domingo, 13 de maio de 2012

No calor do momento (sobre o Rap)

[NOTA: Aqui, as discussões sobre o que vem a significar esse movimento no início do século XXI. Extraído de uma proposta de explicação, de meu entendimento, sobre minha "visão pessimista" e "intransigente" ao que constitui todo o movimento da realidade, afinal. Por mais que apenas um fragmento, a crítica está feita. O texto foi, como disse, extraído de uma discussão "no calor do momento", escrito à pauladas - e numa paulada só! - e se encontra, no mais, no Blog do meu amigo Igor Muller. Aqui o texto está reformulado; digo, está 'ajeitado', tirando os vícios de língua e algumas confusões mais. No que diz respeito à ideia central, está intocado. No mais, é apenas um fragmento crítico (assim como tudo que faço).]  

        O Rap é uma sequência de um processo histórico de contestação de uma realidade social específica que traz à tona os espólios e resquícios da escravidão nas Américas. Esse processo se inicia, no mínimo, com a guinada da música deixando os círculos burgueses e pequeno-burgueses no final do século XIX, quando surge algo para além do “espírito europeu” da música erudita e de uma gama de música popular feita por brancos e para brancos. Não se trata, como querem os ressentidos, de uma simples cor de pele; antes, de um conjunto de pensamentos e práticas sócio-históricas que divide o mundo entre o “nós” e o “resto”. Surge o Blues e o Jazz como música afastada, nos guetos (e é o que leva, entre outras coisas, Adorno a dizer que o jazz era composto por “lumpenproletariado”). No entanto, a simples expressão de pretos fazendo música já ia para além do quadro reinante. Não como simples contestação do racismo como problema histórico, mesmo que isso estivesse no bojo de um movimento nascente; além, de uma negação do dado e do estabelecido (e é esse o elemento que, em meu entendimento, Adorno não tem em mãos). Por mais que depois, assim como tudo, e principalmente com o nascimento e ascensão do Rock, o Jazz e o Blues tenham perdido força, a expressão da negação é e foi um germe que se desenvolveu conforme o movimento da sociedade. É claro que também posteriormente grande parte é engolida pela Indústria Cultural etc.. O Funk surge como a sequência disso: por mais que tenha sido algo mais “mainstream”, naquele momento se expunha como a negação por ser um elemento da resistência cultural dos pretos, que, não obstante, eram impedidos de vivenciar a cultura dominante. Com os movimentos da década de 1960, tanto os políticos, quanto os político-culturais – isso nos EUA – se inicia, em meu entendimento, o rap propriamente dito. Esteticamente, o rap deve ao Funk e ao Jazz. Politicamente, além desses, ao Blues. E o grande iniciador do que viria a ser o Rap no final da década de 80 e início da seguinte – tirando o fato que muitos consideram James Brown como o grande predecessor, por seus beats, seus gestos, seu modo de dançar etc. –, é Gil Scott Heron, com suas letras extremamente politizadas, nas décadas de 60 e 70. Isso influencia todo o mundo preto. O Funk e o Jazz e, especialmente, esse Funk ligado aos movimentos radicais pretos nos EUA, influenciam tanto os Africanos, quanto os Latino-americanos, em especial, Brasil.  
      Aqui entre nós, é o Samba de Morro e o Partido Alto que cria toda a imagem concreta da desigualdade, não simplesmente denunciando a desigualdade, mas “dando a cara à tapa”: “marginais” fazendo músicas para “marginais” e, com isso, construindo todo um legado de auto-afirmação negativa. Ainda na década de 70, o Movimento Black Rio se distancia da vigente Bossa Nova e da “música de protesto” da pequena burguesia carioca. Na junção Samba-Funk, expressava-se o legado originário do Samba de Morro e se colocava para além do “amor, sorriso e a flor”, que norteou os primeiros anos da Bossa, da zona sul. Era movimento que vinha na esteira dos movimentos pretos norte-americanos, com menor radicalidade política, mesmo assim, com o elemento negativo em seu núcleo. (Não se precisa falar, ainda assim, da influência de dois grandes músicos desse período, por claras que estão para todos: Tim Maia e, principalmente, Jorge Ben (sem o “Jor”)).

      Além disso, com os Bailes Blacks em 60 e 70, criaram, em SP especialmente, todo um enraizamento auto-afirmativo daquilo que, segundo o “colonizador”, deveria ter sido eliminado na Guerra do Paraguai e com a eugenia ultra-violenta – por isso o “negativo”: a própria existência de “marginais” é uma negação, não do racismo, mas do capitalismo enquanto sistema europeu. Nesses Bailes, aqui em SP, no final dos anos 70 e início dos 80 – Bailes que representavam alguma resistência, pois, entre outras coisas, eram locais onde pretos se sentiam “em casa”, para não dizer que não éramos aceitos nos círculos musicais brancos –, surge o “tagarela” (e isso os mais velhos dizem, além dos pesquisadores sobre o assunto): num dado momento, o baile parava para alguns “cantarem-falando” em cima das bases de Funk. Isso antes do surgimento “oficial”, no metrô São Bento. Na década de noventa, com a “abertura democrática” e o Brasil falido, as desigualdades sociais vinham à tona com toda força. Os resquícios de ditadura expressos na ROTA e os bairros periféricos “escuros” e esquecidos pelas “políticas públicas”, criou todo o cenário na qual o Rap se ergueria com força contestatória e negativa. (Basta ouvir qualquer coisa da década de 90, por pior que seja).

       O que quis dizer até agora, na tentativa de concluir essa parte, é que é um movimento, não-linear, de negação e, por isso, ficou restrito aos âmbitos negativos: os pretos e a periferia. Contudo, como sabemos, a partir do novo milênio, se efetiva com toda força o que Adorno e Horkheimer haviam dito na década de 40 (ou 50): o fetichismo da Indústria Cultural – e a consequente naturalização do estabelecido, a reificação etc.. Isso tudo aliado ao “way of life” tupiniquim que, entre outras coisas, se estabiliza com o aumento do “poder de consumo” do indivíduo-coisa. Os problemas sociais, que afetam a periferia não sumiram; antes, tomaram uma dimensão mais sutil (é mais ou menos o que Marcuse diz no Homem Unidimensional). E isso fez parecer que tudo estava resolvido. O Rap deveria (deveria no sentido de Dever-Ser dialético) evoluir junto à contradição do capitalismo, de forma negativa. Em meu ver, um dos poucos com alguma visibilidade que consegue esse feito (ao menos em parte) é o Parteum (e o Mzuri Sana, por consequência).

       O que ocorre com esse “pop-rap” dos Meninos da Augusta é que, entre outras coisas, o indivíduo agora é a imagem cômica e reificada do indivíduo do século XVI e XVII: aquele indivíduo autônomo que poderia suprir todas as suas necessidades através de sua própria Razão (é o que leva Kant a pensar no indivíduo atomizado racional e autônomo. Mas, antes, o que ocorre hoje é mais uma perspectiva kierkegaardiana do indivíduo mônada que se salva pela fé – não a cristã, em Deus, como queria Kierkegaard; diferente disso, na fé reificada no Capital fetiche, no consumo e no sobressair individual, como heróis mesmo, que “venceram na vida”). E isso leva ao “Rap do Eu”: Kamau é o grande representante. Veja: “Eu fiz isso, conquistei aquilo, fui por aqui, vim, venci” etc.. Ou, seus pupilos… O Criolo é um caso à parte. Ele de fato parece que pensa. Mas, para “vencer”, vendeu-se: veja os clipes e as letras (até aquela “não existe amor em SP” é de uma ambiguidade que me confunde). O Ferrez é outro enigma pra mim. Não sei se é um proletário intelectualizado que se tornou pequeno-burguês, ou se é um intelectual pequeno-burguês com vestes de periferia. Sei lá!

      Mas, o que digo – e isso começa com XIS na “Casa dos Artistas”, seguido de Helião no “Faustão”, os caras (não lembro o nome) que cantavam “… o boy de Cherokee” e aparecem de… Cherokee!!!, Mano Brown fazendo show em Balada de Boy, 200 contos pra entrar etc. – é que havia um projeto, individual mesmo, talvez na esteira de Sartre, que traçaram e almejaram: são, como quer Sartre, livres, e seus atos tinham uma finalidade. E é esta finalidade que obscurece a crítica, que alguns se furtam de criticar só pelo fato de serem os “meninos pretos”, dos “nossos”, que estão vencendo. O problema – um deles, pelo menos –, está que “venceram” como queria o projeto branco do capital. O vencer não passa de uma reificação e uma subsunção ao movimento mais autônomo do Capital Fetiche. (Aqui podemos tentar por no centro da crítica, em outro lugar, a ideia de Sartre sobre liberdade. É meio estranho para mim, ainda, mas é necessário pensar. Como disse, em outro momento, distinto desse).

       O que vale, em suma e grosso modo, é o vencer na vida, o indivíduo atomizado tentando se sobressair como se fosse o “radical” – e isso não é específico do rap (ou do pop-rap). Os problemas “sumiram”, e o rap – assim como os Movimentos de Esquerda etc. – perdeu o rumo, o “concreto” que negava. Não porque o concreto esvaneceu; antes, por que se sutilizou e se abstraiu: não se vê mais com os olhos nus. O grande problema é esse cinismo que diz ‘sou periferia, contra isso, contra aquilo’, que serve simplesmente para aparecer (assim como a Xuxa namorar o Pelé como trampolim para fama, por exemplo).

      A crítica a esse movimento é necessária para se entender, ao menos, um fragmento da efetividade social atual. Talvez na tentativa de não perder por completo o pensamento crítico, sua necessidade imanente. Isso na esteira de autores que ainda estou tentando me apropriar: Paulo Arantes, Safatle etc., que defendem, entre outras coisas, que a crítica se desfez, ou, como diz o título de Safatle: “falência da crítica”... Claro que o que afirmo e defendo aqui não esgota o assunto; antes, aponta alguns aspectos que me tiram do lugar cômodo e me põe em movimento retroativo de negação. É, em uma expressão, a decepção e o pessimismo vigente do séc. XXI que impulsiona para lá onde está a “outra ordem de verdade” tentada desde o séc. XIX.

      Voltando da digressão, reafirmando, o Rap se perdeu, pois se tornou pequeno-burguês, alienou-se das bases – é claro que há exceções, mas toda exceção é a alguma regra, portanto... (no mesmo momento em que vivemos em um grande estado de exceção, se pensando nas regras tradicionais que se esvanecem) – e seus fantoches se tornaram aspirantes a famosos, na tentativa de copiar os gringos do mainstream ou os periquitos verde-amarelos do way of life reificado tupiniquim... 

Salve do Urban Underground!

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