segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Processo

     A dialética, aquela inaugurada por Hegel, trouxe algo que, se já não explícito na história do pensamento ocidental, foi colocado na ordem do dia. Não se trata da dificuldade intrínseca aos textos hegelianos, tampouco a forma peculiar – e extramente complexa (e difícil) – de escrita e exposição de Hegel. Antes, diz respeito a algo que não saiu mais da ordem do pensamento crítico e altamente criterioso sobre a realidade efetiva (aquela que se dá na história). Este algo – antes que se diga o que é – foi o centro da teoria de Marx e dos pensadores frankfurtianos da primeira geração (Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, especialmente). É o centro da retomada dos textos de Hegel pelos contemporâneos. O “algo” é mais que um conceito concreto ou uma categoria crítica; é mais que uma ideia (ou Ideia, no sentido próprio de Hegel). E está não nos conceitos e categorias, mas na forma como podem aparecer, na forma como podem ser construídos pelo pensamento que reorganiza a realidade – reorganiza a realidade no âmbito do pensamento para a compreender e incidir crítica e praticamente sobre ela, não que coloque uma realidade “alucinada” que surge, ex-nihilo, no pensamento comum e se sobrepõe, autoritariamente, à realidade. Ele é, então, o fundamento do método dialético, sua razão de ser. Com ele vem junto, sem poder se desligar – ainda que alguns consigam, de um modo questionável, separar ambos –, outro elemento, tão basilar quanto. Quando relegados, um ou outro, ou ambos conjuntamente, causam estrago na teoria – e na prática, mesmo àquela que visa transformação efetiva da realidade.
     O método dialético não admite menos que se pense em conjunto uma “dada” situação. Pensar em conjunto significa refletir por e dentro do processo. Somente é possível pensar dialeticamente se se tomar o processo da história. Isto não quer dizer, por um lado, que se tenha de levar em conta toda a história, abstratamente; tampouco, por outro lado, que a história da forma como é transmitida pelo pensamento dominante nas ciências, também elas dominantes, seja satisfatória. Nem, é preciso lembrar, levar em conta uma “história singular” – de um indivíduo ou de uma coisa isolada – pode fazer chegar a alguma consciência concreta do que a coisa poderia significar. Com isso, é preciso considerar o outro lado basilar do método: a totalidade. Não é nada fácil captar a ideia do que significa a totalidade. Todavia, cabe tentar desfazer alguns equívocos para, assim, arriscar colocar algumas pistas do que poderia – e deveria – significar. Em primeiro lugar, a totalidade não é um todo harmônico, como algumas teorias – e pode-se pensar na sociologia de E. Durkheim – colocam: um corpo que depende de todas as partes para funcionar, sendo que uma funcionando mal afetaria todas as outras. Pensar dessa forma é equívoco na medida em que pensa o todo como composto por partes (do todo) que seriam somente em função do todo, apesar de terem função própria. O todo seria, ainda, somatório das partes. Aliás, este é o segundo equívoco: pensar o todo como somatório de partes. Como somatório, cada parte seria em função do todo. Contudo, isoladas do todo poderiam ser “estudadas”, perscrutadas, compreendidas como um “todo” menor, que significa a si mesmo isoladamente – como um órgão do corpo, por exemplo, que pode ser isolado e estudado a fundo em suas composições e funções, independente do corpo, ainda que necessite do corpo, o “todo”, para funcionar e ter vida plena. Totalidade dialética, portanto, não é nem somatória de partes singulares ou particulares que possuiriam função própria mesmo isoladamente, nem, também, algo harmônico e concreto, que poderia ser apontado (por ex.: “‘ali’ está a totalidade”) – e, assim, ela poderia se diferenciar das partes, ainda que fosse a soma destas.
     Perceba-se que não é nada fácil pensar a totalidade. Ela não é nem uma coisa, nem outra (das expostas até aqui). Porém, o que seria então a totalidade, em sentido dialético? Ela não é concreta, mas também não é metafísica. É abstrata, sim, no entanto não no sentido do “devaneio”, da ideia sem bases ou sem ancoragem na realidade – não é, em termo vulgar: “brisa”, como quando alguém diz: “fulano está abstraindo”, querendo significar que está “viajando”, criando ideias sem sentido e sem nenhuma ancoragem na realidade efetiva, ou que “fulano” estaria tirando todas as qualidades de uma coisa para dela reter o essencial (tal como em Aristóteles, também vulgarmente, retirar-se-ia, abstraindo, os “acidentes” para se reter a “substância” de uma dada coisa). A totalidade dialética é abstrata no sentido em que não pode ser apontada, nem pode ser pensada por si mesma. Ela não é um todo perfeito, e é contraditória consigo mesma – por isso, também, dialética. Não pode ser pensada por si mesma: mas as “coisas” particulares e singulares podem e devem, segundo o pensamento dialético, ser pensadas por e através dela. Entrementes, fica uma questão: por quê? Por qual motivo dever-se-ia pensar as coisas por meio da totalidade? Uma tentativa de resposta poderia versar sobre o seguinte: a totalidade é de tal forma abstrata que ela está nas particularidades e singularidades (nas situações e nas coisas individuais). Não está como “uma parte”, que estas coisas seriam: partes de uma totalidade. Pelo contrário, a totalidade está toda em cada particularidade, em cada situação, em cada “fato” ou cada pedaço da realidade. A “coisa” – situação, particularidade e etc. – é, ela mesma, a totalidade tornada concreta (de alguma forma), ainda que não perca suas características de coisa particular. Antes de tentar deixar isto concreto e fazer a crítica, pode-se esclarecer algo que por muito tempo ficou obscuro, pelo menos a partir da leitura aqui levada a cabo. Quando Marx dizia, em sua teoria, que o fundamento da sociedade (moderna; capitalista) seria o trabalho alienado (a produção de mercadoria; em última instância, a produção de valor e capital), ele estava alertando para uma forma que domina por dentro toda a sociedade, não, como entendeu uma parte do marxismo tradicional e os não marxistas, que o trabalho diria respeito à forma fabril – fordista ou taylorista – e se reduziria ao “chão de fábrica”. O trabalho é a forma da realidade. Para ficar “menos obscuro”: a forma-trabalho, a determinação das coisas pelo tempo e por seu “valor” (de uso e de troca, pelo tempo “de sujeito humano” nela contido), dá-se em todas as coisas, desde o emprego fabril até ao lazer e à vida íntima (aliás, não foi sobre isto que Benjamin, Marcuse e, principalmente, Adorno teorizaram tanto? Não foi pensar que falta de experiência – unidimensionalidade, segundo Marcuse – se dava pela configuração que todas as experiências tomavam como forma sempre-igual­ – para usar, agora, o termo de Adorno – da própria experiência? Não era para dizer que a multiplicidade da experiência (Erfahrung) havia se reduzido ao resquício, ao “quase nada” de autonomia do indivíduo, à vivência (Erlebnis) como experiência substitutiva do capital – agora sujeito abstrato dominante de toda a sociedade, não só da economia?). A totalidade social – ou o núcleo fundamental da totalidade para Marx: trabalho alienado, dialética trabalho-capital – determina por dentro, não simplesmente “colonizando”, todas as coisas, todos os momentos da sociedade e das relações sociais e humanas. Uma totalidade deste tipo é, por um lado, totalidade alienada, alheia aos humanos; por outro, coloca suas determinações totais em todos os aspectos e situações singulares.
     Pois bem, pensar “qualquer coisa” que seja sob uma sociedade na qual o sujeito primordial não é humano – ainda que produzido e abstraído dos humanos –, e este sujeito abstrato é como o espectro total que toma conta de todas as situações, que está lá ainda que não se queira, é pensar por meio do processo histórico e da totalidade social. De um lado, não é possível pensar fato: um fato surgiu aqui, não tem passado nem história. Isto leva, inevitavelmente, a jogar toda a “culpa” nas costas do indivíduo ou da coisa isoladamente, como se eles tivessem feito surgir algo novo ali, a partir de suas capacidades e vontades próprias e autônomas. O fato tem história, é ele mesmo história. Sucintamente, há um por que, um motivo (ou melhor: múltiplos) que o fez chegar até ali. E esta história não pode ser, ela também, isolada. Para ser simples: há toda uma multiplicidade de “fatos” que engendraram, de uma e outra forma, aquele fato. Dito dialeticamente: as determinações sociais, psíquicas e etc., estão ali presentes, todas, de uma só vez. É o poder da totalidade de se aparecer toda, de uma só vez.
    Quando não se pensa em processo, mesmo agindo criticamente, está-se fadado a ficar preso na dicotomia imposta pela própria “situação” – ou melhor, pela ideologia, que é a própria determinação da totalidade; que é ela, a totalidade. Dicotomias como “justo-injusto”, “preto-branco”, “racismo-coitadismo”, “machismo-feminismo” e etc., já colocam, sem mesmo que o crítico perceba, uma forma de resposta implícita. Esta forma é tão determinante que até mesmo as respostas mais criativas já estão dadas antes (a priori), e são incorporadas ao sistema – às variações da totalidade, já que uma totalidade desse tipo não é estática, ainda que seja sempre totalidade: incorporação e reforço da ideologia. Pensar “por fora” do processo dialético é cair nas malhas do sistema. Por ex.: no quiproquó em cima do “Oscar 2016” – boicote-coitadismo, mérito-demérito e etc. –, uns disseram que os negros não tiveram mérito por isso não deveriam reclamar, já que aquilo ali é para os melhores; outros disseram que não pode haver algo tão excludente, tal como o Oscar está sendo: os negros deveriam, mesmo em pequena parcela, estarem representados; outros ainda disseram que não há oportunidades (e espaços), em Hollywood, de filmes para negros (ou de filmes sobre negros). Quem tem razão? Na lógica binária, todos. Todos estão certos partindo da premissa que todos aceitam algum (ou mais que um, ou todos) dos pressupostos: pressuposto a) em Hollywood deve haver filmes voltados para negros; b) os negros não têm mérito, pelo menos partindo dos papéis que recebem e dos filmes que fazem; e, c) o Oscar não deveria ser tão explícito em seu racismo. O que há de errado nesta forma de pensar? Há falta de pensamento dialético: um déficit que assume os pressupostos da totalidade (alienada) e julga o “fato” como “O Fato”: isolado e através do binarismo dado. Os negros são excluídos, sim, mas não no Oscar: no e durante todo o processo histórico de constituição de uma categoria que se colocou sobre as demais como “filme”: filme (bom, bem produzido e etc.) é aquilo; o resto é derivado. Assumiu-se o pressuposto da indústria cultural, que põe uma forma dura e estanque como a forma; assumiu-se que os negros não têm mérito – e muitos não têm mesmo, pois são jogados para atuarem naqueles filmes de segunda e terceira categorias (categorias, aliás, postas e hierarquizadas por Hollywood). O que não se contestou é que os negros são o lado b não só no Oscar, mas na sociedade: eles são rebaixados, não possuem mérito, não só no Oscar, mas nesta sociedade que impõe a ideia de mérito como natural; exclui a partir dela. A reprodução da premiação é aquela que reflete e reorganiza a sociedade: reflete na medida em que assume o pressuposto que os negros são inferiores, ainda que sejam “nossos amigos” e sejam até “bons atores”; reorganiza na medida em que reforça a inferiorização, em sentido amplo. Não é só em Hollywood que os negros estado-unidenses são tratados como subcategoria. Os negros não têm méritos porque o mérito não é para eles, a forma dos filmes não é para eles, e a lógica da sociedade não serve para que eles se elevem de sub à categoria plena. Criar algo que fizesse “filmes para negros”, por mais boa vontade que isso pareça representar, seria assumir a lógica binária na qual há uma categoria que determina o andamento de todas as demais e que não aceita a todos; portanto, que todos os não-aceitos criem sua própria categoria, baseada na categoria-mãe, e assumam sua posição. Ou seja: aceitem a sociedade dividida, “é natural que seja assim”, e assumam seu lugar predeterminado na “seleção natural” do mérito capitalista. Fazer algo “para negros” é assumir a sociedade como ela é, como dada. Assumir que os negros devem participar do jogo binário da premiação, na qual se inferioriza quase todos ao elencar alguns como melhores, é aceitar que a sociedade deve, sempre, se dividir e aceitar a divisão “darwiniana” que é imposta não pela seleção natural, mas pela seleção da forma-capital. Excluir a totalidade da reflexão sobre um “fato”, e isolar este, é assumir “o fato” como fato, isto é, como algo imutável e que já estava dado que iria ocorrer e, ocorrendo, deve ser, ainda que contestado, aceito: contestado parcialmente, em sua superfície e não em sua substância. Não que seja mal contestar o Oscar, sua fórmula e etc.. Todavia, não se trata de uma crítica efetiva: a crítica é “por que não estamos lá? Queremos estar (Star)!”, ao invés de: “não estamos lá. Esta forma deveria ser superada pois reflete algo maior que ocorre na sociedade”. Querer “estar lá” é assumir o sistema, mesmo que “ache” ser seu crítico mais ferrenho – aliás (e aqui sei que estou arrumando “briga”, há tempos, com muitos companheiros de caminhada), não é isso que acontece com o Rap brasileiro? Não foi o que aconteceu com o Samba? [Adendo: e não é uma jogada da grande mídia que mata dois, ou até mais, coelhos de uma só tacada ao colocar uma “cotinha” de pretos no Big Brother, por exemplo? Uma parcela dos negros menos radicais irá assistir porque se sentem “representados”; outra parcela, mais crítica, assistirá para criticar, para dizer de todo o racismo da grande mídia e tudo o mais. A grande mídia vai apenas... gozar! Sim, gozar no sentido mais amplo. E tudo isso ao passo que deveria causar grande medo e repulsa o simples fato de haver um programa com aquele nome.]. Ora, é claro que é impossível viver sem se adaptar, pelo menos em algumas partes, ao sistema. Mas isto não deveria ser um rechaço, ainda que inconsciente, de outras formas potenciais possíveis. Não deveria ser um assumir como natureza. Isto nos diz que Hollywood deveria ser criticada não por excluir alguns; deveria, sim, ser criticada por ser Hollywood: a crítica deveria ir à forma, não somente ao conteúdo.
     O déficit dialético do pensamento faz com que se aceite o fato, mesmo que seja ao criticá-lo duramente. Pois aceita o fato, e pensa o fato – desligado da totalidade; que confere sentido pleno a si sem necessidade “externa”. Desconsiderar a totalidade é uma perda na medida em que se aceita o capitalismo total – suas formas e designações mais fortes e abstratas – ao criticar o “capitalismo” limitado e incorporado no fato. Não se percebe a totalidade do fato e, portanto, não se chega ao fato propriamente dito: fica-se na superfície, na ideologia, naquilo que o sistema permitiu que se criticasse. Enquanto o sistema permite que se critique algo, é por que tudo que venha a ser criticado, sob a égide da permissão, já está incorporado pelo próprio sistema: uma manifestação que tenha sua rota indicada pelo Estado, não deveria acusar o “golpe” na democracia que está sendo dado pelo Estado; antes, deveria perceber que não há democracia na medida em que ela tem limites definidos, que ela designe como a “cidadania” será demonstrada. Dialeticamente, não há democracia – e a constituição de nossa totalidade e nosso processo histórico atesta isso veementemente. Pensar em democracia quando o processo já está “concluído” é um disparate – aliás, outra briga que arrumo aqui: o prefeito “democrático” criticou a ação da PM nas manifestações. Ele só se esqueceu de que aquilo é resultado do processo iniciado também por ele, corroborado, no plano do sistema e da tecnocracia por ele abraçada, por suas ações e decisões “políticas antipolíticas”. Ele se esqueceu de que numa sociedade democrática – tal como ele (deveria pensar) e Habermas, por exemplo, pensam – a discussão se dá antes da decisão, não com lamentos e “lágrimas de crocodilo” depois de gente espancada, presa e etc. – aliás, nem depois ele assumiu a discussão e o debate público! Discutir o processo – isto é, o tipo de cidade que os cidadãos querem – não se quer; culpar o fato, e com ele a “burocracia técnica”, é ato nobre do prefeito. Em última instância, a decisão do processo é do sujeito histórico abstrato, é daquele que decide sobre a sociedade, pois é a sociedade. E toda sua “decisão” aparece em cada momento particular com força total: é a totalidade social capitalista, suas determinações, sua violência, sua manutenção a qualquer custo, que aparece ali quando o “corro come” nas costas dos movimentos sociais e quando o prefeito “decide algo”– e nem adianta falar do governador pois este é assumidamente capitalista; quando, antes disso, aparece ali, na declaração de que é “impossível” baixar as tarifas – que traz implícita em si que é possível e conivente aceitar cartéis, máfias, lucros exorbitantes e etc.; aparece ali na construção da estrutura social que reproduz as designações históricas: as divisões que se formaram na história do país agregadas ao “boom de modernidade” (=capitalismo e modo europeu de vida) trazido no início do século passado.

     Um fato não admite menos que um processo. Ele não se isola, não pode ser lido à revelia da totalidade. Isto feito, perde-se em crítica e se aceitam determinações fundamentais como se fossem natureza. Um processo ideológico não admite menos que fatos isolados que o justifiquem e corroborem. Isto leva, inevitavelmente, ao monstro invisível da totalidade: está em tudo, controla tudo, engole tudo sem nem mesmo aparecer, como se não existisse. Neste sentido, qualquer crítica ou qualquer prática necessita de uma teoria crítica, de um viés dialético, para que não sucumba. E necessita, além do mais, de coragem – tal como dizia Kant – para ser esclarecida e não ter o “rabo preso” com quem quer que seja – “rabo preso”, cordialidade, tal como dizia o pai do Chico que, aliás, é tão idolatrado por eles (também gosto, mas dos discos. Porém isto é outra história...).

Subsolo!