Muito bonita e,
até certo ponto, corajosa a campanha contra a violência física desferida em
relação às mulheres: muito necessária no cenário atual. As mudanças são lentas,
sabe-se. Mesmo assim, de uns anos para cá, parece que tem crescido o número de
manifestações favoráveis à igualdade pela
diferença, isto é, a igualdade civil independente das diferenças de outras
ordens. A lei Maria da Penha é um
passo importante na legislação brasileira, no direito etc.. Mas, lei é lei, simplesmente:
não cria costume e tampouco cultura. Pelo contrário, em grande parte é derivada
da tradição, da cultura e dos costumes, mesmo estes sendo enviesados. E é neste
ponto que a legislação combate, pelo menos no plano genérico, o que se tornou
costume e tende a impulsionar o debate sobre o tema. Assim acontece em alguns
campos na atualidade brasileira: seja o debate sobre gênero, sexualidade,
raça/etnia etc.. No entanto, alguns pontos são relegados, como se não fossem de
primeira ordem. O próprio discurso positivo, aquele que vai em direção a
combater tal ou tal costume/prática, escamoteia as outras faces do objeto que
se propôs a debater. Cria, entre outras coisas, um senso comum que ou adere, ou
rejeita o que foi tornado senso comum. Dito em outras palavras: cria um
estereótipo limitador do que e como deve ser debatido na esfera pública e
pensado e praticado na esfera privada.
Do início do
século passado para cá, muita coisa mudou. O século XX, como se sabe, é o
século que fez, grosso modo, os milênios de história humana em 100 anos. Antes
da metade do século, é sabido, uma mulher acusada de adultério, por exemplo,
era, em muitos casos, uma mulher apedrejada, morta de alguma forma em “legítima
defesa” (ops!): em defesa da “honra”. Resquício vivo do patriarcalismo que
ainda resiste hoje. Contudo, talvez felizmente, algumas coisas mudaram, e o que
vale hoje é seu contrário: a honra, pelo menos a pública e “legal”, está do
outro lado, do lado de quem não apedreja. E, claro, se isso ocorre, há uma
senhora dita lei que tende, talvez, salvaguardá-la. No século que transcorreu,
elas “conquistaram” o direito ao trabalho, triplo diga-se – mesmo que o fato de
ter de trabalhar não traz autonomia nem igualdade: a superioridade patriarcal e
mandona do “indivíduo macho” passa do sujeito de carne e osso, concreto, para o
sujeito abstrato, capital. Uma “conquista” realizada pela sociedade do trabalho
alienado, da sociedade de consumo – consumo, inclusive e principalmente, de
corpos e almas. Ainda assim, as transformações, não só em relação ao trabalho,
se deram como um ganho, não só para as mulheres.
De outro lado,
porém, não se vence uma guerra lutando apenas uma batalha, que está em curso
ainda. O efeito limitador do debate público e da atitude privada se dá quando
força o pensamento apenas a ver “violência”
como aquela que é desferida com golpes de martelo. E, ainda, depende de quem e por quais motivos os receberam: há um julgamento moralizante que
averigua, esmiúça sobre a “procedência” daquela que é agredida fisicamente. Da
mesma forma que racismo não é simplesmente alguém agredir um preto na rua,
prendê-lo sem motivos e etc., mas, vai além disso – quando a “tiazinha”
atravessa a rua para não passar na mesma calçada que eu quando estou indo à
escola, ou quando “me denunciam” à polícia com a alegação “aquele de ‘rastafari’
em frente à escola estava usando droga ali e repassando” –, enfim, não é
simplesmente física: a violência simbólica foi, e ainda é com toda força do
espírito, a mais violenta. E ela é, muitas vezes, silenciosa, pois se dá como “jocosa”,
em tom de “brincadeira” ou “piada”, ou ainda é escamoteada e desvirtuada pelo
cinismo vigente. Dá-se, além, quando ainda há um chefe de família – e um tipo
de família vigente aceito pelo senso comum –, quando a jornada da mulher é
tripla, quando ela é vista como “café com leite”, por exemplo, ao volante ou em
outras esferas na vida real e cotidiana.
Uma coisa só se
altera, com a alteração das demais, conjuntamente, ou mesmo com a criação de um
processo de embate em relação às situações que a envolvem e estão juntas a ela.
A violência física só pode ser banida para sempre na medida em que a sua
criação simbólica, que aparece já na primeira infância, é alterada e
transformada radicalmente. “Segurar-se” para não agredir alguém que julga ser
seu serviçal e inferior perante a si mesmo, ainda que com a desculpa
esfarrapada de estar “bêbado”, não é tão difícil. Difícil mesmo é encostar o
umbigo na pia e não achar que isso é coisa de mulher. É passar roupa e cuidar
das crianças. Difícil é aceitar que acidentes de trânsito são causados, em sua
maioria, por “indivíduos machos”, que se julgam os melhores. Difícil, também, é
não chamar de “vagabunda”, “vadia”, ou seja o que for, qualquer mulher – tratando-a
como “mulher qualquer”. Quase impossível é tentar ver as relações com outros
olhos, e aceitar que “meninos protomachos” também devem brincar de casinha,
cuidar de bonecas e etc., pois as funções sociais, familiares etc., não possuem
gênero. Enfim. Difícil, sim, é aceitar que não há desigualdade, mas diferença. E
só com a superação dessas, e outras tantas, “dificuldades”, é que, talvez e num
processo longo e lento, possamos pensar em alguma transformação efetiva dessa
realidade caótica. E isso vale para gênero, sexualidade, raça/etnia etc..
Portanto, não lhe darei flores! Não lhe direi “parabéns”!
Não farei o papel boçal do senso comum viciante. Não! Recuso-me a isso! E não é de hoje. E, muito pelo contrário,
estarei – como estou – nas fileiras contigo, lutando.
“Meu Único Dia de Mulher”
Oito
de março lembrou de mim
mandou
flores, tocou até tamborim,
como
presente de consolação,
além
dos bombons, ganhei cartão
elogiou
tanto o meu caráter
e
me fez sentir rainha
fingiu
esquecer que não cobiçava o meu corpo,
mas
sim a minha carinha
afirmou
que sou bela por ser mulher
e
disse o quanto sou guerreira de fé
e
que sou capaz de vencer todas as barreiras
sou
forte e verdadeira
na
TV tantas homenagens
que
cheguei a acreditar
até
que enfim a igualdade está a reinar.
Nove
de março, que decepção!
Pia
cheia e toalha no chão
pedi
para tirar o prato da mesa
e
quase levei um bofetão
disse
que o serviço de casa era minha obrigação
que
mulher só prestava para cozinhar,
fazer
sexo,
gerar
filhos e amamentar.
Dez
de março e a coisa piorou
disse
que sou feia, gorda
e
não sabe por que casou
e
ainda me chamou de burra
e
que se eu tivesse estudado
pelo
menos era culta.
Os
dias passam e fico esperando
Meu
único dia de mulher.
Oito
de março!
Poesia
de minha amiga Elizandra Souza – Mjiba
– que consta em seu livro, junto com Akins Kinte, Punga.
Subsolo Urbano!