[NOTA: Aqui, as discussões sobre o que vem a significar esse
movimento no início do século XXI. Extraído de uma proposta de explicação, de
meu entendimento, sobre minha "visão pessimista" e
"intransigente" ao que constitui todo o movimento da realidade,
afinal. Por mais que apenas um fragmento, a crítica está feita. O texto foi,
como disse, extraído de uma discussão "no calor do momento", escrito
à pauladas - e numa paulada só! - e se encontra, no mais, no Blog do meu amigo Igor Muller.
Aqui o texto está reformulado; digo, está 'ajeitado', tirando os vícios de
língua e algumas confusões mais. No que diz respeito à ideia central, está
intocado. No mais, é apenas um fragmento crítico (assim como tudo que faço).]
O Rap é uma sequência de um processo histórico de contestação de uma
realidade social específica que traz à tona os espólios e resquícios da
escravidão nas Américas. Esse processo se inicia, no mínimo, com a guinada da
música deixando os círculos burgueses e pequeno-burgueses no final do século
XIX, quando surge algo para além do “espírito europeu” da música erudita e de
uma gama de música popular feita por brancos e para brancos. Não se trata, como
querem os ressentidos, de uma simples cor de pele; antes, de um conjunto de
pensamentos e práticas sócio-históricas que divide o mundo entre o “nós” e o
“resto”. Surge o Blues e o Jazz como música afastada, nos guetos (e é o que
leva, entre outras coisas, Adorno a dizer que o jazz era composto por “lumpenproletariado”). No entanto, a
simples expressão de pretos fazendo música já ia para além do quadro reinante.
Não como simples contestação do racismo como problema histórico, mesmo que isso
estivesse no bojo de um movimento nascente; além, de uma negação do dado e do
estabelecido (e é esse o elemento que, em meu entendimento, Adorno não tem em
mãos). Por mais que depois, assim como tudo, e principalmente com o nascimento
e ascensão do Rock, o Jazz e o Blues tenham perdido força, a expressão da
negação é e foi um germe que se desenvolveu conforme o movimento da sociedade.
É claro que também posteriormente grande parte é engolida pela Indústria
Cultural etc.. O Funk surge como a sequência disso: por mais que tenha sido
algo mais “mainstream”, naquele momento se expunha como a negação por ser um
elemento da resistência cultural dos pretos, que, não obstante, eram impedidos
de vivenciar a cultura dominante. Com os movimentos da década de 1960, tanto os
políticos, quanto os político-culturais – isso nos EUA – se inicia, em meu
entendimento, o rap propriamente dito. Esteticamente, o rap deve ao Funk e ao
Jazz. Politicamente, além desses, ao Blues. E o grande iniciador do que viria a
ser o Rap no final da década de 80 e início da seguinte – tirando o fato que
muitos consideram James Brown como o grande predecessor, por seus beats, seus
gestos, seu modo de dançar etc. –, é Gil Scott Heron, com suas letras
extremamente politizadas, nas décadas de 60 e 70. Isso influencia todo o mundo preto.
O Funk e o Jazz e, especialmente, esse Funk ligado aos movimentos radicais pretos
nos EUA, influenciam tanto os Africanos, quanto os Latino-americanos, em
especial, Brasil.
Aqui entre nós, é o Samba de Morro e o Partido Alto que cria toda a
imagem concreta da desigualdade, não simplesmente denunciando a desigualdade,
mas “dando a cara à tapa”: “marginais” fazendo músicas para “marginais” e, com
isso, construindo todo um legado de auto-afirmação negativa. Ainda na década de
70, o Movimento Black Rio se distancia da vigente Bossa Nova e da “música de
protesto” da pequena burguesia carioca. Na junção Samba-Funk, expressava-se o
legado originário do Samba de Morro e se colocava para além do “amor, sorriso e
a flor”, que norteou os primeiros anos da Bossa, da zona sul. Era movimento que
vinha na esteira dos movimentos pretos norte-americanos, com menor radicalidade
política, mesmo assim, com o elemento negativo em seu núcleo. (Não se precisa
falar, ainda assim, da influência de dois grandes músicos desse período, por
claras que estão para todos: Tim Maia e, principalmente, Jorge Ben (sem o
“Jor”)).
Além disso, com os Bailes Blacks em 60 e 70, criaram, em SP
especialmente, todo um enraizamento auto-afirmativo daquilo que, segundo o
“colonizador”, deveria ter sido eliminado na Guerra do Paraguai e com a eugenia
ultra-violenta – por isso o “negativo”: a própria existência de “marginais” é
uma negação, não do racismo, mas do capitalismo enquanto sistema europeu.
Nesses Bailes, aqui em SP, no final dos anos 70 e início dos 80 – Bailes que representavam
alguma resistência, pois, entre outras coisas, eram locais onde pretos se
sentiam “em casa”, para não dizer que não éramos aceitos nos círculos musicais
brancos –, surge o “tagarela” (e isso os mais velhos dizem, além dos pesquisadores
sobre o assunto): num dado momento, o baile parava para alguns
“cantarem-falando” em cima das bases de Funk. Isso antes do surgimento
“oficial”, no metrô São Bento. Na década de noventa, com a “abertura
democrática” e o Brasil falido, as desigualdades sociais vinham à tona com toda
força. Os resquícios de ditadura expressos na ROTA e os bairros periféricos
“escuros” e esquecidos pelas “políticas públicas”, criou todo o cenário na qual
o Rap se ergueria com força contestatória e negativa. (Basta ouvir qualquer
coisa da década de 90, por pior que seja).
O que quis dizer até agora, na tentativa de concluir essa parte, é que
é um movimento, não-linear, de negação e, por isso, ficou restrito aos âmbitos
negativos: os pretos e a periferia. Contudo, como sabemos, a partir do novo milênio, se efetiva com toda força o
que Adorno e Horkheimer haviam dito na década de 40 (ou 50): o fetichismo da
Indústria Cultural – e a consequente naturalização do estabelecido, a
reificação etc.. Isso tudo aliado ao “way of life” tupiniquim que, entre outras
coisas, se estabiliza com o aumento do “poder de consumo” do indivíduo-coisa.
Os problemas sociais, que afetam a periferia não sumiram; antes, tomaram uma
dimensão mais sutil (é mais ou menos o que Marcuse diz no Homem Unidimensional). E isso fez parecer que tudo estava
resolvido. O Rap deveria (deveria no
sentido de Dever-Ser dialético)
evoluir junto à contradição do capitalismo, de forma negativa. Em meu ver, um
dos poucos com alguma visibilidade que consegue esse feito (ao menos em parte)
é o Parteum (e o Mzuri Sana, por consequência).
O que ocorre com esse “pop-rap” dos Meninos da Augusta é que, entre
outras coisas, o indivíduo agora é a imagem cômica e reificada do indivíduo do
século XVI e XVII: aquele indivíduo autônomo que poderia suprir todas as suas
necessidades através de sua própria Razão (é o que leva Kant a pensar no
indivíduo atomizado racional e autônomo. Mas, antes, o que ocorre hoje é mais
uma perspectiva kierkegaardiana do indivíduo mônada que se salva pela fé – não
a cristã, em Deus, como queria Kierkegaard; diferente disso, na fé reificada no
Capital fetiche, no consumo e no sobressair individual, como heróis mesmo, que
“venceram na vida”). E isso leva ao “Rap do Eu”: Kamau é o grande
representante. Veja: “Eu fiz isso, conquistei aquilo, fui por aqui, vim, venci”
etc.. Ou, seus pupilos… O Criolo é um caso à parte. Ele de fato parece que
pensa. Mas, para “vencer”, vendeu-se: veja os clipes e as letras (até aquela
“não existe amor em SP” é de uma ambiguidade que me confunde). O Ferrez é outro
enigma pra mim. Não sei se é um proletário intelectualizado que se tornou
pequeno-burguês, ou se é um intelectual pequeno-burguês com vestes de
periferia. Sei lá!
Mas, o que digo – e isso começa com XIS na “Casa dos Artistas”,
seguido de Helião no “Faustão”, os caras (não lembro o nome) que cantavam “… o
boy de Cherokee” e aparecem de… Cherokee!!!, Mano Brown fazendo show em Balada
de Boy, 200 contos pra entrar etc. – é que havia um projeto, individual mesmo, talvez na esteira de Sartre, que
traçaram e almejaram: são, como quer Sartre, livres, e seus atos tinham uma
finalidade. E é esta finalidade que obscurece a crítica, que alguns se furtam
de criticar só pelo fato de serem os “meninos pretos”, dos “nossos”, que estão
vencendo. O problema – um deles, pelo menos –, está que “venceram” como queria
o projeto branco do capital. O vencer não passa de uma reificação e uma
subsunção ao movimento mais autônomo do Capital Fetiche. (Aqui podemos tentar por no centro da crítica, em outro lugar, a ideia
de Sartre sobre liberdade. É meio estranho para mim, ainda, mas é necessário
pensar. Como disse, em outro momento, distinto desse).
O que vale, em suma e grosso modo, é o vencer na vida, o indivíduo
atomizado tentando se sobressair como se fosse o “radical” – e isso não é
específico do rap (ou do pop-rap). Os problemas “sumiram”, e o rap – assim como
os Movimentos de Esquerda etc. – perdeu o rumo, o “concreto” que negava. Não
porque o concreto esvaneceu; antes, por que se sutilizou e se abstraiu: não se
vê mais com os olhos nus. O grande problema é esse cinismo que diz ‘sou periferia, contra isso, contra aquilo’,
que serve simplesmente para aparecer (assim como a Xuxa namorar o Pelé como
trampolim para fama, por exemplo).
A crítica a esse movimento é necessária para se entender, ao menos, um
fragmento da efetividade social atual. Talvez na tentativa de não perder por
completo o pensamento crítico, sua necessidade imanente. Isso na esteira de
autores que ainda estou tentando me apropriar: Paulo Arantes, Safatle etc., que
defendem, entre outras coisas, que a crítica se desfez, ou, como diz o título
de Safatle: “falência da crítica”... Claro que o que afirmo e defendo aqui não
esgota o assunto; antes, aponta alguns aspectos que me tiram do lugar cômodo e
me põe em movimento retroativo de negação. É, em uma expressão, a decepção e o
pessimismo vigente do séc. XXI que impulsiona para lá onde está a “outra ordem
de verdade” tentada desde o séc. XIX.
Voltando da digressão, reafirmando, o Rap se perdeu, pois se tornou
pequeno-burguês, alienou-se das bases – é claro que há exceções, mas toda
exceção é a alguma regra, portanto... (no mesmo momento em que vivemos em um
grande estado de exceção, se pensando nas regras tradicionais que se esvanecem)
– e seus fantoches se tornaram aspirantes a famosos, na tentativa de copiar os
gringos do mainstream ou os periquitos verde-amarelos do way of life reificado tupiniquim...
Salve do Urban Underground!
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