sábado, 27 de abril de 2013

Afazia dos tempos e um diagnóstico perturbador

[não há nada que faça mais sentido que a falta de sentido]

O que se vive? O subtítulo da Minima Moralia de Adorno é “reflexões a partir da vida lesada [danificada etc.]”. Lesada ou não, ainda há vida. A tese do embate entre razão instrumental e crítica, entre instrumentalização da vida e crítica imanente, é um dos ápices da dialética no século XX. Ainda hoje – e parece que hoje mais que nunca – os críticos dialéticos se voltam ao humanismo. Não aquele “clássico”, ou mesmo algum “humanismo ético” vazio por si só. Mas, na busca pela projeção ao que resta de vida. Entrementes, a vida parece um quadro mal pintado: tudo parece, ao mesmo tempo, claro e indefinido (ou indefinível); sabe-se que há “algum problema”, mas não se sabe o quê. Retificando, então: o quadro apenas parece mal pintado. Cada detalhe do borrão tem um sentido e uma ligação. O problema, poder-se-ia dizer, está no “observador” incauto. Por mais que o “problema” pareça estar no objeto mal programado. Não se quer saber. O problema está em ambos, no quadro que aparece descolado de sentido e no observador, mergulhado no sentido aporeticamente falso. As suas ligações estão dadas no movimento do todo, por mais que esse todo, enquanto tal, não exista de fato e seja apenas uma projeção maluca do sagaz observador. Distanciado do outro, do quadro, em aparência o observador se isenta. Submergido completamente na falsidade do todo, ele não observa a própria moléstia. O outro vazio que se torna o eu, também vazio, é complementado pelo reflexo mal formado do indivíduo suprimido nas sombras. O quadro se completa aqui: não há nada no quadro que se deixe escapar. Aquele que se vê no reflexo, por fim, é o pano de fundo e o centro perturbador da harmonia do todo e, por sua vez, não se pode isentar dessa tarefa – sem ele o quadro não existe.
A vida se vive? Há algo que vive? Talvez o “algo”, aqui, seja esclarecedor (e estarrecedor!). Somente como coisa indefinida, como coisa, que a vida vive. A procura teleológica – que se torna tautológica por si só – é algo que se tem, e que se desfaz a si própria. Se, por sua vez, Kant dizia que – em palavras “populares” – por linhas tortas e egoístas a humanidade se harmoniza na evolução cega de si, ele não supunha que, mais tarde, o próprio egoísmo seria suplantado pelo egoísmo cego de si que harmoniza a estaticidade do todo. Hegel via um problema na sociedade civil-burguesa, um “medo” enquanto “estado do entendimento”: era o medo do presente em embate à projeção otimista do Estado lógico e futurista. A afazia do tempo, de um tempo inumano e tonitruante, que a tudo suga no desespero de um buraco negro, sobrepuja a lógica e dá um golpe de Minerva no que restava de vida: a engole. O grande Cronos que a tudo devora sem titubear, não se estarrece de seu poder. Ele não tem consciência que está morto! Não sabe o que faz, e ainda assim, faz. O presente domina a tudo: não se pode mais pensar o passado, devorá-lo, consumi-lo; e o futuro não passa de um vazio preenchido cada vez mais com os signos presentes que ainda aparecem como “borrões” a serem resolvidos.
Esse tempo estático (e extático), morto e que a tudo devora, ainda que na cegueira imanente de si, comanda as voltas dos ponteiros; e, por sua vez, é comandado pela coisa inumana e perturbadora. É somente assim que se confere harmonia ao todo. Somente algo perturbador da harmonia pode dar de lambuja uma finalidade para algo sem vida. É claro que tudo aparece, no holograma da realidade efetiva, como certo e verdadeiro. Somente assim que se pode confiar no absurdo: é na totalização do mundo a partir de um “si” morto e estático que se pode fiar nesse mesmo mundo ora totalizado. Em tempo: é somente da injunção problemática do eu e do outro, do eu vazio impondo sua vacuidade ao outro como aparência de liberdade efetiva que se podem vislumbrar os processos de totalização do mundo.
Quando a vida era danificada, no século XX, ela ainda era vida, ainda dava seus últimos suspiros. Somente agora que tudo isso ficou para trás e foi devorado. Somente agora que o presente é total, que gira somente entorno de sua própria cabeça achatada e vazia, é que consome a si próprio não mais se comendo pelo rabo – sim pelas entranhas! Não há mais nada que não esteja sujeito a esse processo. Não há nada que não esteja no centro borrado e altamente iluminado do quadro. Se Goethe tivesse escrito seu Fausto hoje, a cena dos velhos que se recusam a ceder não existiria. Eles tampouco existiriam. Mefisto seria, ele mesmo, um zero à esquerda; e Fausto seria um tresloucado (como era) anônimo no meio da multidão de Faustos “pós-modernos”...  
Subsolo!

sábado, 20 de abril de 2013

Estado Paranoia


Algumas reflexões e impasses junto aos alunos
 fazem pensar certas coisas de outros modos.

Paranoia. Este é o estado no qual se encontra as pessoas atualmente. Nas metrópoles – e isso não diz respeito somente à São Paulo – e também nos grandes centros de poder e decisão, em suma, no atual estágio do capitalismo, as pessoas, os Estados, as relações sociais são, em estado de exceção – e isso que surgiu na conversa com os alunos de modo bem trivial e reflexivo –, todos eles psicopatas por excelência. Em estado de exceção, sim, já que “é como prevenção que se deve ser paranoico”.  Os ataques discriminatórios, que julgam por “conceito-pré-conceito”, são sempre frutos de uma paranoia imanente e naturalizada. Não é mais um luxo dos usuários de crack ver “bichos” os perseguindo. Atravessar a rua para se "prevenir" de um assalto ou de um estupro, correr depois das 22h para fugir sabe-se lá do quê, não conseguir olhar aos olhos de outro sem tremer (principalmente à noite), denunciar e acusar, são estados “normais” em vista da “sobrevivência” do indivíduo. A “guerra sem baixas” do século XXI, como já apontam alguns pensadores, é exatamente a guerra de prevenção. Os bombardeios de 2002 ao Afeganistão e a derrubada de Saddam Hussein não indicam isso também? A H1N1 não criou um estado paranoico no mundo? E, logo, algumas pesquisas revelaram que a gripe “normal” derrubava mais gente que a tal “peste do século XXI”.
Se a histeria foi o grande boom da virada do século XIX para o XX, esse estado de exceção que se torna regra e traz em seu bojo o pânico é o que nos circunda e perpetra. O “grande irmão” – as câmeras espalhadas pelas cidades testemunham muito bem isso –, que nos acossa e nos “protege”, é, de fato, a luz do progresso e nossa “segurança em plenitude”: Minority Report é um grande exemplo. Aquilo que José Serra disse em entrevista à CBN, ano passado na corrida das eleições, não era isolado nem espasmos de sua loucura individual: trata-se de um processo. Segundo ele, era (ou melhor: é) necessário identificar potenciais criminosos juvenis nas escolas públicas municipais (e blá blá blá). Esse tipo de pensamento reacionário não era, nem é, isolado: ele retrata o “ZeitGeist” – o “Espírito do Tempo” –, aquilo que já se tornou senso comum no imaginário e agora está tomando forma na linguagem, advindo publicamente e com força. A redução da maioridade penal não é fruto da “paranoia preventiva”? Um estado de coisas paranoico e violento – sociopata – reduz o processo de advento das contradições sociais a um único ponto: eliminação do imediato. É óbvio que o trabalho ideológico junto ao senso comum nem precisa ser tão intenso, já que extenso e se desenrola no tempo, encaixado quase que perfeitamente no decorrer histórico. Além do problema latente que é a luta de classes – no qual só os “mais escuros” e os “menos providos” que irão ser o alvo imediato –, há o problema do transtorno compulsivo social. É aqui que a inumanidade real atinge a si própria, em nome da “vida” e da “paz”, com a morte.
A paranoia real, que insufla a “vida” de cada um todos os dias e faz com que desconfiem de tudo e todos, reiterando, não é mais um luxo dos “noias clássicos”; não é mais uma exceção. E isso está tomando forma de morte na medida em que tende a eliminar o seu anverso: o outro deve deixar de existir, seja ele quem for. Não é esse o discurso neo(nazi)pentecostal? Não é esse o discurso dos “moderninhos alternativos” que, porventura, somente aceitam o “seu” diferente? Não é, também, a prática cotidiana cínica, que “existe racismo, mas ninguém é racista”, que elimina o racismo ao eliminar o objeto (eliminando e incorporando – suprassumindo – seu cabelo, seus modos tradicionais, suas músicas e etc.)?
Quando estiver andando e sentir a necessidade de atravessar a rua por conta de um “potencial estuprador/bandido/marginal”: cuidado, você faz parte (e toma parte) dessa inumanidade mortífera.

Subsolo Urbano! 

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Lógica inversa: Esclarecimento como contrassenso


2013 é um ano inusitado. E parece que isso vale (e valerá) para este século. É o “novo” século das “luzes”: luzes de computadores sobressaltados dentro dos quartos (para não dizer dos ônibus, salas de aula, rodas de conversa, botequins...) – e das mentes. Essas luzes que ofuscam aquelas outras, tão aclamadas e tão bem recebidas no século XVIII europeu. A novidade do/no século XXI é tão clara quanto às alvas faces da Casa Grande: a democratização. É ela a mais clara das verdades; a grande responsável por todo o processo íntimo de cada relação social. É, ainda, a grande pedra de toque de nossa época. A democracia não poderia ser mais dentro da realidade como aí está. Está confinada ao mesmo tempo em que delimita essa realidade: ela é o grande Outro que perfaz a realidade com toda a força que poderia advir do vazio. E este, o vazio, não provém do nada: ele é fruto da atividade passiva – a interpassividade – dos indivíduos com o mundo. Passividade, sim, que se apresenta formalmente como seu contrário: como interatividade, como práxis efetiva.
O espectro virtual que a tudo vê, a tudo tem acesso – mesmo que não seja por si; e, em si, seja vazio –, perfaz a realidade virtual como realidade efetiva. A substituição da realidade efetiva pela virtual é o grande passo em direção à efetivação do grande Outro longe da esfera simbólica no qual se apresenta. Ou, em outras palavras, é a subsunção da realidade efetiva por sua máscara. Tanto que a máscara toma o lugar do estatuto da “verdade” e, por isso, não há problemas na substituição: welcome to the desert of the real! E essa máscara se objetiva em cultura: ela é o que deve ser feito, acredite – os indivíduos mais sagazes e os mais imbecis – nela ou não. A crença não é o ponto. Este está situado para além dela. No céu cinza da tradição, da cultura. Diga o que tem que ser dito, expresse aquilo que o estatuto moral simbólico ordena e emana. Na atualidade, a ideologia não se dá em “camuflar” a realidade efetiva por meio do discurso ou da prática que a tudo dá outro tom. Antes, ela se dá em criar um espectro como realidade na subsunção da realidade mesma, onde o espectro, longe de esconder alguma coisa, revela o que há de mais latente na realidade e na cultura. A liberdade de expressão, por exemplo, tão proclamada como a grande mãe da era dos tolos, é exatamente o ponto de convergência: ela libera a mentira. Na medida em que o indivíduo mente conforme o escopo requisitado pela ordem simbólica, está tudo bem. O posicionamento “acrítico” que é, no segundo seguinte, condenado por todos, de norte a sul, de leste a oeste; aquele posicionamento que é “contra” (ou “do contra”), contrário ao movimento da maré, é logo tachado como reacionário, preconceituoso, mal esclarecido, semiformado etc.. A liberdade e a autonomia, neste sentido, são de simples definição: concordar com o senso comum. Não importa se acredita naquilo ou não. Não é a crença que está em jogo. Muito pelo contrário, o que está em jogo é a isenção da crença: deixe que algum outro faça isso por mim e que, assim, eu esteja liberado para pensar (e fazer) qualquer outra coisa (no texto sobre Lacan, Como ler Lacan, Žižek dá o exemplo da “roda de orações” tibetana: “eu prendo na roda um pedaço de papel em que a prece está escrita, giro-a mecanicamente [...] e a roda está rezando por mim [...], ‘objetivamente’ eu estou rezando, mesmo que meus pensamentos estejam ocupados com as mais obscenas fantasias sexuais.”). E não é isso que acontece hoje? Não é o “lamento” no muro das lamentações virtual que me libera para a inação? Não é, por falta de acaso, o grande Outro que me acolhe como um crítico, um revolucionário ou como um descontente que toma a continuidade (senão todo) do “serviço” por mim? A verdadeira práxis política já não tem mais lugar nesse espaço. Espaço, no entanto, que é todo ele ciberespaço, virtualizado mesmo nas relações mais íntimas. E não, simplesmente, por que todas as relações vão parar no muro das lamentações; antes, exatamente por conta de toda a realidade efetiva ter se tornado realidade virtual, virtualizada em ato. Será que no limiar, a fuga da realidade dura tornou a própria fuga a realidade efetiva?

Em termos mais concretos, quantos de nós sabíamos quem era quem, na década passada, que possuía algum poder político-burocrático (como “político profissional”) e, além do mais, para que e para quem se direcionava tal poder? Quantos tentaram ver a ascensão frenética – quase neurótica – do “protestantismo popular”, nas décadas passadas, como imanente ao movimento do real, ao movimento específico da sociedade, desta sociedade? Ora, a grande questão é que agora – e esse agora sempre é o que parece importar – todos, sem exceção – são politizados, críticos dos mais vorazes. Todos deixam seu “pedaço de papel [virtual] pendurado na roda de orações” e se liberam para qualquer outra atividade, seja ela contraditória ao que está escrito no “papel” (o que invariavelmente é), ou não. Somente o indivíduo suprimido pela ordem simbólica esmagadora do capital e de todo movimento da realidade subsumida é que pode, sem embargo, ser politizado sem sê-lo efetivamente: basta o ser virtualmente. Isso transformou o material básico dos fantoches: não são mais de pano, maleáveis para o vai-e-vem ideológico tradicional; são de pedra, da mais dura, aquela que nada penetra que não seja inequivocamente ordenado pela ordem simbólica. O “processo” de politização (processo no superlativo) criou seu contrário: indivíduos vazios – sentindo-se, obviamente, preenchidos (mesmo que não saibam qual a contradição de um preenchimento pelo vácuo). E não é aqui que entram os casos mais recentes? Não é aqui que uns e outros se “posicionam” amargamente? Nesse processo de politização técnica, que esvazia tudo, que solidifica tudo que antes desmanchava no ar, que se podem enquadrar os casos mais “polêmicos”. O indivíduo suprimido aparece como seu contrário. E, claro está, suas supostas manifestações mais contundentes não dizem realmente o que querem dizer? Se é para as “minorias” que um tal “religioso” se transformou no foco, ele está onde deve estar: representando as minorias (já que é uma minoria que o apoia). E não está onde está por conta da própria negatividade auto-negada do processo de “contestações” da população “altamente politizada”? E não é aqui que o esclarecimento dá um golpe de misericórdia em si mesmo, em autoflagelação? E a pergunta persiste: que fazer (se é que há algo a fazer)? 

Subsolo!