Nota:
a “ideia” de escrever o
presente texto veio de dois lados: primeiro, meu amigo Clayton Rogério [Pepo]
me instigou a “dizer o que estava acontecendo em SP”; segundo, a necessidade,
mais subjetiva do que objetiva, de tentar entender o que (e porque, e como, e
etc.) estava de fato acontecendo. É claro que o objetivo de “dizer o que estava
acontecendo em SP” – uma escrita mais jornalística, mais clara – foi por ralo a
baixo logo na primeira linha do texto. Saiu uma espécie de “ensaio”, de um
ponto de vista um tanto quanto particular, envolvendo a sociologia e a história,
tendo como fio condutor, como pano de fundo e como escopo geral, a filosofia, a
dialética.
O
texto foi escrito entre fins de novembro e dezembro de 2012, ainda no “calor do
momento” do conflito entre capitães-do-mato e outsiders – curiosamente terminei a primeira versão
em 24 de dezembro, já à noite. Meu amigo Marcelo [Tomassini] leu a primeira
tentativa e, claro, sugeriu leituras que agreguei ao texto nesse meio tempo. No
entanto, o texto ficou “à crítica
roedora dos ratos”, ou melhor: à crítica
destruidora dos ‘cavalos de troia’ (Trojan Horse), já que só o imprimi para fins de correção textual etc.. No decorrer
de 2013 fui o incrementando, alterando algumas partes, revisando o texto – nada
muito substancial –, o que fez que a versão atual fosse uma revisada entre
agosto e setembro daquele ano.
Como
não é possível perder a atualidade enquanto ela não se transforma radicalmente,
o texto é atual. Talvez, os casos (explícitos) no Maranhão, os ‘rolezinhos’ em
SP, e tantas outras coisas sejam desdobramentos do que tentei forjar aqui como
fundamentação histórica. Ainda, como o texto é relativamente extenso e, por
isso, “difícil” para ser lido no blog, abaixo vai um link para download do
mesmo em PDF. O texto parte de um “ponto de vista” (por mais que eu não goste
dessa expressão) crítico e, por esse motivo, é parcial e engajado (no sentido
marxista e também sartreano). Fica ao critério daqueles que se dispuserem ler
criticar. Aguardo por isso.
NOTA 2: é importante dar atenção às "notas de
rodapé" (que aqui constam ao final do texto). Isso não é muito usual. Mas,
para não perder o 'ritmo' do texto, foi necessário explanar assuntos relevantes
nas notas que não poderiam ficar de fora. Por isso, aqui as "notas de
rodapé" são de suma importância para o texto.
Mais
um ataque:
Capitães-do-mato e outsiders na farsa histórica brasileira
Vinicius dos Santos Xavier*
Marx inicia seu 18 Brumário dizendo que os grandes fatos
e personagens da história ocorrem duas vezes: a primeira como tragédia, a
segunda como farsa.[1] A
única coisa que aparece ‘limitada’ é o número de vezes. Toda encenação
histórica se repete recorrentemente de maneira cômica e sórdida: a primeira
como tragédia, todas as demais como farsa. Os exemplos históricos são vários, e
o Brasil está cheio deles.
As manifestações
de violência que assolaram São Paulo – não pela primeira vez[2]
– deixaram atônitos os mais entusiastas e trouxeram à flor da pele a
irracionalidade fática que procura respostas e soluções acabadas para os
pseudoproblemas, ideologicamente colocados. Ressuscitam-se velhos paradigmas
que pareciam há muito superados, e outros que pouco foram notados no decorrer
histórico. E cabe lembrar que a violência física, que ora volta ao primeiro
plano com força, não é a única que vem à tona, tampouco está isolada em meio ao
processo onde vários fatos, aparentemente desconexos, também estão em cena. Aqui
se faz necessário remontar à história do Brasil como objeto para que seja
possível, ao menos, compreender a imanência de tais manifestações. Mesmo que
arrebatadora, toda a farsa presente é decorrência e desdobramento dos
desenvolvimentos oblíquos e não resolvidos – e escamoteados – da tragédia
histórica. Nas entrelinhas, os problemas latentes do país e de seu povo estão
todos aí, alguns mais outros menos visíveis.
A recorrência ao
movimento histórico e suas manifestações, passadas e atuais, são de primeira
ordem para que não se coloquem à força conceitos e resoluções pré-fabricadas e
estanques, vindos de fora com o intuito de reduzir toda a movimentação legítima
do objeto às categorias e conceitos a
priori – isto é, falsos. Além do mais os sujeitos, sejam eles individuais
ou históricos, tão falados por várias bocas, críticas e comuns, não devem tomar
o lugar do objeto, a não ser quando eles mesmos, sujeitos, são tomados como
objeto, mediados dialeticamente pelo processo histórico. Nesse sentido, os
caminhos e descaminhos que podem fazer chegar à compreensão de fatos
supostamente novos e isolados são retirados do próprio objeto, deixando-o dizer
por si só à medida que se tenta apreendê-lo[3].
Isso não deve indicar que aqui as conclusões são totais ou mesmo fechadas. Não
obstante, cabe ressaltar, o percurso feito pelo pensamento a fim de compreender
a realidade efetiva, que aparece com uma lógica própria aos olhos, não é o
mesmo da lógica dessa realidade. As manifestações mais visíveis talvez não sejam
o local adequado para se fiar e fincar bandeira; em suma, a realidade, como ela
aparece empiricamente, não é da mesma ordem do pensamento, ainda que este
sempre se remeta, dialeticamente, àquela e a ela retorne[4].
*
* *
Desde a invasão
da América Latina pelos europeus, especialmente o Brasil é dono de uma história
de sucessão de domínio, exploração e exclusão. Com a introdução de
especificidades daquele povo, ainda que amalgamadas ao que foi aqui encontrado
e, posteriormente, introduzido – principalmente o elemento africano e, mais
tarde, o elemento burguês –, sofre-se com algo peculiar. Os vários tipos de
escravismo que vigoraram, além da hegemônica escravização dos povos africanos
na América, traçaram uma espécie de desenvolvimento histórico ímpar. Tais
elementos – por mais que aqui não seja o lugar para serem abordados de modo
profundo, tão pouco levados ao esgotamento, e os quais apenas surgirão como
apontamentos e pontos de confluência e base para a análise[5]
– são de suma importância para se compreender a natureza do que ocorre em São
Paulo em fins do século XX e início do XXI, e o que ainda está por vir. O
engendramento histórico-social da violência urbana remonta, à primeira vista, à
própria falta de urbanização e ao surgimento das comunidades marginalizadas e
favelas com a exclusão dos povos rebaixados para a margem, ou mesmo para além
dela – geográfica, econômica, social, cultural e moral –, da prematura
sociedade capitalista burguesa que se erigia. Junto ao açoite da escravidão
está, paralelamente, o quilombo como forma não somente de resistência, mas de
criação de uma ordem fora da ordem
vigente da colônia. Junto à favelização das metrópoles brasileiras,
principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, a organização marginal aparece
como forma orgânica e legítima de associação e sociabilidade, diga-se assim, daqueles que somente existiam para o
Estado e para a protoburguesia de forma pontual: para um, como excluídos e
marginais, foras-da-lei e inferiores
por natureza; para outro, como força de trabalho e mão-de-obra barata e
descartável em um país em crescente construção – isso levando em consideração quando eram requisitados para tanto.
Paralelo ao
inicial aburguesamento da sociedade brasileira, a passagem truncada da colônia
para o capitalismo dependente, vem a reboque as teorias eugênicas e o movimento
abolicionista – este, segundo Florestan, uma “revolução social dos ‘brancos’ e
para os ‘brancos’”[6] –
que intentaram ‘excluir os excluídos’ de forma permanente. As leis criadas na
segunda metade do século XIX, que diziam respeito ao sistema escravista,
atestam isso. E, é claro, a Guerra do Paraguai que, além de destruir aquele
país de modo que eles jamais conseguiram se reconstruir, eliminou mais da
metade dos pretos que aqui existiam. Além do mais, o mito de uma sociedade sem
“barreiras” ou “fronteiras de cor”, fez com que, entre outras coisas, a
marginalização permanente do povo recém-liberto recaísse como problema inato de
preguiça ou falta de aptidão para o trabalho livre, para a acumulação de
riquezas e para o progresso e evolução pessoal, jogando, assim, todo problema
nas costas do indivíduo atomizado e excluído[7].
Cabe ressaltar que a tão glorificada mestiçagem brasileira, que na primeira
metade do século XX marcou a literatura vigente, só se deu – e isso se esquecem
vastas interpretações acadêmicas – na parte mais baixa da pirâmide social:
somente entre os já marginalizados que o “cruzamento racial” ocorreu de fato[8].
Fora isso, com a introdução do elemento protoproletário e proletário europeu
inflaciona-se ainda mais as recentes margens geográficas – as periferias. No
entanto, mesmo tendo sido marginalizado num primeiro momento, o europeu branco,
na condição de imigrante, logo iria se tornar pequeno-burguês: seu trabalho
prosperou e logo ele pode se emancipar, não sem luta, e, consequentemente,
assumir posição de comando já no início do século XX. É claro que não se pode
generalizar essa ascensão dos brancos vindos naquela virada de século. As
periferias, assim como os quilombos de outrora, também se constituíam – e
constituem – de elementos brancos relegados. É necessário lembrar que o sistema
capitalista, ainda que um capitalismo dependente, é tributário da exclusão,
grosso modo, para aquisição e elevação do mais-valor relativo e para a vigência
de uma vontade abstrata única – ideológica. Nem todos puderam se dar bem; assim
como nem todos os pretos foram suprimidos da realidade brasileira. Mesmo assim,
os brancos de ascendência européia adquiriram rapidamente um posto geográfico e
moral, dentro das periferias, que os distinguiam do preto: a constituição do
imaginário de uma “natureza inferior” conferida aos pretos pelas teorias eugênicas
não foi suprimida do espírito do povo brasileiro desde então.
Aqui é
importante ressaltar que o problema objetivo não se dá, simplesmente, pela “cor
da pele” ou pela “raça/etnia”; não é de cunho individual ou mesmo moral. Os
elementos constituintes da realidade brasileira devem ser tomados como
categorias históricas e sociais e não simplesmente, como vociferam os eruditos,
como indivíduos empíricos. Nesse sentido, a mestiçagem, mesmo alterando o
fenótipo dos indivíduos e criando uma multiplicidade de diferenças, não altera
o fator crucial do racismo: o “moreno” (mais “claro” ou mais “escuro”), o
“pardo”, o “mulato” e toda a gama de “cores/definições” que surgem da
mestiçagem, dos cruzamentos étnico-raciais, são todos anulados pela
discriminação racial e sócio-racial. Os traços mais sutis identificam mais o ser preto do que propriamente a cor da
pele: formato de nariz, tipo de cabelo, espessura dos lábios e etc., por um
lado; e isso se aprofunda, por outro lado e consequentemente, dada a classe
social a qual esse indivíduo pertence, identificando-se isso pelo tipo de
vestimenta, o “cargo/função” no mundo do trabalho, os lugares que frequenta e
etc.. Isso indica, em suma, que o racismo vai para além da simples cor de pele,
por mais que as várias tonalidades da pele preta ainda sejam de interferência
majoritária. Portanto, qualquer interpretação que queira ser radical – ir até a
raiz – no que tange ao racismo, deve tomar o objeto pelo prisma de categoria
histórico-social.
*
* *
O Feitor e o Capitão-do-mato são reencenados historicamente no palco do Estado:
a polícia civil e a famigerada polícia militar. Toda a tentativa de inclusão
dos inferiorizados sempre foi feita de modo bruto e autoritário. Na ordem
colonial, como caça e captura dos pretos fugidos ou dos “preguiçosos” que ou
insistiam em não trabalhar, ou eram açoitados por suas próprias fadigas. Na
ordem protocapitalista, já na República, além da ordem do Estado a ser seguida,
a implacável dominação burguesa, ainda que incipiente neste momento, se fazia
vigente. Com a rápida e decadente modernização do Brasil a partir de meados da
década de 1950, o país tende a entrar na roda do capitalismo mundial, já
apontando para o que viria a seguir: o “globalitarismo”, como diria Milton
Santos[9].
O Estado, como
ratificador das vontades de uma pequena parcela da sociedade, esteve à frente
de uma ordem rígida para aqueles que não faziam parte, não eram integrados a
ele. A truculência com que se tratavam os que foram postos à margem com a
virada do século XIX ao XX, sempre fez com que nenhuma de suas ações – do
Estado –, mesmo as “positivas”, fossem, de fato, efetivadas fora do âmbito
violento. Com a entrada em cena da ordem burguesa, progressivamente a
integração dos marginais foi sendo
feita, ainda que paliativamente, em vistas de sua anulação sócio-histórica.
Somente se “integra” na medida em que não oferece mais o perigo da diferença para uma ordem pautada na mesmice. O elemento
excluído, preto ou periférico, representou desde sempre uma dupla negatividade:
primeiro com a criação de uma identidade negativa, pois intrínseca à sua
condição de marginal; segundo, na medida em que, em vista da famigerada
integração numa sociedade de classes, se negava a si próprio numa anulação de
si para se tornar um ser-outro na
ordem capitalista[10].
A violência do fetichismo da produção de capital vem à tona como o espírito da
situação histórica. Os excluídos para se “incluírem” deveriam deixar de sê-lo –
ser quem eram por definição e “natureza” –, para continuarem a ser marginais,
portanto, excluídos, mas agora de modo subsumido. Aliás, esse movimento da
sociedade foi relegado e por vezes completamente negado por aqueles que lutaram
e lutam para a superação dessas condições de exclusão e rebaixamentos sociais –
isso para não se falar na sociologia pequeno-burguesa que nega o problema do
racismo brasileiro e das diferenças imanentes da condição de exclusão
permanente. Por um lado, o movimento
negro brasileiro sempre pecou por não levar em conta o elemento burguês e o
que ele trazia de novo à cena e à condição de si mesmo[11].
Por outro lado, o movimento das esquerdas anulava a situação de exclusão e
racismo, subsumindo esta à luta de classes[12],
ou a tratando de modo maniqueísta.
*
* *
Ainda no início
do século XX, a expressão máxima na literatura vigente era a “malandragem carioca”, como aquela que
definia a marginalidade urbana das capitais (especialmente Rio de Janeiro e São
Paulo): o arquétipo desse “malandro” é
o preto do morro ou o sambista malquisto. Desde já, ele era perseguido pela
ordem como um fora-da-ordem por natureza. Entretanto, nem se
precisava ser de fato um malandro para
ser caçado. Ele era a caricatura autoprojetada de si: tido como fora-da-lei,
excluído desde o ventre, portava-se como tal. Já nas décadas posteriores, e
também no período da ditadura militar[13],
esse malandro se profissionaliza como marginal ou, de outro modo, como
porta-voz[14].
Em fins da década de 1980 e início da seguinte, a expressão da insatisfação e o
clamor por integração, além da denuncia da violenta ordem burguesa – tendo o
Estado como escopo –, dava-se por meio do Rap.
Toda a década de 1990 é marcada por isso: a violência física e simbólica era noticiada
assim como sentida na pele. Em São Paulo, a constante e truculenta violência
física é demonstrada por meio do “esquadrão da morte”, morte de “marginais por
natureza”, do Estado: as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar – a Rota[15].
Além disso, o encarceramento em massa marca a década. É aqui que se dá o ponto
máximo de confluência: a ordem burguesa constantemente englobando a todos,
reduzindo a esfera da experiência e da vida ao movimento abstrato do capital e
de todas suas vicissitudes, e também à sua ordem moral acoplada a isso; e, ao
mesmo tempo, a “antiordem” de
marginais que se utilizavam de “métodos oblíquos” para se chegar à mesma
finalidade. Tudo isso faz com que a sociabilidade se reduza a um único ponto: a
dessublimação repressiva do capital[16].
Com a
“popularização” da ordem de consumo, a sociedade reduzida a um único ponto – o
capital como natureza – compondo uma totalidade falsa, a inclusão se dá, entre
outras coisas, por meio da aparência do status,
da aquisição de mercadorias. A própria vida humana se reduz à reificação e à hipóstase
das formas, à mesmice. Contudo, as “possibilidades” dadas a essa integração
reificada não são as mesmas para todos. Isso indica, além do mais, que é
autoimposto como condição de vida, na medida mesmo em que é negado aos
marginais que ocupem espaço nas formas institucionais, ou ainda apenas sendo
sujeito subalterno e, mais uma vez, marginalizado. A inclusão dos rebaixados
começa, por sua vez, a ser feita em meados da década de 1960 e 1970, com a
massificação da educação, por exemplo. Mas, cabe ressaltar, essa abertura só se
efetiva quando da pauperização das formas de inclusão e da criação de novas e
mais eficazes formas de controle. Quando a reificação atinge um grau no qual é
possível se controlar sem a necessidade de se excluir, inclui-se, massificando
o já previamente doutrinado. Ainda assim, a doutrina se dá em relação aos fins,
ao dever ser, os meios não sendo
“democratizados” para tanto.
A ideia de
“estado de exceção”, tão propagada pelas recentes leituras sócio-filosóficas e
históricas no Brasil[17],
já estava presente para os outsiders
desde sempre: primeiro, com a tragédia histórica do escravismo e da
inferiorização dos pretos; depois, com a segregação burguesa, conjunta à
dominação abstrata do capital, em relação às periferias das grandes metrópoles
brasileiras. O elemento incluído no movimento abstrato de uma falsa sociedade –
composta por uma sociabilidade cínica e ideológica – é aquele subsumido:
somente com a anulação sócio-histórica, ainda que precária, de sua condição de
negação da suposta ordem harmônica, de sua assimilação como elemento positivo,
é que a inclusão malfadada é possível. Isso é mais que perceptível: a aceitação
(inclusão) leva em conta a eliminação da diferença de fato, escamoteada e
suprimida, tendo-se, quando muito, uma diferença visível, mas falsa. A pseudo-diferença
que permanece é uma cabeça de Jano: por um lado, ela vigia a não acusação do
elemento dominante de segregação etc.; por outro, inviabiliza a visão do
problema como relação social dentro de uma sociedade específica e joga com toda
força o estigma sobre o indivíduo a-histórico.
Ainda assim, a luta contra o racismo em busca de uma integração, mas não
de uma assimilação suporia, por um lado, uma identidade étnico-cultural dos
grupos em questão, em última instância, uma consciência-de-si
que, no entanto, é apenas transitória e dialética – negativa; por outro, a
necessidade de uma superação da hipóstase do objeto, da sociedade e seu
movimento naturalizados, suprimindo e rompendo, além do mais, as pretensas e falsas
identidades criadas nesse processo.
Todavia a
inclusão, mesmo reificada, não é um “privilégio” de todos os componentes
históricos da sociedade brasileira. Aqui, o mito da democracia racial liga-se à
própria mistificação da democracia real. A especificidade do racismo e da
condição do povo preto no Brasil deve ser levada em consideração. A ideia de
uma sociedade e de um Estado democráticos desconsidera a constituição histórica
e eleva uma categoria abstrata e metafísica que reside somente enquanto “ideia
abstrata” na cabeça das pessoas – a ideia de democracia –, ao posto de algo
concreto, realmente efetivo. No entanto, por ela se reduzir a simples fatos
isolados e pontuais, altamente manipulados, a própria ideia se perde enquanto
efetividade e só aparece como patologia numa sociedade que fecha os olhos
quanto a si mesma. Destarte, uma democracia leva em consideração a existência
de indivíduos participantes e minimamente autônomos frente aos interesses e ao
processo de constituição dialético da sociedade. Indivíduos que, enquanto
proliferação de uma falsa ideia, existem na realidade efetiva; e na realidade
efetiva só existem enquanto ideia.
Ainda, um dado
importante é notar que o Estado está pautado em um autoritarismo da via única[18].
Essa via única se dá quando o Estado (supostamente nação) ou se neutraliza
ideologicamente, aderindo de forma naturalizada a uma “opção”, invariavelmente
a majoritária e dominante no processo histórico, ou, ainda, quando o Estado de
direito, “neutro” perante a anulação das diferenças – “todos somos iguais” – se
isenta de atuar já que sua ação é inviabilizada por sua própria constituição burguesa
e falsamente abstrata[19].
O racismo
brasileiro, muito mais forte e pernicioso que a segregação estado-unidense e do
que o apartheid sul-africano, por
exemplo, efetivou-se tanto mais quanto mais abstrato foi se tornando no
decorrer histórico. Além do mito da democracia racial, do paraíso racial e similares, as formas de manipulação do preto se
deu pela sua anulação sócio-histórica, introjetando o racismo como cultura,
como natureza. A falta de uma luta direta, de uma segregação visível, fez (e
faz) com que o elemento já marginalizado fosse reduzido ainda mais, sendo
sempre tratado como igual no discurso oficial e achincalhado na prática
cotidiana e no discurso enviesado cínicos[20].
O Racismo brasileiro é um inimigo oculto, escondido dentro do ser estigmatizado
e, por fim, transmutando-se nele próprio. A ideia de um racismo não passa
simplesmente, ou não deve ser reduzido a um único fator: corpo, imaginário
etc.. É no amálgama do processo histórico de exclusão e anulação que entram
“dados mais concretos” que servem de aporte para a prática cotidiana. Isso
indica, mais uma vez, que não é somente no processo de constituição de um
Estado tal e qual ou mesmo de algum elemento externo que se devem interpretar
os problemas mais latentes do Brasil: é na imanência do movimento histórico, na
constituição sociocultural de seu povo, em suas entrelinhas históricas, que se
deve buscar aquilo que fomenta o presente – tentando interpretá-lo em vista de
sua superação prática (e também teórica)[21].
*
* *
Historicamente,
há duas ordens dentro da colônia: uma, oficial e dominante; outra, ainda que
singular e pontualmente submetida àquela, aparecendo como uma espécie de antiordem relegada pela ordem oficial, de
sociabilidade e relações específicas, e que, intrinsicamente, existe também
como resistência – cultural e social. Desde sempre banidos para além da
marginalidade, sendo submetidos e “incluídos” como patologia social e,
concomitantemente, como além do escopo social e de sociabilidade, os outsiders para cá trazidos ou aqui rebaixados
à condição de antissocial criaram para si, sem alternativas, uma ordem avessa à
ordem dominante[22].
Com o fim da colônia, esses mais que
marginais, ainda achincalhados pela nascente ordem burguesa e pelo Estado
são obrigados a se incluírem mas não recebem os meios para isso. Muito pelo
contrário, são estigmatizados ideologicamente como inferiores já que, na ordem
da sociedade de pessoas “iguais”, não conseguem individualmente forças e aptidões
para tanto. Suas incursões na vida burguesa são enviesadas, oblíquas e,
consequentemente, reprimidas pela força dominante. São caçados como fora-da-lei
e inferiorizados como portadores natos de insuficiências genética, mental,
intelectual, física e racial. As “oportunidades de inclusão” somente aparecem
quando sustentadas na mesmice, sob a já reificada existência – ainda que, mesmo
assim, tratados como diferentes pois desiguais por natureza (ou por naturalização do dado e estabelecido).
Outra ordem se fez necessária na colônia
tanto por resistência, quanto por questão de sobrevivência. Sob uma ordem que
não conferia nenhum espaço para a humanidade do escravo, surge a necessidade de
transmutar e adquirir uma identidade, ainda que precária, por meio da cultura e
de uma ‘resistência do espírito’; o
quilombo aparece como, grosso modo, associação da resistência física e a
criação de uma ordem que contestava e atribuía um mínimo de humanidade ao
escravo fugido ou liberto. No pós-abolição a aglutinação nas favelas e o samba,
ainda que de forma parca, davam ao elemento marginalizado um status de
identificação, de lamento e, grosso
modo, de resistência e criação de um espaço legítimo para si, ainda que um
espaço aquém do desejado. No pós-ditadura militar, o encarceramento em massa
dos outsiders e o desprezo quase que
completo pelas periferias das capitais – e ainda com uma execução também em
massa de marginais, fossem ou não fora-da-lei –, levou à criação de novas
alternativas que, se por um lado tentavam lutar pela inclusão, por outro,
diferentemente, aceitavam sua condição quase-natural
de permanente exclusão e na qual apenas foram inseridos na ordem burguesa por
meio da necessidade instintiva de
consumo, competição e a finalidade do vencer
na vida[23] – capitalistamente falando –,
finalidade de alcançar o mesmo objetivo, posto no céu estrelado do capital como
ciclo e busca intrínseca e natural da vida, independente do modo de vida que se leva.
Já se pode
vislumbrar, por aqui, que o Primeiro
Comando da Capital não é uma criação ex
nihilo. O próprio movimento e desenvolvimento histórico da sociedade
brasileira fomenta esse nascimento que, aliás, já estava em germe – como
conceito – no desdobramento do espírito. O enclausuramento efetivo de grande
parte dos marginalizados no processo histórico pós-abolição, especialmente no
período de fins da década de 1980 em diante, sem um mínimo atendimento social e
humanizado, produz o escopo de uma ordem que se engendrará dentro das prisões,
já que o “estado de natureza” de
cunho hobbesiano ao que foram submetidos necessitava, assim como, por exemplo,
em Hobbes ou em qualquer um dos contratualistas[24],
da criação de alguma ordem para a própria sobrevivência para além do lema da selva, para além da lei do mais forte. Uma
antiordem como ordem própria e à parte nasce da necessidade
histórico-social daqueles que foram submetidos, e se afundaram ainda mais, a
uma dupla desumanidade: primeiro numa desumanidade da vida reificada sob o
capital, da qual estão excluídos; segundo, àquela que os joga à própria sorte
nas prisões superlotadas e completamente desassistidas pelo Estado e pela ordem
vigente, dependendo de sua “índole”, de seu “caráter”, ou ainda de alguma
conjuntura completamente contingente para sua “salvação” – individual, diga-se.
A histórica
exclusão permanente, desde o período colonial, que uma parte da população foi
submetida, aparece como base da criação de um “Estado paralelo”, ao mesmo tempo dentro e à parte do Estado
oficial. Todas as tentativas de luta por uma inclusão na ordem, ou mesmo por um
revolucionamento dela, não atingiram uma parcela dessa população de outsiders. Mesmo o movimento da
sociedade do século XXI que, no Brasil, tendeu a incluir, ainda que de maneira
brusca, tudo e todos[25],
não atinge a totalidade das pessoas, principalmente nas periferias. Aliás, isso
é um dos requisitos da ordem capitalista. Mesmo assim, no que diz respeito às
periferias e ao povo que nela está no nível mais baixo, majoritariamente preto,
os que foram incluídos, só o foram de modo fragmentário: as exclusões,
inferiorização, rebaixamento – e agora também endividamentos – etc., persistem
de modo cada vez mais bruto o quanto mais sutil se tornam. Não simplesmente uma
consequência natural, contudo, os desenvolvimentos da sociedade brasileira,
além dos constantes modos de escamoteação do problema levaram ao que se tem
hoje. É claro que não se pode reduzir tampouco fechar conclusivamente os
desdobramentos. No entanto, é evidente que não é por uma “má índole” ou por
opção individual que isso tudo surge e toma corpo; e, ao contrário, não é pela
brutalidade do encarceramento, do julgamento popular – a justiça que mais se
aparenta à vingança[26]
– etc., que o problema pode ser resolvido ou jogado para debaixo do tapete
enquanto a consciência do “cidadão de bem” fica tranquila.
Uma antiordem é criação da farsa histórica.
O não-atendimento do Estado e da ordem burguesa aos marginais, a constante
marginalização intrínseca que vige na sociedade brasileira desde o período
colonial, as ações factuais, isoladas e brutalmente inconsequentes para a
resolução de um “problema” histórico estão fadadas a fortalecer ainda mais e
fazer expandir esse tipo de situação. Não se trata de cair no determinismo e
dizer que não havia (ou não há) alternativas. Todavia, cabe ressaltar que a
hipóstase do movimento em falso da sociedade capitalista leva a
desenvolvimentos cada vez mais fechados e fadados a se darem conforme o
barbarismo e a desumanidade do movimento abstrato e autônomo da coisa por si mesma (capital). É, também,
inconsequente e irrefletida a opção pela interpretação do problema hipostasiado
por fora dele: é necessário situar-se mediado pelo processo – mesmo com o
“distanciamento crítico” – para que não se coloquem resoluções pré-fabricadas,
estanques e que sirvam apenas à satisfação pessoal e não à leitura do objeto.
*
* *
O Primeiro Comando da Capital surge,
imediatamente, de um amálgama histórico entre isenção do Estado quanto à política prisional–encarceramento em massa–necessidade
de organização interna e um “contrato social” entre os presos[27].
Desde os fins da década de 1980 e em toda década de 1990, o enclausuramento de
marginais se deu na mesma medida em que se crescia a marginalização. O grande
déficit econômico deixado pelo período da ditadura militar, os altos inflacionamento
e desemprego ou subempregos, aliados ao grande movimento de migração
norte/nordeste-sudeste desde a década de 1970 e ao aumento numérico e
qualitativo das favelas em São Paulo, além do crescimento do “grande
abastecimento” de drogas nas periferias, levou, mais uma vez e em contrapartida,
à brutalização do Estado e do ideário burgueses em relação aos excluídos e às
margens. A falta de perspectiva global e em relação à inclusão no sistema de
consumo – na roda capitalista – leva
a uma crescente criminalização dos outsiders.
As cadeias se enchem de periféricos de todos os tipos. Logo há uma
superlotação: pessoas jogadas de qualquer maneira e em uma situação qualquer,
de desprezo quase que total. Concomitante ao crescimento massivo do número de
prisões e de encarcerados há um aumento substancial no que tange à
criminalidade e à violência direta, e também no número de mortes. As
periferias, principalmente as favelas, recaem numa desorganização quase caótica
por conta tanto da “criminalidade sem parâmetros”, quanto por meio da
truculência sem lei dos novos
capitães-do-mato.
Da mesma forma
que os pretos da Colônia se refugiavam e criavam, ou se adaptavam, em uma ordem
avessa a oficial ou, de outro modo, sujeitavam-se serem subjugados pela
subexistência medíocre, os marginalizados de hoje aceitam a naturalização do
dado como prescrição metafísica ou natureza imanente individual e do movimento
da sociedade (grosso modo, o indivíduo isolado como fracassado perante a realidade), ou, ao contrário, criam formas de
organização para além das formas vigentes – já que, socialmente, quase
totalmente invisíveis. Mesmo que a finalidade e o objetivo sejam os mesmos – a
inclusão massificada ou forçada no status
quo –, faz-se necessário criar outra forma, já que não existia (e ainda não
existe) espaço na ordem social imperante para a totalidade dos marginalizados.
Quando muito, são levados a reboque pelo movimento da sociedade. O pelourinho de hoje não tem o tronco, a
chibata e o feitor; mais sutil e não visível a olho nu, chama-se de “estilo”,
“modo” ou “padrão” de vida (isso quando não se adiciona o “crescente” para indicar ascensão e, em última instância, “vitória”
perante a realidade efetiva). Além de tudo um grito de protesto contra a
situação vigente, contra a completa exclusão, as ações fora da lei daqueles que
não tomaram nota do que era a lei, também compõe uma negatividade, mostrando
uma das contradições da sociedade brasileira.
O
encarceramento, e toda sua complexidade social, sem quase nenhuma assistência
por parte do Estado, faz com que cadeias superlotadas tornem-se barris de
pólvora prestes a explodir. Num estado selvagem, os presos passam a ser
conduzidos pela lei do mais forte – aliás, mesma lei que vigorava nas ruas, nas
periferias nesse mesmo período. O PCC engendra-se
nesse processo de forma intrínseca, vista a necessidade de conferir uma ordem
que assegurasse um mínimo de convívio dentro dos presídios. Organização, além do
mais, que visava, já aqui, uma complexa rede de condutas, desde acabar com as
matanças entre os presos, até dispor sobre rebeliões etc.. Em suma, uma forma
orgânica de organizar de fato aquilo que havia sido posto de lado pelo Estado e
aceito como “consequência natural e justa” pela maioria que estava de e por
fora do processo. A completa exclusão pela sociedade burguesa e o não
atendimento do Estado em relação aos outsiders
gera a necessidade da criação de uma ordem à parte, própria, um “Estado
paralelo” que dê conta de organizar e reger a situação caótica presente.
Num primeiro
momento, um esquema hierarquizado de maneira rígida; após, algo mais
“democrático” e mais a altura da situação desses outsiders[28].
Nas cadeias, as mortes indiscriminadas quase que sumiram, sendo, basicamente,
criado um tribunal popular que julga
e ordena, inclusive, quem e como paga suas “dívidas”[29].
Tanto dentro como fora dos presídios, a hegemonização do “Partido” faz com que a existência desses marginais se organize para
além do âmbito e da tutela do Estado. Mesmo aqueles que não são “filiados”, mas
são próximos ou associados indiretos, favorecem-se com a estruturação
organizativa do “crime”. E, ainda mais, inclusive aqueles que nada têm a ver
com o “crime”, ainda que sendo parte histórica da marginalização, são, de certa
forma, beneficiados[30].
Entretanto, nem
tudo são flores. Da forma quase como uma corporação
que o PCC se organizou, ele
hegemoniza sua presença, dentro ou fora dos presídios, por meio,
principalmente, do medo. Se por um
lado o Estado age brutalmente e impõe um medo sem retornos à população
periférica, pela imposição do poder pelo
poder, demonstração de força da ordem e destruição – assim como
capitães-do-mato –, por outro, o medo trazido pelo “crime”[31]
possui, intrinsecamente, uma espécie de retorno. Os chamados “acertos de
contas”, por exemplo, não acontecem mais tão livremente e pela “lei do mais
forte”; os “estupradores” logo somem; os assaltos e furtos são organizados,
inclusive sendo feitos, às vezes, por “encomendas”; etc.[32].
Mesmo aqueles que são beneficiários indiretos (a população que não é do
“crime”) e que tem em sua vida certa tranquilidade por conta disso, mesmo que
não tenham consciência clara desse processo, não respeitam por princípio, mas
por medo, já que a vida vale pouco e, no fim, ainda se resolve pela “lei do
mais forte”. Quase como um exército
mercenário maquiavélico[33],
no qual não se pode confiar inteiramente, os “irmãos” se organizam quase que autonomamente, por fundamentos de
conduta, tendo uma base ética própria; porém, tudo ligado ao poder de
disposição da força, das armas de fogo. O medo é a figura exógena, heterônoma,
que dispõe da vida de outrem por sua própria autonomia. Ainda que traga
benefícios, ele poda movimentos, limita “liberdades” etc.. Todavia, quem irá se
importar em ter sua liberdade limitada, já que essa liberdade tinha uma
existência ainda mais circunscrita – quando existia – antes disso? Mesmo assim,
ressalta-se, o medo realmente efetivo pode surtir efeito de “sociopatologia” em situações limites –
que, aliás, vimos acontecer em 2006 e agora, 2012 – e encaminhar com mais
afinco e força irracional em direção ao barbarismo generalizado e totalizante.
*
* *
O Levante do dia das mães, de maio de
2006, atingiu o senso comum, os desavisados e também os mais entusiastas como
um raio caído de um céu sem nuvens[34].
Como primeira demonstração pública de força e poder de combate, o “salve geral” e o “toque de recolher” imposto
– que fique claro, não pelo PCC, mas
por conta do conflito com o Estado e com os novos capitães-do-mato –, levaram a
sociedade e seus indivíduos a se retraírem ainda mais no irracionalismo e na
sede de vingança contra a “criminalidade” que assolou, ex nihilo para aqueles, a cidade. Combate direto não somente entre outsiders e capitães-do-mato, mas entre
o poder violento do Estado e seu alter
ego, seu filho bastardo. Em suma,
combate direto dentro de uma situação histórica de barbárie insustentável. Entrementes,
por outro lado também demonstrou o poder organizativo e de disposição de força
e rebelião contra a situação vigente, historicamente estabelecida.
Dentro de uma situação de selvageria quase absoluta no interior das
prisões – também como reflexo distorcido da barbárie social –, e todas suas
complexidades e consequências, num estado
de natureza hobbesiano, o “salve
geral” assemelha-se à vontade geral
rousseauniana[35].
De forma mais democrática que o Estado burguês, o PCC pós-2002/2003 organiza-se conforme a vontade dos “bandidos”, a
partir de suas necessidades imanentes. É claro que não se pode pensar em algo
estritamente racional ou criador de uma sociabilidade pacífica em todas as
instâncias. Porém, pacifica, unifica e organiza os presos a partir deles
mesmos, sem a necessidade de um comando superior ou externo. A finalidade ainda
está na força, e aquele que não cumpre uma “missão” é cobrado junto à coerência
desse sistema e por meio de seu tribunal. É democrático – mais até do que a
pseudodemocracia burguesa – na medida em que as resoluções são previamente
debatidas numa espécie de “esfera pública da bandidagem”. O “salve geral” é um chamado, uma
conclamação a ser seguida após e por meio de aclamação geral. É patente que
isso se dá para o combate com os capitães-do-mato e, como foi em 2006, uma
demonstração de força e poder e a imposição sem precedentes do medo
generalizado, até para fins de crescimento e coesão do próprio “Partido”,
mostrando quem era e quem mandava, não aceitando rivalidade que não fosse de
seu irmão gêmeo, o Estado.
Todas essas
intempéries, assim também como o período de maio a novembro de 2012, evidenciam
que uma sociedade que escamoteia seus problemas e só os enfrenta de maneira
oblíqua, não está à altura da situação de competência histórica para
resolvê-los. Ainda mais, num todo ideológico, falso por excelência, é quase que
impossível os problemas serem enfrentados de forma séria e coerente. O embate
entre a polícia militar e os “irmãos” confere, entre outras coisas, aval para a
explicitação do poder irracional do Estado, com a matança indiscriminada,
direta e desvelada – que na periferia já era desde sempre, e é, constante e
velada – de marginais de todos os tipos, especialmente os pretos. A matança de
inocentes, principalmente e inclusive, por parte dos capitães-do-mato, dado o
aval popular e do Estado, foi o que marcou os combates de 2012[36].
Isso evidencia, por sua vez, que não se trata de combater o “crime” ou mesmo
suas manifestações empíricas. Ele somente aparece como um dos fenômenos numa
sociedade desorganizada e violenta por si só, dona de uma história ímpar,
excludente e mal resolvida. O que acontecia na Colônia com os escravizados e
com os quilombos, repete-se de forma parca e confusa na retomada da tragédia
que parecia adormecida. Mas o monstro que hiberna não morre: acorda e retorna
com mais força e fome.
Os novos capitães-do-mato
saem à caça daqueles que transgridem a ordem burguesa e do Estado, assim como
nas caças aos quilombos e aos pretos fugidos, na qual se seguia a ordem do
Senhor e, em última instância, da Colônia. No entanto, o capitão-do-mato é a
imagem mal feita e distorcida do poder, já que ele é parte integrante dos
marginalizados, isto é, em linguagem marxiana, é um trabalhador assalariado –
na ordem burguesa, mal remunerado – que garante, psicossocialmente, a passagem
alienada de seu infortúnio como glória e “dessublimação” por meio de um poder
não seu, impróprio. Ele reproduz a opressão quanto mais é oprimido, interna e
externamente.
Outra ordem
dentro da efetiva e oficial foi, na história do Brasil, gestada para dar conta
da organização do protesto daqueles que foram mais que marginalizados, seja ele
– o protesto – explícito ou implícito. Na atualidade, ela não visa romper o status quo, sendo, antes disso, um
produto dele, reflexo imanente da realidade efetiva. O Primeiro Comando da Capital é a imagem de Narciso dessa situação de
exclusão e tentativas recorrentes de eliminação; e sendo uma peça do
quebra-cabeça histórico-social, sem ele a realidade fica incompleta. A
sociedade moderna-capitalista é feita por meio de contradições, e são as
contradições que a impulsiona. O progresso de uma sociedade que contradiz o
indivíduo, que está para além e oposta a ele, é aquela que não somente engendra
as contradições macrossociais, mas é criada por elas; e, ainda, cria as
contradições na realidade efetiva a partir de seu automovimento descolado do
indivíduo existente. Essas contradições são vistas apenas à luz da totalidade
social, ainda que essa totalidade seja falsa por ser incompleta e não ser fruto
do indivíduo humano, sendo, antes, contrária a ele e subsumindo-o ao seu
automovimento cego. Inevitavelmente, tal sociedade só pode caminhar para sua própria
morte, ou, em outras palavras, para sua superação, pois traz em si o germe que
coloca uma contradição total – não simplesmente relativa e isolada – dentro de
si: ou ela se destrói por si só, destruindo sua base real mas relegada – o
humano reflexivo; ou ela é suprassumida, pois traz em si o fruto de sua negação
determinada: a exclusão total, que se transmuta em inclusão coisificada e
forçada. Esse movimento real é o mais patente e mais esquecido,
consequentemente, quando do trato frente ao problema real. Como o animal
neurótico que se automutila, tanto a ordem burguesa global quanto a peculiar
história brasileira tende a extinguir a si própria eliminando suas vísceras.
Mais um motivo, todavia, para a sustentação de uma situação que parece
insustentável.
*
* *
A farsa
histórica brasileira, que se repete constantemente de maneira sórdida, está
inscrita no “desenvolvimento do espírito”. Um problema estrutural, ainda que
não se possa falar em totalidade, se desenrola. Os desdobramentos históricos
não resolvidos, escamoteados, falsificados e transmutados em ideologia permeiam
o presente como uma sombra real e efetiva que assola o espírito dos vivos, uma
situação insustentável que se arrasta em lamento, que como o canto dos escravos
nas plantações – ou nas “plantations”
–, devoram e regurgitam a tragédia com toda força. Não se trata, portanto, de
se posicionar frente à situação como
querem os mais céticos e entusiastas. Isto é falso e, não obstante, autoritário
na medida em que confere realidade ao factual e nega a presença histórica do
espírito cambaleante. Posicionar-se frente à dualidade é desumano e cômodo, ao
mesmo tempo. Tão somente no desarranjo da situação, na desconstrução – ainda
que teórica – do estabelecido, da hipóstase do objeto é que se pode se dispor radicalmente
frente ao dado. Posicionar-se, nesse sentido, é não se acomodar em um dos
lados, mas combatê-los ambos, mostrar sua falsidade e superá-los. A violência
não está tão à vista: o que aparece como efetivo e fático, é a expressão da
positividade do capital e do desenvolvimento oblíquo histórico-social. A
violência é aquela do movimento da realidade efetiva, da história. A situação
não se resolve, e o problema não some, pelo grito de indignação – e tal grito
de indignação é, quando muito, desumano por si só. A barbárie está posta; e se
arrastará com toda força do espírito. A história atravessada, sórdida e cômica,
atesta isso. Antes de qualquer coisa, até mesmo antes de propor resoluções como
o Barão de Münchhausen – que sai da lama puxando-se a
si próprio pela cabeça –, é necessário que os mortos enterrem seus mortos[37].
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* Graduado em Filosofia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestrando em Filosofia pela Universidade
Federal de São Carlos – UFSCar.
[1] “Em alguma passagem de suas
obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens
da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu
de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” MARX,
Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
Tradução e notas: Nélio Schneider; prólogo: Herbert Marcuse. São Paulo:
Boitempo, 2011.
[2] Em 2006
houve o chamado “Levante do Dia das Mães” que, no dia 15 de maio, com a saída
de encarcerados por conta do dia das mães, colocou a cidade em “pânico” com um
toque de recolher que a fez, literalmente, parar. Mesmo assim, Paulo Arantes
afirma que foi a segunda vez que São Paulo parou, referindo-se à greve de 1917.
Cf. Duas vezes pânico na cidade. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007, pp.
295-311.
[3] A tese
adorniana sobre a “primazia do objeto” aqui é de suma importância. Para Adorno,
inclusive o sujeito deve ser apreendido em sua condição de objeto, mediado
socialmente. Cf. Sobre sujeito e objeto. In: ADORNO, Theodor W.. Palavras e sinais: modelos críticos 2.
Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, pp. 181-201. Além
desse outro texto é igualmente essencial. Cf. O ensaio como forma. In: ADORNO,
Theodor W.. Notas de literatura I.
Trad. e Apresentação: Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2003, pp. 15-45.
[4] Na
Introdução aos Grundrisse, Marx
mostra como a ordem da realidade não é a mesma ordem do pensamento, por mais
que o pensamento tente apreender a realidade e a ela retornar. Cf. MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de
1857-1858: esboços da crítica da economia política. Tradução de Mario Duayer,
Nélio Schneider (colaboração de Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman). São
Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. Há, igualmente, uma bela
tradução inglesa feita por Martin Nicolaus: MARX, Karl. Grundrisse: foundations of the Critique of Political Economy.
Tradução e prefácio de Martin Nicolaus. Londres: Penguin Books, 1993.
[5] Para uma melhor
e mais profunda abordagem que satisfaz a presente e pretensa análise Cf.
FERNANDES, Florestan. A Revolução
Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Prefácio de José
de Souza Martins. 5. ed.. São Paulo: Globo, 2006.
[7] Sobre o Mito da Democracia Racial, e suas consequências – apesar de não
serem satisfatórias as conclusões extraídas e alguns desenvolvimentos do texto
–, cf. GUIMARÃES, A. S. A.. Democracia
racial. In: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial.pdf, acesso em: 26 nov. 2012.
[8] Apesar de Gilberto Freyre, entre
outros, afirmar que a miscigenação ocorria dentro da Casa-Grande, no presente
texto esta tese é refutada tendo em vista que a miscigenação efetiva, aquela
que não rebaixa ou exclui totalmente o elemento miscigenado ou não-branco, não ocorre dentro da Casa-Grande, tanto
a efetiva quanto a simbólica.
[9] Cf. SANTOS,
Milton. Por uma outra globalização:
do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Aliás, fora o objeto de análise ser outro, assim como o contexto, tese muito
próxima da teoria marcuseana acerca do homem unidimensional. Cf. MARCUSE,
Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem
unidimensional. Tradução de
Giasone Rebuá. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979.
[10] Florestan sustenta a impossibilidade do negro se integrar como tal na
sociedade de classes. Pode-se dizer, aqui, que essa impossibilidade se dá
através de uma espécie de “dialética negativa” da condição histórico-social do
negro. Cf. FERNANDES, Florestan. A
integração do negro na sociedade de classes. 3. ed.. São
Paulo: Ática, 1978.
[11] Importa indicar
que esse problema também é efeito da rigidez do marxismo tradicional que, antes, retira a dialética do capital de
cena em uma leitura reducionista de Marx, baseando-se, principalmente, na
simples luta de classes. Para uma maior dimensão e aprofundamento dessa
problemática, cf. POSTONE, Moishe. Necessity,
Labor, and Time: A Reinterpretation of the Marxian Critique of Capitalism. In: Social Research, Vol. 45, nº 4, winter
1978, pp.739-88. E, do mesmo autor, Time,
labor and social domination: A reinterpretation of Marx’s critical theory. Nova York:
Cambridge University Press, 1993. Para uma dimensão da luta teórica contra o
reducionismo da teoria marxiana, cf. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética
marxista. Tradução: Rodnei Nascimento; revisão: Karina Jannini. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. E, também, cf. KORSCH,
Karl. Marxismo e filosofia. Apresentação
e tradução José Paulo Neto. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008. Além, é claro, dos textos do
próprio Marx.
[12] Somente muito
tardiamente, principalmente a partir da década de 1970 em diante – ainda assim
de forma tímida – começou a se cogitar a ligação prática entre o “problema do
negro” e a exclusão capitalista. Problema que continua até hoje. Por um lado, o
movimento negro leva em consideração o “sujeito empírico”, o negro real e
existente fático, não o tomando como categoria histórica e como problema
social. Por outro lado, as esquerdas ainda necessitam de um “setorial de
negros”, na medida em que a problemática se isola, já que parece ser, de fato,
um “problema à parte”. Nem aqueles que lutam conseguem suprimir a
“especificidade” da situação, tendendo ainda a sectarizar o “elemento negro” e
seu problema como um apêndice, ou como um problema a ser tratado para além da
situação de classes, esta não importando.
[13] O que aqui
talvez seja polêmico, porém, grosso modo, real, é que a ditadura militar “não
chegou” às periferias e à favela. Todo o problema da ditadura só foi percebido
por aqueles que de fato eram beneficiários da ordem ou mesmo contra ela. Os
“marginais” estavam, todavia, para além dela. Para esses excluídos por
natureza, a militarização – mais uma vez! – da sociedade era apenas a extensão
para o restante daquilo que, grosso modo, já se vivia.
[14] Bezerra da Silva é o grande
porta-voz do morro nesse período. Para uma maior dimensão, cf. Bezerra da
Silva: Onde a Coruja Dorme. In. http://www.youtube.com/watch?v=ItdIRrJjZUc
[16] Sobre “dessublimação
repressiva”, confira a interpretação que os pensadores frankfurtianos fazem, a
partir de Freud e Marx, da ordem burguesa da metade do século XX. Cf. MARCUSE,
Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem
unidimensional. Op. cit.., especialmente o cap. 3 da
primeira parte. E, também, MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud. 7. ed.. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
[17] Vide a Coleção Estado de Sítio, organizada pela Editora Boitempo e
coordenada por Paulo Arantes com textos que tratam da problemática a partir da
virada de milênio.
[18] Cf. MUNANGA,
Kabengele. Todos no Mesmo Barco. In. Revista
in Tolerância: Laboratório de Estudos sobre
a Intolerância – LEI/USP,
vol. 1, nº. 1, jan.-jun., São Paulo, 2010,
pp. 56-69.
[19] Um “Estado laico e democrático”,
por exemplo, que não adere a nenhuma religião e, além do mais, saúda a
liberdade de expressão como uma de suas grandes características, deve deixar o
ódio e a intolerância religiosa tomar conta do debate público? É o que acontece
por ora no Brasil com a questão referente à homossexualidade, como um dos
exemplos. Um Estado que não se coloca, já que não tem como se postar diante de
uma discussão e de uma prática na qual ele se hipostasia a priori, não é um Estado laico e democrático. Antes, é uma espécie
de Estado “abstrato”, apto a aceitar
quaisquer embates e, assim, ficando de mãos atadas. De certa maneira, a
anulação política do Estado por outras forças (economia, principalmente) é um
dos problemas que o levam a inação. Quanto a isso, é interessante o texto de
Habermas – apesar dos pesares – sobre a “constituição da Europa”. Cf. HABERMAS,
Jürgen. Sobre a constituição da Europa:
um ensaio. Trad. Denilson Luis Werle, Luiz Repa e Rúrion Melo. São Paulo: Ed.
Unesp, 2012.
[20] Além da exclusão institucional a
que o elemento preto foi submetido, a força violenta da exclusão que recobre e
dá o tom do racismo à brasileira não é o da eliminação física; antes,
elimina-se o espírito e reduz-se o elemento preto ao barbarismo da condição
inumana do objeto de chacota, inclusive para os próprios pretos, que não se
veem refletidos nesse processo. Basta, como exemplo simples, conferir o “humor”
brasileiro e o seu elemento central; ou mesmo as telenovelas. Ainda, se se
quiser aprofundar, a maneira como as religiões de matriz africana e as
vertentes culturais que não foram assimiladas são tratadas mostra o quanto o
“perigo da diferença”, criado como ideologia histórica que é a história do
Brasil, é permanentemente desconjurado e tentado a ser eliminado.
[21] De certo forma,
as tentativas da antropologia e das teorias raciais hoje se aproximam muito de
um debate em torno da ideia de “esfera pública”, ainda que grosso modo,
assemelhada à teoria habermasiana de esfera pública, debate público, democracia
etc.. Cf. HABERMAS, Jürgen. Mudança
Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Trad. Flávil R. Kothe. 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. Também, HABERMAS, Jürgen. Conhecimento
e interesse. Introdução e Tradução de José N. Heck. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1987; e, HABERMAS, Jürgen. Técnica
e ciência como “ideologia”. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
2009. Isso, na presente interpretação, constitui um problema na medida em que
relega, mais uma vez, a primazia do trabalho alienado e da constituição
burguesa, do fetiche capital e da reificação. Uma esfera pública que trate de
cidadãos sem indivíduos é vazia de conteúdo por si mesma, na medida em que
aqueles que participam dela – os indivíduos – estão subsumidos à ordem abstrata
do capital. No entanto não se quer problematizar isso aqui, fugindo ao tema
central abordado, ainda que seja importante pontuar a necessidade de uma
guinada em direção à tentativa de compreender, mesmo que fragmentariamente e
tendo em vista as peculiaridades históricas, a totalidade do capital – falsa –
e uma teoria do indivíduo e da individualidade como objeto mediado e suprimido
numa sociedade abstraída de si.
[22] Grosso modo, essa ideia de se
criar outro tipo de sociabilidade dentro – e, ainda, majoritariamente,
subsumida pela sociabilidade oficial, é tratada por Oskar Negt num pequeno
texto. Cf. NEGT, Oskar. Formas de decadência da esfera pública burguesa e o
problema de uma esfera pública proletária. In: ___. Dialética e História: crise e renovação do marxismo. Trad. Ernildo
Stein. Porto Alegre: Editora Movimento, 1984.
[23] É necessário que não se confunda
o “instintivamente” aqui colocado com algo natural e
intrínseco ao ser humano em geral. Aqui, os instintos também sociais, isto é,
reificados e equalizados com o movimento abstrato do fetiche do capital. É,
grosso modo, a externalização de instintos previamente equacionados com a
reificação social – em certo sentido, é dessublimação
repressiva.
[24] Cf. HOBBES,
Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder
de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os
Pensadores). E, também, cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social: princípios do direito político. Tradução de
Antonio de Pádua Danesi; revisão da tradução Edison Darci heldt. 4ª ed.. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. Especialmente o que tange à passagem do estado de
natureza ao estado civil e suas consequências.
[25] Vide, por exemplo, as “políticas
compensatórias” e “assistenciais” da gestão federal de Lula, além da
massificação inclusiva pela ordem de consumo e da pseudo-mobilidade social –
tão profanada pelos entusiastas e pela grande mídia.
[26] Segundo uma
pesquisa feita pelo Datafolha, divulgada em novembro deste ano, 43% dos
paulistanos considera que policiais que matam “bandidos” devem ficar impunes.
Ou seja, isso demonstra o quanto ser “fora-da-lei” depende de um ponto de
vista: de qual lado se posta. E, ainda, o quanto, tacitamente, se aceita a
violência descabida e factual, dependendo apenas do lado do qual provém e de
“quem” julga, no seu íntimo, o “bandido”. A sede de justiça imediata e
irracional que emana do senso comum e se une, como irmã mais velha, à vingança
e ao sadismo, é, de certa forma, resultante de um processo histórico bruto, no
qual todas as relações são tratadas como “exceção” e prostradas para além de
qualquer parâmetro racional ou racionalizável, legal ou ético. Cf. Para 43%, PM que mata
bandido não deve receber punição, In: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1190938-para-43-pm-que-mata-bandido-nao-deve-receber-punicao.shtml, de novembro de 2012.
[27] Não só entre os presos, mesmo
que seja o mais evidente e o “estopim” do processo. Também se trata de, além,
“organizar a vida” fora das prisões, o “movimento” etc., dos “bandidos” e, de
certo modo, de parte das periferias.
[28] Quanto a isso, remeto à
excelente e elucidativa entrevista com quatro pesquisadores sobre o assunto: 16 perguntas sobre o PCC, In: http://blogs.estadao.com.br/crimes-no-brasil/2010/01/23/16-perguntas-sobre-o-pcc/, de janeiro de 2010. O PCC, segundo eles, tinha no começo uma
hierarquia no qual alguns mandavam e outros eram “lagarteados” – feitos,
basicamente, de massa de manobra.
Enfim, quando da derrubada desses, em fins de 2002 e início de 2003 – dizem os
pesquisadores –, a organização se democratiza. O salve geral é um reflexo disso: grosso modo, não é uma “ordem” de
um superior, mas uma aceitação refletida e reflexiva de certas condutas e
objetivos, imediatos principalmente. Essa organização não tão hierarquizada –
na qual não há, diferente do que prolifera a grande mídia, um chefe ou um grupo
que comanda –, cabe ressaltar, atende muito mais diretamente a necessidade
histórica de organização dos “bandidos” (bandidos, aqui, não é pejorativo). Uma
ordem rígida e que só “manda quem pode,
obedece quem tem juízo” é quase um reflexo da ordem do Estado e, desse
modo, não atenderia a necessidade de outro tipo de organização, latente e
historicamente requerida. Pautado em quatro diretrizes basilares – “Paz,
Justiça, Liberdade” e, após a guinada, “Igualdade” – o PCC se estrutura de
forma a seguir crescendo e englobando vários âmbitos da vida social relegados
pelo Estado.
[29] Aliás, o rapper Dexter,
ex-presidiário saído a pouco do confinamento, relata como a situação nas
prisões melhorou, no que tange ao assunto ora tratado, substancialmente. Aquilo
que no fim da década de 1990 a música “Diário de um Detento”, do grupo Racionais MC’s, relatava, transmuta-se
de forma significativa. Cf. a entrevista com Dexter: O resgate do soldado Dexter, In: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-resgate-do-soldado-dexter,964340,0.htm, de novembro de 2012.
[30] Exemplos: 1. Seu José (fictício),
dono de um pequeno comércio próximo a uma favela na periferia de São Paulo, não
é mais assaltado vez ou outra. Ele tem uma espécie de proteção por conta da organização do “crime”. E mesmo quando é
assaltado, sabe a quem recorrer e tem confiança que aquilo que lhe fora
espoliado será ressarcido, devolvido e o “sujeito” que o cometeu será punido. 2. Dona
Maria (fictícia), moradora de um barraco em alguma favela, não se depara
mais, vez ou outra, com um cadáver em seu beco ou mesmo em sua porta, ao
amanhecer quando sai de casa para trabalhar. 3. Para qualquer morador da periferia, especialmente homens jovens
e negros, não é mais tão inseguro andar pelas ruas à noite – ao menos que se
depare com uma viatura da polícia, ele sabe que estará seguro. Isso não quer
dizer que a violência não acabou. Muito pelo contrário! Contudo, para quem vive
– ou tenta sobreviver – na periferia, a situação fica ruim, quase que só e
principalmente, por dois aspectos: a) por causa dos “nóias”; ou, b) por conta da presença da polícia.
[31] Cabe
lembrar que “crime”, “Partido”, “irmão”, “bandido”, “missão” aqui estão entre aspas, pois, é
assim que se referem a si mesmos. Aliás, isso é lugar-comum para qualquer jovem
da periferia, faça ou não parte do “crime”.
[33] Sobre isso, cf. MAQUIAVEL, Nicolau.
O Príncipe. Tradução de Maria Júlia
Goldwasser; revisão da tradução de Zélia de Almeida Cardoso. 3ª ed.. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.