[NOTA: tentei escrever algo curto e didático. Não saiu nem curto nem didático. – Ao final do texto há uma versão em PDF para aqueles que quiserem baixar.]
Que o mundo
caminha desesperado, já é lugar-comum. Não se trata de caminhar em direção a algo nefasto; é, acima de
tudo, o caminhar funesto, a própria realização do desespero, permeando tudo,
como que constituinte integral e permanente – natural ou naturalizado – do
todo. E exatamente por isso, por esse invólucro no qual objetivamente se está,
o todo caminha suave, tranquilo, como em mansidão, já que, para si mesmo, tudo
se desenrola como que por previsão, naturalmente.
O
desenvolvimento da Razão iluminista, fora e após o século XVIII, cinde-se em
dois.
De um lado, uma racionalidade que ganha forma e toma corpo com toda a força do
espírito humano. De outro, a racionalidade – a Razão por excelência – que é
envolvida por sua irmã, a técnica, e engolida viva como uma filha de Cronos. Tal
desenrolar da Razão nos séculos XIX e XX (e XXI como consequência) se dá pela
via da dominação da Natureza – tanto a natureza externa quanto a natureza
humana. Essa via visava, ao menos teoricamente, fazer do Progresso da Razão o
fim último da busca do humano no mundo: felicidade, liberdade, em suma,
realização plena e satisfeita consigo mesma – a reconciliação do Homem com a Natureza, fossem estes de estatutos
ontológicos idênticos (Hegel) ou diferentes (Marx). Contudo, o caminho para a
realização plena da Razão anula a própria Razão. A técnica (razão instrumental)
toma a totalidade das relações por cima e por fora delas: destrói a possibilidade de realização ao mesmo tempo em que se realiza.
A razão técnica (ou instrumental) age por meio da contração do tempo, de seu
pleno controle, visando a partir dessa apropriação recolocá-lo como algo seu,
como seu filho e subordinado. Nada escapa mais à técnica; tudo que está na
História, está como vassalo da técnica, da anulação do tempo da experiência
como realização do tempo processado sinteticamente: a realização do Esclarecimento – da Razão – em vista de superar o mito, retorna ao mito com mais força (Adorno
& Horkheimer). A superação de um estado de coisas no qual ainda havia
possibilidade para o acaso, para o desconhecido, torna a existência
completamente mecânica, controlada pelo cálculo e pela rentabilidade (economia).
Ainda, tal superação também diz respeito à banalização da própria existência
humana enquanto Experiência: tudo está previamente dado e nada deve se deixar
consumir no/pelo tempo de aprendizado (da Formação
Cultural) (Walter Benjamin), tanto porque o tempo mesmo de aprendizado já é
um tempo dado como instrumento, como valor de troca.
A Razão Crítica só sobrevive – ainda que em
aparência – na crítica teórica (na crítica da ideologia ou da razão instrumental),
dentro das cabeças dos intelectuais e dos escritórios acadêmicos. Porém,
somente em aparência. Os resquícios da Razão que parecem sobreviver são como
espasmos do moribundo que dá uma espécie de adeus ao mundo. Além disso, somente
parece crítica, pois na medida em que o mundo é tecnificado, qualquer “discórdia” pontual surge como se fosse a
contraposição dialética da tese. No entanto, com tudo reduzido a opções duais – este lado ou aquele –, inclusive o que parece ser crítico é apenas
o outro lado da técnica. Fazer uma decisão “política” (técnica), por exemplo,
ser contraposta por força da lei (revogação ou anulação judicial – também
técnica), apesar de parecer “o certo”, no caso de decisões de fato absurdas, é
simplesmente a ratificação da técnica: tal decisão judicial só teria força
política se fosse obra da Política,
da discussão pública e de uma racionalidade para além do cálculo, não do
“politicismo” cientificado ou tecnificado, como ocorre.
A dominação da
natureza externa, “indomável” até então, por meio da instrumentação do mundo,
da substituição quase total da fragilidade humana pela potência quase
indestrutível da máquina (da ciência aplicada, tecnologia moderna), leva
necessariamente o humano ao posto de apêndice.
O movimento que leva da autonomia do indivíduo para a autonomia do produto da
atividade humana, é aquele que tem como centro organizador não somente a
substituição do humano pela máquina (tecnologia etc.), mas a dependência
daquele em relação a esta. A perda das
capacidades humanas se dá, não-espontânea e não-autonomamente, por conta da fragmentação
do próprio indivíduo, de sua existência dependente não de outros indivíduos,
mas das coisas feitas por sua atividade e que se “desligam” de si: o Frankenstein da vida real é o produto do
trabalho humano alienado – o fetiche da produção. A dominação da natureza
externa coaduna com a dominação da natureza interna ao passo em que aquilo que
é “humano” está situado nas coisas (humanizadas): a dependência em relação à
técnica e aos seus frutos não é de vontade dos indivíduos, mas necessidade
intrínseca já que aquilo que o torna
(ou tornaria) humano – qualidades humanas etc. – está nas coisas, é propriedade delas. Fausto só pôde fazer o pacto com Mefistófeles (Goethe), pois tudo aquilo que era e deveria ser já
não estava nele e nem dependia mais dele mesmo. A substância do indivíduo
moderno é esvaziada, é um nada e no lugar fica um buraco a ser preenchido.
Manipulável como
um objeto qualquer – o indivíduo que aparece no limiar da modernidade como o
desbravador de si mesmo, o “descobridor” de um novo mundo, utópico (já que
ainda não existente) –, o indivíduo moderno é aquele que abdica de si na medida
em que vai se realizando. Navegar é
preciso; viver não é preciso (Camões). Ao mesmo tempo em que vai configurando
seu mundo utópico na realidade histórico-efetiva, ele não só deixa de querer
mais, mas é impedido de querer mais:
não porque o que se realizou é o “fim da
História”, mas por conta de não possuir mais nenhuma capacidade autônoma
para tomar qualquer decisão de rumo. Ele se realiza ao mesmo tempo em que não
consegue alcançar e sustentar sua realização.
A razão
instrumental, a técnica por excelência, não simplesmente coloniza por/de fora o mundo
da vida (Habermas), aquele mundo no qual as relações sociais e humanas são
conduzidas e se desdobram. Mais profundo que isso, é por meio do próprio agir
humano, por meio de suas relações sociais criadas
historicamente por sua atividade, que se anulam as próprias relações sociais.
Elas são tomadas no momento mesmo em que se produzem. Em outras palavras, na
medida em que os indivíduos produzem a si mesmos e suas relações sociais, já
não mais controlam a si e suas relações: elas são, de imediato, produtos de uma
coisa, são postas por essa coisa como se fossem desde sempre propriedade dela.
As relações sociais são relações entre as coisas (Marx) ou, de outro modo, são
relações humanas duplicadas, relações sociais postas e determinadas pelas
relações entre as coisas (Negt & Kluge). Uma das sínteses da sociedade
(resultado da relação entre Humano e
Natureza e Humano e Humano), as
relações sociais, são expropriadas e recolocadas pelo fruto da atividade humana
alienada, que não pertence mais a si (subsunção
real – Marx), e que pertence à máquina
(técnica, tecnologia, ciência aplicada – em uma palavra, fetiche): todos os movimentos do indivíduo dentro da sociedade são
coordenados por algo fora dele e que, ao mesmo tempo, o constituem por dentro,
como natureza humana. O indivíduo, reiterando, deixa de ser indivíduo na medida em que realiza,
contra e independente de sua vontade, apenas um dos lados da Razão (a razão
técnica). Enquanto indivíduo histórico, ele é resultado de relações sociais; e
deveria ser resultado de suas próprias relações sociais. Todavia, como tais
relações não são colocadas ou determinadas por ele ou pelos sujeitos humanos,
pela História e etc., ele é resultado de relações sociais previamente determinadas
por uma coisa sem cérebro e sem Razão que vai para além do cálculo e da
economia.
Tudo está previsto para todos e cada um. Não há espaço para o acaso, para qualquer
contingência. O que aparece como contingência é, nesse terreno, ideológico, ao passo em que a própria técnica põe o problema – ainda que não tenha capacidade
de resolvê-lo por si só. A Razão instrumental, que serviu para colocar a
natureza num curso guiado pelo humano, desloca inclusive o humano de um rumo
qualquer e o repõe no mesmo curso de dominação da natureza. Isto é: concomitante à dominação da natureza, domina-se tudo que é humano, e a finalidade
passa a ser a própria reposição e o crescimento da coisa, de modo desenfreado e
autônomo.
Cabe ressaltar
que, aqui, podemos pensar em duas formas de natureza. O primeiro diz respeito a
uma natureza que não teria nenhuma ligação com o humano (ou seja, abstrata e
hipotética); no caso seguinte teríamos a natureza como fenômeno, isto é, como
um para o outro, para o ser humano e
só existente por meio da existência da relação com o humano. Assim, toda a
proliferação de teses confusas, principalmente agora no século XXI, que
“pensam” uma natureza autônoma frente ao mundo humano, está fadada ao fracasso,
pois tal inexiste. A natureza não é um
em-si. Ela só existe na medida do humano e, este, só conforme sua
atividade em relação à natureza. O nó do problema está aqui: tanto humano
quanto natureza tornam-se para outro,
transformam-se em meio para a realização plena da coisa (do Capital). Isto quer dizer que tanto
natureza quanto humano não existem em independência e, além, não existem fora
do poder abstrato e inumano (inumano e também não-natural). Com isso, qualquer
tentativa de “pensar” a “salvação” da natureza (de forma emotiva) está, já de início, com o signo do fracasso, na medida em
que a própria natureza é fruto de relações sociais determinadas. Greenpeace, Desenvolvimento Sustentável e etc., para além do cinismo, recaem no
proselitismo e na incapacidade crítica. São pensados apenas tecnicamente,
desligados dos fundamentos do problema, do humano (mesmo que um humano
coisificado). Pensar numa outra natureza requer pensar em outro humano, em
outras configurações das relações humanas e sociais, tanto a natureza externa
quanto natureza interna. Só é possível levar em consideração a natureza
abstrata e hipotética pelo caminho do absurdo.
*
* *
A incerteza em
relação ao futuro cria um desespero
em relação ao mundo. Não simplesmente pelo fato de ser incerteza, mas por conta
de ser ideologicamente incerta. Isto quer dizer que tudo, inclusive o que está
por vir, já está previamente configurado no presente, já dado como um caminho
acessível e mais ou menos seguro (do ponto de vista da coisa abstrata). Entretanto, é a segurança da catástrofe, o caminho
a ser trilhado, que é permeado de desespero. É esse caminho, imutável e
“natural”, surgido como desenvolvimento do humano, que elimina todas as alternativas
e, além, revela com toda força a impotência frente ao existente. Impotência humana: talvez, até seja difícil
pensar em alguma potência humana na medida em que tudo já foi realizado e
vive-se em reprise, na repetição da
mesmice colocada pela coisa. O chavão do iluminismo, “O sono da Razão produz monstros” (Goya), pode ser invertido: a vigília plena da razão – instrumental e
totalitária – produz monstros, de todos os tipos. É exatamente esse
controle total da racionalidade irracional (Marcuse), que ao fechar qualquer
possibilidade de autonomia para o humano – e eliminar o humano enquanto tal –,
que desespera os indivíduos, quaisquer que sejam.
Por outro lado,
a técnica admite maleabilidade
interna, isto é, admite que haja “liberdade” de escolha dentro do seu amplo
escopo. O indivíduo pode escolher, por meio do cálculo e da rentabilidade,
entre várias opções. A liberdade pode ser
o mais eficaz meio de dominação (Marcuse). A mesmice, que tanto insiste
Adorno, por exemplo, não se dá no campo do particular. Ela é universal,
admitindo diferenças de ordem técnica (e somente dessa ordem) no plano do
particular. E, neste domínio (o do particular), a mesmice se manifesta pela
anulação completa da crítica, de uma Razão de fato humana (já que o humano inexiste).
Há possibilidade de escolher, por exemplo, entre uma morte aterradora ou uma
aparentemente tranquila. Na vida cotidiana, as liberdade e autonomia são
efetivadas com pouco esforço. Contudo, possuem limites, ou seja, só pode ser
escolhido o que é dizível e tangível. O indizível e a utopia, que são as únicas
possibilidades de romper com tudo aquilo que é dado, são eliminados do horizonte por conterem a barbárie do completamente outro, do diferente. A barbárie não aparece,
portanto, como a situação atual. Pelo contrário, aparece como a ruptura de tal situação. Qualquer tentativa de
colocar algo novo em cena, que não coadune com o que está dado, é visto como
calamidade absurda, completa e ferozmente rechaçada.
O que é completamente outro, para fugir ao
quase-total controle da técnica, não pode ser dito. É indizível, já que
qualquer linguagem recairia numa aceitação (ainda que aparentemente crítica)
das possibilidades previamente dadas. É nisso que, por exemplo, Habermas comete
equívoco em sua “crítica” a Adorno. Ele ousa dizer o indizível e, dito, logo se
torna parte do universo dado: o que não é
só pode ser concebido pela via da negação, da abertura completa frente ao
(e para além do) que existe. Em outros termos, qualquer afirmação, qualquer
tentativa de dizer positivamente o que pode
ser está fadado a recair no universo dado do controle, do cálculo e da
técnica. A linguagem é limitada ao que existe. Ela é fruto das relações
coisificadas. Assim, ela mesma não consegue dizer um vir a ser completamente
outro. O trabalho da crítica é negar
o que existe e abrir possibilidades ao não existente. Quando ela se furta a
isso e tenta limitar os caminhos, dar as configurações “daquilo que deve ser feito”,
já se lambuza na carniça da realidade efetiva, e é recolocada por essa mesma
realidade.
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* *
Na
aparente multiplicidade do mundo, no qual todo tipo de manifestações acontecem,
o futuro que parecia certo e garantido se rompe ao pretensamente outro, ao novo
desconhecido. Por um lado, a multiplicidade concreta é aparente por conta que,
ainda que com força de realidade, ela se reduz ao plano objetivo dado, aos
limites cabíveis e aceitáveis da instrumentação do mundo: como não há linguagem
que defina o completamente outro, usa-se a linguagem existente – e as práticas
existentes – e, com isso, reduz-se a potencialidade da ruptura a um acerto, uma correção nos rumos da coisa. Por outro, as manifestações múltiplas
– movimentos de inclusão de todos os tipos (gays, negros, pobres etc.) –, se
dão conforme os passos já previamente traçados e de alguma forma aceitos. Isto
é, ao propor a inclusão neste mundo
sem se colocar outro em pauta, já se reduz tudo ao domínio da realidade como
naturalidade, na qual se deve apenas fazer um acerto de contas com o presente.
A inclusão é, nesse sentido, algo já reificado, coisificado, pois dado
previamente. No entanto, pode-se contestar argumentando que tais práticas, por
mais que inclusivas, põem de forma imanente a ruptura como finalidade, já que a
própria prática de incluir aqueles que foram historicamente excluídos – e assim
o são para manter a harmonia do todo – já é um prelúdio de um futuro diferente e transformado. Porém, o que se vê
não é isso. Antes, seu contrário que é verdadeiro: na medida em que se luta
pela inclusão dos historicamente excluídos, limita-se ao particular e o
universal continua seu fluxo harmônico em paz consigo mesmo. É importante
lembrar que a coisa, por si só, é maleável e não estanque, ainda que seja dura
e abstrata. Ela permite, até para seu mais completo funcionamento, a inclusão de tudo aquilo que antes não
fazia parte dela, contanto que isso agregue
valores à coisa e não a rompa. Ainda, tais premissas são dadas já no início
da ação, não sendo, então, postas após para modelá-la. É isso, por exemplo, que
Adorno e Horkheimer têm em mente quando falam da Indústria Cultural: não se trata de adaptar os indivíduos a um
mundo estranho, mas já na produção desse mundo ambos, indivíduo e coisa, reconciliam-se,
aquele sendo sobrepujado (subsumido) por esta.
Entrementes,
mesmo aparente as manifestações de inclusão das diversidades causam um furor
desesperado nas pessoas. Elas são levadas a se agarrar ao que existe, à certeza
de um futuro de barbárie mas estável (pelo menos ideologicamente estável). São,
ainda, levadas a um retrocesso, agarrando-se a um passado ou um presente de
fantasia, no qual o todo, de fato, não aparece abalado em nenhuma instância. O medo, unido ao desespero, surge com
força como forma de resistência a
qualquer tipo de mudança em direção a qualquer novo, ainda que seja um novo
já ultrapassado ou já determinado. O diagnóstico é a retração cada vez mais
exacerbada em direção a um passado fantasioso e/ou a uma conservação de um
presente funesto, mas já aceito. É isso, por exemplo, que faz Ortega y Gasset (A Rebelião das Massas) ao propor a
“volta” a uma aristocracia pensante, no qual as massas eram completamente
passivas e não corruptoras do saber. O que ele deixa de ver é que as massas não
ascenderam ao conhecimento e por isso o deturparam (segundo ele), mas que o
próprio movimento da sociedade transformou tudo que poderia vir dos humanos em
passividade, em comodidade em relação ao dado e estabelecido. E, por outro
lado, que todo o pretenso saber não é corrompido pelas massas, mas é transformado
em/posto pela técnica pelo próprio movimento de produção da sociedade. O medo
de um “colapso” dos privilégios (ainda que privilégios só como fantasia, como
aparência), toma inclusive aqueles que tentam pensar numa solução para os
problemas da modernidade. Mas, evidente, pensar em soluções sem se atacar de
onde vêm tais problemas, os fundamentos, é algo sempre improdutivo e
retrógrado, chegando ao absurdo.
Aqui
se pode pensar a extensão totalitária da razão instrumental como um problema
intrínseco e de primeira ordem da modernidade. Na medida em que se tem acesso a
tudo, no qual todos estão dentro do
sistema como natureza, acesso garantido real ou ideologicamente pela própria
técnica e dominação da natureza – não só pelo consumo, mas pela plena inclusão, ainda que excluídos em âmbitos
pontuais, no mundo desumano –, os indivíduos possuem verdades quase-inatas. São portadores das verdades eternas da natureza social, ou das verdades naturais de uma sociedade
estanque. Todo acesso à “informação” não passa de um aprofundamento da
tecnificação: a informação deve ter utilidade, independente se tal utilidade é
verdadeira ou falsa; o que vale é a redução de tudo, de toda essa informação
desnecessária, ao escopo das verdades pré-concebidas do indivíduo “pensante”. Ora,
para quê? Para que toda informação/conhecimento disponível? Não importa o que
se diga, o que aconteça; importa, antes e além, que tudo se conforme ao que é certo, ao razoavelmente aceito pela reificação. Os indivíduos são incluídos
completamente, de maneira plena, ainda que, mesmo fora do âmbito do
consumo, eles se comportam, pensam, reagem como o esperado e requerido.
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* *
Os
indivíduos sentem-se isolados em meio à multidão. – Quanto mais a técnica
permeia o mundo humano de e por dentro, mais distantes, inclusive fisicamente,
ficam, as pessoas, umas das outras. – Isso porque a razão instrumental tomou
quase tudo, mas deixou algo que não pode se apropriar, que é exatamente aquele
vácuo no qual a fantasia e os monstros são possíveis. Ali, tudo que é proto-humano
e carece de sentido – o Real
(Zizek/Lacan) – atormenta o cérebro dos vivos, dos que ainda dão suspiros, e
trazem à tona toda a extensão traumática que não consegue ser elaborada (ou sublimada – Freud): é aqui que se pode
falar “welcome to the desert of the Real!”
(Matrix/Zizek). E isolados, açoitados de dentro para fora, são levados ao
desespero da condição (in)humana.
O
desespero não é com a/não está na situação do mundo objetivo: aliás, este vai
de vento em popa. Ele se dá, principalmente, no que tange ao buraco negro que
se abre por dentro das pessoas. Não um desespero que as coisas continuem como
estão. Ao contrário, que elas mudem
radicalmente (ou mesmo com aparência fantasiosa de radicalidade). Qualquer
precipitação em relação a mudanças que pareçam alterar a configuração
harmoniosa da catástrofe já dada gera uma insegurança em relação às
identidades. As pessoas, por mais vazias e reificadas que sejam, agarram-se a
uma fantasia que as mantém na normalidade, que as deixa seguras, ainda que na
indeterminação. As transformações trazem consigo a contingência do futuro, no
qual nada do que há de necessário no presente o garante, nenhuma certeza atual
justifica-o e lhe dá chão, ainda que um chão movediço, abstrato e fantasioso. Um
mundo desesperado é aquele no qual os indivíduos agarram-se em suas loucuras,
suas neuroses e psicoses (ainda que só aparentemente suas), atam-se com toda
força às comodidades da barbárie, às suas identidades heterônomas, dadas pela
coisa.
Por
mais que o mundo administrado conceda espaço para mudanças que agreguem ‘valores’ a si, as pessoas, cada vez
mais, limitam essa maleabilidade da coisa, por uma desconfiança de ordem
técnica. Quanto mais o mundo se torna contraditoriamente harmônico consigo
mesmo, quanto mais ele tenda a se esfacelar por si só, por conta de suas
contradições, mais as pessoas fogem da possibilidade do trauma, tanto objetivo
quanto, principalmente, subjetivo, mais querem conservar a situação atual: mais vale um na mão do que dois voando.
O voo representa a própria libertação da necessidade do se agarrar a um nada, a um vazio instrumental. Os sentidos da vida não precisam fazer sentido.
E não fazem. Qualquer dado existente, qualquer situação que aparentemente
sustente as coisas como estão, ainda que assolem cada vez mais o que resta do
humano, são de extrema necessidade para evitar o choque com o Real e, também, com
qualquer mudança, seja qual seja. O sentido é externo. O sentido é interno. É
uma síntese, na qual o preenchimento do indivíduo se dá a partir da
racionalidade irracional da coisa em contrapartida a sua “necessidade” de
fantasia.
O
esfacelamento do universo da Experiência junto às suas banalizações produzem o
desespero do humano vazio, que tenta sempre achar um sentido estático para a
vida e fixá-lo como definição por
excelência. O desespero do mundo está
situado exatamente aí: sabemos, todos,
que não há solução, que estamos
afundando cada vez mais na catástrofe total, e, mesmo assim, continuamos o
mesmo caminho, resignados e em espera da morte completa.
Junto
a esse desespero, o medo produz
efeitos ainda mais perversos. Acuado num canto escuro, tremendo, o indivíduo
revida, solta toda sua revolta contra si mesmo. Ainda que não perceba tal fato –
pois um dos efeitos da instrumentação do mundo é a fragmentação, a não-relação
do fatos, como se fossem cada qual um universal a ser tratado de modo
independente –, o indivíduo isolado no mundo tende a se manter vivo pela
eliminação do outro, pela anulação completa daquilo que lhe causa estranhamento e
medo. O outro só é aceito quando não perturba a paz: só é aceito, portanto,
quando pode ser usado de modo calculável e gere um saldo positivo. Assim, além
de uma resistência em relação a qualquer coisa que possa causar uma modificação
nas configurações do mundo e de sua vida particular, o medo leva ao ataque frontal e direto, sem rodeios.
Mesmo aquelas mudanças “dentro da ordem” são ferozmente atacadas e, quiçá,
eliminadas.
No
cotidiano, o indivíduo se instrumenta cada vez mais de porcarias (objetos
desnecessário substancialmente) para se proteger do medo-paranoia. E, como consequência, transporta sua paranoia
fantasiosa particular para o âmbito público, universal: tanto no que diz
respeito às questões sócio-humanas quanto às políticas, o que vale é o ataque
particular universalizado do medo. Assim sendo, ele toma forma abstrata e é
configurado da mesma maneira que a técnica. Os “objetos” desnecessários não são
apenas concretos, objetos materiais (tecnologias e etc.). São, também e
principalmente, objetos espirituais,
que salvaguardam o indivíduo em relação a sua personalidade, sua identidade e
suas configurações morais e de conduta. O medo é abstrato na medida em que toma
o indivíduo em todos os domínios da vida. Se
não for por amor, a melhor forma de dominar é pelo medo (Maquiavel). E a coisa, que toma toda a humanidade para
si e a transforma em seu contrário, coloca o medo como constituinte da natureza
humana. É ele, desse modo, que surge como um monstro destruidor, assim como os “heróis”
dos filmes de Hollywood: destroem o mundo
para salvá-lo. Como forma de existência, desespero e medo se unem numa
santa aliança para defender a continuidade – pacífica espiritualmente,
catastrófica na realidade efetiva – harmoniosa do todo.
*
* *
Ao
engolir a Crítica, a racionalidade instrumental toma para si o direito e a
capacidade de pensar o mundo humano. O grande problema disso é que, por um
lado, ao substituí-la, perde a capacidade de pensar o humano como humano e
pensa-o pelo cálculo objetificado, pela via do interesse da coisa. Por outro, ela repõe, a partir de
si, uma falsa totalidade – já que o cerne da totalidade (o humano) é relegado a
um momento. Isto é, a técnica não consegue “fechar a conta” da realidade pois
não consegue lidar com o humano como humano, somente como ser reificado. A
dominação da Natureza toma o lugar de uma reconciliação
com a natureza e da possibilidade de um acerto de contas do indivíduo consigo
mesmo, pela via da autonomia e da liberdade. O desespero e o medo são, a um só
tempo, as expressões mais latentes e mais profundas da realidade atual – e tendem
a permanecer como tal. No fim, o que nos espera já está dado, a barbárie não-longe,
nem no passado nem no futuro: ela é processo,
constituinte fundamental do Real.