[relendo Benjamin...]
Sempre foi difícil, na História, relatar
a morte, quanto mais a sentir na pele, crua e correndo a garganta sem antes desfazer
o nó. Sempre foi difícil superá-la e mesmo fugir a tal experiência, já que quem
a experiencia não o faz por querer, por vontade ou por uso deliberado. Ela foi,
por vezes, a experiência mais cruel e mais educativa, concomitantemente. Fazia
amadurecer mais rápido, obrigava que rumos fossem mudados, decisões tomadas que
antes de sua chegada intrépida muitas vezes não eram sequer cogitadas. A
experiência sufocante e angustiante não deixou de ser arrebatadora. A morte
individual, mesmo a mais insignificante, sempre foi algo duplamente duro: por
um lado, a experiência da perda daquilo que se cultivara com afeto e afinco;
por outro, a missão de ter de continuar ante o inesperado e ao acaso de um
futuro não mais detido como nos sonhos. Isso, talvez, mostrasse a necessidade
de efetivação concreta da autonomia que nada vê pela frente senão ela mesma. No
entanto, o que nos chegou pela História foram as mortes coletivas. Tanto a
morte do indivíduo que carregava em si o espírito de seu tempo, quanto a morte
coletiva de fato, que deixou marcas indeléveis em um povo e na História mesma.
Essa experiência trazia um sofrimento intrínseco e duradouro, que não se
apagava com o posterior, tampouco se esfacelava com o tempo. Tanto Aquiles
quanto Sócrates fizeram da experiência da morte algo de maior significado. Não
somente eles mesmos, mas toda a época, e todas as épocas posteriores que
viveram sob seu legado. Na modernidade, a morte coletiva representou o suspiro
de gerações em marcas históricas que traziam nomes, ditos e objetivos de dentro
do sepulcro. Trazia, enfim, toda a carga histórica que dela poderia vir e que
se acrescenta no decorrer do tempo: é o seu legado humano ou mesmo seu lado
completamente sombrio que assola as gerações vindouras com toda a força viva da
humanidade que delas permanece. As lutas de classes e as guerras civis dos
séculos XIX e XX foram sempre eternizadas por sua barbárie ou mesmo por sua
busca irresoluta por humanidade, assim como as Grandes Guerras do século XX
marcaram o século com uma mancha. As escravizações de amplo espectro nas
Américas e os genocídios constituem também marcas indeléveis, principalmente
para os não-heróis e para os “perdedores”. O clamor de Adorno – para que
Auschwitz não se repita! – é signo da ânsia de quem experienciou a morte com os
próprios ossos, sangue, carne, mente. Os resquícios de humanidade aparecem com
toda força na memória – e na crítica. Contudo – e nisso Benjamin sempre me
arrepia! – o século XX é aquele no qual a humanidade, no geral e como um todo,
deixou de existir, extinguiu-se por completo. A sobreposição da técnica e, em
última instância, do capital em relação à vida, ao humano enquanto ideia e o de
carne e osso, fez desaparecer e, ao mesmo tempo, se tornar uma abstração vã e
fora de contexto toda a humanidade. Junto, ou mesmo dentro, ao lado e por cima
da técnica, da ciência e da tecnologia, está um tempo no qual não se
possibilita mais a Erfahrung, a experiência
histórica e coletiva. Um tempo tão fugaz, inclusive para si mesmo, não
possibilita a apreensão de nada com todo o legado que a coisa poderia conter e
trazer, com todo o legado que dela poderia vir a ser pela experiência nela
contida e por aquela que ela faz tomar corpo, direção e sentido. Em nossa
época, a morte é tão descartável como um brinquedo de criança, uma fralda ou
mesmo outra pessoa. Ela é insensível para si; insensível para quem a vê. – Sim,
vê: ninguém mais a sente. E vê, sim também, pois é um espetáculo transitório e
efêmero como qualquer outro: o show da
vida. E não é insensível, em si e para si, tão somente por conta de “indivíduos”
insensíveis, mas porque é uma época insensível, uma vida que não é mais vida. E
não sendo mais vida, e a sensibilidade como intrinsecamente humana, não pode
ser sensível. É espetacular, isso
sim. Espetacular como brinquedos de crianças que não duram um dia: não são
feitos para durar, não por conta do material com que são produzidos, mas por conta
de um espírito que não quer que dure. São altamente tecnológicos; e por isso
mesmo não são humanos. Tudo é descartável, inclusive uma pseudovida dos “outros”:
a indignação, a comoção, a lembrança não passam de enfeites coletivos que
adornam o senso comum. Só é possível se indignar, comover etc., se os outros
estão se comovendo etc., e, também, se isso possui um “valor de troca” que, de
fato, valha. Tudo é descartável, menos como espetáculo. E tudo deve ser
consumido com a maior intensidade animalesca ou robótica possível, inclusive a
morte. Deve ser jogada na cara, escancarada até as vísceras e, logo em seguida,
descartada. Pois a morte não vale como morte, tampouco como experiência. Ela,
de outro modo, só poderia ser sentida efetivamente por aqueles que ainda se
mantêm vivos, mas já não existem mais. A experiência depende de um “contratempo”,
que vá de encontro ao tempo do capital. No entanto, isso não se resolve por uma
vontade isolada. E a experiência da morte, ou a morte propriamente dita,
morreu, ficou estarrecida consigo mesma e feneceu junto ao ocaso da humanidade.
Subsolo Humano!
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