“Mata!
Mata!” Este é o lema explícito do ódio à flor da pele. Ódio, este, esvaziado de
seu significado: torna-se o bem supremo dos bons. Ainda que não seja dito pela
boca de alguns, é o pensamento mais íntimo, o desejo mais perverso e
sorridente: é o que se quer, ainda que secretamente, ainda que não exprimam
publicamente este desejo, por algum resquício de certo pudor (meio enviesado)
ou por timidez.
Mas
este ódio, esvaziado de significado imediato, ganha um significado complexo
implícito, ideológico. Ele recorta, quase que por si só, quem deve ser odiado.
Relativo, o ódio não tem fixidez com qualquer finalidade: se sua finalidade é a
morte em um determinado contexto, é a vida em outro. Concomitantemente, o ódio
é o elixir mais elevado da vida: a morte do indesejado – que é, inversamente e
que o completa, o mais fortemente desejado – é relativizada. O ódio é bom. Ele
alimenta a vida, exprime-a, sustenta-a. Ainda que vazio de um conteúdo
imediato, ele se preenche pelo recorte livre e autônomo do ser-de-ódio: aquele
ao qual é endereçado o ódio é muito bem escolhido, ainda que à revelia daquele
que odeia. Isto é explícito – talvez não para aquele que odeia e não é o alvo
público do ódio. Quem deve morrer é como gado para corte: já está marcado desde
o início do processo. Assim o significado complexo do ódio adquire novos
contornos: no imaginário popular coletivo, o odiado tem classe social, cor,
sexualidade, religião – mesmo que alguns desses fatores possam, também eles,
ser relativizados conforme o contexto e o momento de disparo do ódio.
Aquele
que odeia não tem face de mau. Pelo contrário, é o sujeito simpático, muitas
vezes recatado e religioso que mora ao lado. É o mesmo que dá bom dia aos
vizinhos e sorri às crianças quando sobe a rua. Ele nem mesmo cogita que odeia
algo, alguém, ou mesmo um grupo. Não cogita que faz parte da massa que odeia o
ódio e odeia odiar aqueles que não eles: ele se considera o indivíduo comum. No
entanto, o indivíduo comum é o mesmo que quer que todos sejam “indivíduos comuns”:
todos precisam ser como ele, caso contrário, o ódio é como uma exigência que o
outro faz a ele. É o indivíduo comum que se revolta contra as mazelas que o
sistema cria. Ou melhor: que se revolta com as mazelas que dizem a ele que
existem. Se existem ou não, se são daquela forma ou não, se os “culpados” são
mesmo aqueles ou não, pouco importa. A imagem do individuo que odeia é aquela
do indivíduo que chega em lugar lotado e vê uma aglomeração mais um menos
linear: sem saber do que se trata – se é que se trata de algo; e mesmo se se
tratar, não sabe e nem se importa se esse algo lhe interessa – ele entra na
“fila” e ainda briga para manter seu lugar e não ser tapeado por algum
“fura-fila”. O ódio faz parte dele como seu DNA faz parte de seu ser genético:
pouco importa como o DNA é, qual sua estrutura; importa, antes, que ele mantém
o corpo e todas suas funções em seu funcionamento perfeito, dá as
características “imutáveis” do indivíduo e sua personalidade como um todo. O
ódio faz parte dele pois ele nem sabe o que faz: apenas faz.
A
morte, tabu social, somente choca, ainda que momentaneamente, quando atinge
diretamente o indivíduo. Caso contrário, ela é como o brigadeiro de padaria:
gera um prazer imensurável no momento, depois cria um desejo incontrolável de
“quero mais”. Não importa qual, como, nem as condições que rodeiam o indivíduo
(nem aquelas que permeiam a padaria e o brigadeiro): apenas se quer mais e
mais. A eliminação do brigadeiro é o objetivo, tal como é o objetivo a
eliminação do altamente in-desejado. Diz,
consigo mesmo, que brigadeiros são péssimos e que quanto mais comer e mais
rápido, mais eles serão eliminados e deixarão a sociedade livre dessa praga. O
que ele não percebe, pois não olha para trás, é que o dono da padaria sorri
loucamente enquanto açoita o confeiteiro para que produza, em progressão
geométrica, mais e mais brigadeiros. O lucro do dono da padaria – e o mais-valor pela alta exploração do
confeiteiro – aumentam também em progressão geométrica pelo ódio aos
brigadeiros. Quase todos – exceto o dono da padaria – começam a odiar os
brigadeiros. “Morte aos brigadeiros!” – é o que dizem.
O
ódio passa a receber elogios, ainda que tímidos, pois nunca tocam em seu nome
diretamente. Canções de louvor são feitas a ele. Templos sagrados são erguidos.
E os já existentes transmutam-se para receber a peregrinação em seu nome, que
quase nunca é dito. Continências, reverências, coroas de louro mergulhadas em
sangue. Altos muros, cercas elétricas, segurança privada. Vidros blindados e medo.
Muito medo. O ódio causa medo. O medo, ainda que um sem-sentido, gera ódio. O
resultado é uma grande Ode ao ódio.
A
padronização da existência cotidiana sustenta o ódio como colunas centrais. De
um e de outro lado as exigências são as mesmas: morte aos que querem ódio –
contraditoriamente.
Todos,
nesse balaio, querem seus super-heróis – ou querem eles mesmos ser
super-heróis. O problema, que não se pensa, é que todos os super-heróis a fim
de salvar a sociedade, os bons e seus bons costumes, a socialidade, a ética, a
ordem, a aparência e etc., primeiro destroem tudo: destroem completamente a
cidade para salvar a cidade – ou salvar seja lá o que restar, se é que restará
alguma coisa. Mas, por fim, ainda é importante lembrar que o ódio não tem a
intenção, ainda que não saiba disso, de destruir aquilo que é odiado: a
destruição deste seria sua própria destruição (pelo menos pela lógica). Ele
quer, acima de tudo, manter a si mesmo e se fortalecer. O ódio gera a horda que
quer destruir e, como uma Ode, ele ama e é a alma gêmea daquilo que odeia.
Subsolo!