[não há nada que faça mais sentido que a falta de sentido]
O que se vive? O subtítulo da Minima Moralia de Adorno é “reflexões a partir da vida lesada
[danificada etc.]”. Lesada ou não, ainda há vida. A tese do embate entre razão
instrumental e crítica, entre instrumentalização da vida e crítica imanente, é
um dos ápices da dialética no século XX. Ainda hoje – e parece que hoje mais
que nunca – os críticos dialéticos se voltam ao humanismo. Não aquele “clássico”,
ou mesmo algum “humanismo ético” vazio por si só. Mas, na busca pela projeção
ao que resta de vida. Entrementes, a vida parece um quadro mal pintado: tudo parece, ao
mesmo tempo, claro e indefinido (ou indefinível); sabe-se que há “algum
problema”, mas não se sabe o quê. Retificando, então: o quadro apenas parece
mal pintado. Cada detalhe do borrão tem um sentido e uma ligação. O problema,
poder-se-ia dizer, está no “observador” incauto. Por mais que o “problema”
pareça estar no objeto mal programado. Não se quer saber. O problema está em ambos, no quadro que aparece
descolado de sentido e no observador, mergulhado no sentido aporeticamente
falso. As suas ligações estão dadas no movimento do todo, por mais que esse
todo, enquanto tal, não exista de fato e seja apenas uma projeção maluca do
sagaz observador. Distanciado do outro, do quadro, em aparência o observador se
isenta. Submergido completamente na falsidade do todo, ele não observa a
própria moléstia. O outro vazio que se torna o eu, também vazio, é
complementado pelo reflexo mal formado do indivíduo suprimido nas sombras. O
quadro se completa aqui: não há nada no quadro que se deixe escapar. Aquele que
se vê no reflexo, por fim, é o pano de fundo e o centro perturbador da harmonia
do todo e, por sua vez, não se pode isentar dessa tarefa – sem ele o quadro não
existe.
A vida se vive? Há algo que vive? Talvez
o “algo”, aqui, seja esclarecedor (e
estarrecedor!). Somente como coisa indefinida, como coisa, que a vida vive. A procura teleológica – que se torna
tautológica por si só – é algo que se tem, e que se desfaz a si própria. Se,
por sua vez, Kant dizia que – em palavras “populares” – por linhas tortas e egoístas a humanidade se harmoniza na evolução cega
de si, ele não supunha que, mais tarde, o próprio egoísmo seria suplantado
pelo egoísmo cego de si que harmoniza a
estaticidade do todo. Hegel via um problema na sociedade civil-burguesa, um
“medo” enquanto “estado do entendimento”:
era o medo do presente em embate à projeção otimista do Estado lógico e
futurista. A afazia do tempo, de um tempo inumano e tonitruante, que a tudo
suga no desespero de um buraco negro, sobrepuja a lógica e dá um golpe de
Minerva no que restava de vida: a engole. O grande Cronos que a tudo devora sem
titubear, não se estarrece de seu poder. Ele não tem consciência que está
morto! Não sabe o que faz, e ainda assim, faz. O presente domina a tudo: não se
pode mais pensar o passado, devorá-lo, consumi-lo; e o futuro não passa de um
vazio preenchido cada vez mais com os signos presentes que ainda aparecem como “borrões”
a serem resolvidos.
Esse tempo estático (e extático), morto
e que a tudo devora, ainda que na cegueira imanente de si, comanda as voltas
dos ponteiros; e, por sua vez, é comandado pela coisa inumana e perturbadora. É
somente assim que se confere harmonia ao todo. Somente algo perturbador da
harmonia pode dar de lambuja uma finalidade para algo sem vida. É claro que
tudo aparece, no holograma da realidade efetiva, como certo e verdadeiro. Somente
assim que se pode confiar no absurdo: é na totalização do mundo a partir de um “si”
morto e estático que se pode fiar nesse mesmo mundo ora totalizado. Em tempo: é
somente da injunção problemática do eu e do outro, do eu vazio impondo sua
vacuidade ao outro como aparência de liberdade efetiva que se podem vislumbrar
os processos de totalização do mundo.
Quando a vida era danificada, no século
XX, ela ainda era vida, ainda dava seus últimos suspiros. Somente agora que
tudo isso ficou para trás e foi devorado. Somente agora que o presente é total,
que gira somente entorno de sua própria cabeça achatada e vazia, é que consome
a si próprio não mais se comendo pelo rabo – sim pelas entranhas! Não há mais
nada que não esteja sujeito a esse processo. Não há nada que não esteja no
centro borrado e altamente iluminado do quadro. Se Goethe tivesse escrito seu Fausto hoje, a cena dos velhos que se
recusam a ceder não existiria. Eles tampouco existiriam. Mefisto seria, ele
mesmo, um zero à esquerda; e Fausto seria um tresloucado (como era) anônimo no
meio da multidão de Faustos “pós-modernos”...
Subsolo!