamental do Real.




[1] Apesar de, cabe lembrar, desde o Renascimento já haver essa “via de mão dupla da Razão”, é somente no século XVIII (europeu) que isso ganha força exponencial.
[2] Não confundir “economia” com simples movimento de dinheiro ou de riquezas. Aqui, de modo mais amplo, diz respeito à racionalização de todas as esferas da vida, onde não há espaço para uma ‘autonomia’ de movimentos, em nenhum sentido.
[3] A título de não criar mal entendidos, estranhamento, aqui, não tem nada a ver com a alienação, com a Entfremdung



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