terça-feira, 31 de maio de 2011

Aporias da Democracia [fragmentos I]

Por muito tempo fui levado a crer, logicamente ou por força dos acontecimentos, que a tal da Democracia Moderna era - ou seria, se efetivada plenamente (utopia) - a melhor forma de se organizar uma sociedade: a nossa. Hoje, no entanto, não sou tão convicto desse suposto axioma, blasfemado por todas as bocas, sórdidas ou não. Axioma que se tornou aporia: a democracia é, terminantemente, algo contraditório e ideológico. Por um lado, é o desejo de governo de todos, mas sem que, desses todos, nenhum queira ser governado. Por outro, é a tirania da maioria (suposta) que esmaga as minorias em favor de um bem público(?)[1] maior. Neste sentido acaba-se por jogar o indivíduo isolado contra a sociedade, esmagando-o. Mas, para o bem ou para o mal, a democracia nunca existiu de fato, pelo menos não como blasfemam os outros. É ideológica, sim, na medida em que não são claros seus limites, fazendo-se passar por 'ilimitada', sem extremos, conferindo autonomia, liberdade e poder a todos. A falsa consciência, aqui, está em se apreender a democracia como garantia de direito às liberdades e a autonomia da vontade: o sistema ou modo de 'relacionamento' que poria, por excelência, o Homem no caminho da maioridade. Este tipo de discurso falacioso faz com que as escolhas sejam 'livres', tais como a 'escolha livre' unidimensional que descreve Marcuse (One-dimensional man): escolhe-se - entenda-se: age-se - cerceado por um universo estabelecido e naturalizado, dado do exterior, mesmo em sua aparência plena de universo aberto.  

A democracia, que deu a todos acesso à tudo, fez com que o indivíduo se fechasse em seu próprio universo empobrecido espiritualmente, mas riquíssimo materialmente, exuberante em aparência. A modernidade trouxe consigo essa façanha: criar, pela primeira vez na história, um sujeito autônomo e, logo em seguida, destruí-lo por completo, deixando, porém, sua aparência intacta. Esta aparência faz o tal do 'indivíduo massificado suposto sujeito' se sentir dono de si, relegando, ou mesmo se despojando da relação com o outro. O livre acesso a tudo manifestou no indivíduo massificado plenitude em seu ser (reificado), possibilitando-o obter, alcançar e manter tudo de que precisa por si, sem a precisão da relação: tornou-se uma ilha auto-suficiente. O que ele ainda não descobriu é que sua ilha é feita de areia e nada nela floresce. O desejo de um poder da Demo se satisfaz em sua própria ausência: basta apenas acreditar que se tem poder, não é necessário tê-lo efetivamente. Tal poder, conferido ao povo - que nada mais é senão fragmentos de indivíduos isolados - é um poder fetiche: não lhes pertence, apenas adornam com flores seus grilhões (Marx - Manuscritos...). 

No Brasil pós-ditadura militar, o discurso democrático se tornou a maior arma de tortura lícita, tácita e disfarçada que jamais se imaginou. Como vivemos em uma ditadura se há liberdade? A própria oposição radical à falta de liberdade de outrora, engana-se e participa do discurso dominante. A história, sabe-se, é sempre a versão do vencedor. E tal versão é a de que a democracia é a maior conquista e blá blá blá. Primeiro: a democracia é muito mais potente como meio de controle: nela, não há oposição; segundo, impõe-se a vontade dominante indireta ou simbolicamente, isto é, faz a vontade ser do e pertencer ao indivíduo, isentando qualquer um de tirania, ditadura e etc.. Antes, podia-se escolher, mesmo sob a pena da morte, ser contra algo concreto; hoje, não há o que ser 'contra', portanto, nada se escolhe, ou, escolhe-se qualquer coisa. E esse 'qualquer coisa' é um dado auto-imposto ao indivíduo reificado. Em outros termos, a escolha dos tutores ideólogos são impostas indireta e disfarçadamente, fazendo-se invisível enquanto imposição.

Ainda assim, a democracia, dizem, trouxe pelo menos uma coisa boa: a possibilidade de acesso dos 'menos favorecidos' a algumas (muitas) coisas. De fato, é o que se vê ocorrer, por exemplo, na música, ou nas artes em geral. Contudo, massificou-se de tal forma que achar algo de criativo e artístico de fato é como achar aquela velha agulha no palheiro. Democratização significou erosão de coisas que haviam se conservado, mesmo em suas mudanças nos processos históricos, legítimas. Não é questão de pensar ser o 'velho', o 'antigo', melhor - não sou reacionário. A questão, antes disso, é de legitimidade ou autenticidade. Como algo pode ser autêntico, próprio (Heidegger) se é coisificado, massificado (Adorno)? O que compõe a 'coisa arte', nessa sociedade massificada, vêm de fora dela, não de dentro: exigências do sujeito dominante (abstrato, diga-se). 

A aparência de liberdade que se impôs como um cálice (cale-se) sobre nós, liberdade de expressão, de idéias e assim por diante, fez com que acreditássemos, ferozmente, ser verdade imaculada. Mas, é claro, basta a tal 'expressão' (ou qualquer 'liberdade') extrapolar os 'limites da mesma tal liberdade' que logo se vê em que páreo estamos - vide as passeatas contra o aumento da passagem de ônibus em SP, as marchas da semana passada, ou mesmo qualquer outra manifestação que não saia da forma que as 'autoridades' querem (ora! Só neste planeta que temos que protestar contra 'alguém' exatamente da forma como esse 'alguém' quer e libera. Somente aqui o uso público da razão (Kant) é limitado pelo poder. E onde fica a Aufklärung? É de rir!). E ainda acreditamos que a legalidade deve ser seguida e que, de fato, os direitos (a mesma legalidade) são cumpridos por quem nos manda seguir. Aliás, Kant já havia colocado isso no texto sobre a Aufklärung: mostram-nos como é difícil andarmos sozinhos, dizem para deixarmos que eles cuidarão de tudo; no fim, sempre somos tutelados, até nos momentos de protesto. Grande Democracia! 

O suposto poder do povo se tornou tão estranho a si mesmo que se desvinculou de qualquer controle, tornou-se um dogma. Todos os seguem. E, como dogma, não pode ser modificado. E sendo assim, seja o presidente reacionário branco ou o progressista preto, seja a direita conservadora ou a suposta esquerda ex-sindicalista, todos, sem exceção, seguem os mesmo ditames, os mesmo princípios. Mudam-se, superficialmente, discursos e nomes. Mas as tropas ainda estão no Iraque, no Haiti; a educação no Brasil vai de mal à pior; as privatizações dos espaços públicos, não só das empresas estatais, vão de vento em popa. Ainda os Banqueiros engordam mais e mais depressa que os porcos. Que democracia é essa que ninguém decide de fato? Que democracia é essa que uma parcelinha ridícula da população reaça-paulistana consegue impedir a construção de uma estação do Metrô, enquanto uma greve de mais de 100 mil professores (ano passado) não consegue alterar nada? Bem, se democracia significar poder do povo, então ela é falsa; se significar poder (tirania) da maioria, também é falsa. Que isto, então, a democracia? 

É claro que irão me podar pelo simples fato de que, eu, só posso estar escrevendo isto, hoje, por conta da democracia; só posso estar vivendo e vivenciando a derrocada da sociedade por conta do 'acesso' que tive a tudo e blá blá blá. Mas, óbvio! Se um sistema que não se deixa entender como dominador, nem quer ser visto assim, tampouco pode, senão perde o valor de identidade consigo mesmo... enfim, se um sistema que não se deixa ver ou entrever como dominador deixasse qualquer brecha para negá-lo, logo seria corrompido. O que está em pauta é que a Bela Democracia supri as necessidades para ser vista como a 'boazinha' da história. Ora, isto não é novo historicamente. A Igreja católica fez isso; as demais religiões fizeram e ainda fazem; o assistencialismo burocratizado do Estado ou os do 'terceiro setor' fazem isso. Exaltam seu suposto lado positivo, escamoteando os negativos. 
Não é questão de negar uma sociedade futura na qual haja um poder soberano emanado do povo (uma 'vontade geral', como diria Rousseau), se assim for. Mas a negação, aqui, é desse tipo específico de Democracia: a Democracia Burguesa. E se torna cada vez mais difícil pensar um sistema social, ou mesmo qualquer coisa de social numa sociedade cheia de... indivíduos, cheia de ilhas infrutíferas mas satisfeitas por suas miragens. Talvez numa sociedade na qual esse estado de coisas seja superado, algum tipo de decisão popular seja possível; aqui, na nossa, mera fantasia. E isso se mostra cada vez mais aos olhos daqueles que querem ver. O problema está em quem os possui. 

NOTA

[1] Cabe lembrar que o tal 'bem público' se torna cada vez menos público na medida em que a particularidade toma o lugar do todo, transmutada em 'todo ideológico'.

Subsolo!

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