sexta-feira, 5 de abril de 2013

Lógica inversa: Esclarecimento como contrassenso


2013 é um ano inusitado. E parece que isso vale (e valerá) para este século. É o “novo” século das “luzes”: luzes de computadores sobressaltados dentro dos quartos (para não dizer dos ônibus, salas de aula, rodas de conversa, botequins...) – e das mentes. Essas luzes que ofuscam aquelas outras, tão aclamadas e tão bem recebidas no século XVIII europeu. A novidade do/no século XXI é tão clara quanto às alvas faces da Casa Grande: a democratização. É ela a mais clara das verdades; a grande responsável por todo o processo íntimo de cada relação social. É, ainda, a grande pedra de toque de nossa época. A democracia não poderia ser mais dentro da realidade como aí está. Está confinada ao mesmo tempo em que delimita essa realidade: ela é o grande Outro que perfaz a realidade com toda a força que poderia advir do vazio. E este, o vazio, não provém do nada: ele é fruto da atividade passiva – a interpassividade – dos indivíduos com o mundo. Passividade, sim, que se apresenta formalmente como seu contrário: como interatividade, como práxis efetiva.
O espectro virtual que a tudo vê, a tudo tem acesso – mesmo que não seja por si; e, em si, seja vazio –, perfaz a realidade virtual como realidade efetiva. A substituição da realidade efetiva pela virtual é o grande passo em direção à efetivação do grande Outro longe da esfera simbólica no qual se apresenta. Ou, em outras palavras, é a subsunção da realidade efetiva por sua máscara. Tanto que a máscara toma o lugar do estatuto da “verdade” e, por isso, não há problemas na substituição: welcome to the desert of the real! E essa máscara se objetiva em cultura: ela é o que deve ser feito, acredite – os indivíduos mais sagazes e os mais imbecis – nela ou não. A crença não é o ponto. Este está situado para além dela. No céu cinza da tradição, da cultura. Diga o que tem que ser dito, expresse aquilo que o estatuto moral simbólico ordena e emana. Na atualidade, a ideologia não se dá em “camuflar” a realidade efetiva por meio do discurso ou da prática que a tudo dá outro tom. Antes, ela se dá em criar um espectro como realidade na subsunção da realidade mesma, onde o espectro, longe de esconder alguma coisa, revela o que há de mais latente na realidade e na cultura. A liberdade de expressão, por exemplo, tão proclamada como a grande mãe da era dos tolos, é exatamente o ponto de convergência: ela libera a mentira. Na medida em que o indivíduo mente conforme o escopo requisitado pela ordem simbólica, está tudo bem. O posicionamento “acrítico” que é, no segundo seguinte, condenado por todos, de norte a sul, de leste a oeste; aquele posicionamento que é “contra” (ou “do contra”), contrário ao movimento da maré, é logo tachado como reacionário, preconceituoso, mal esclarecido, semiformado etc.. A liberdade e a autonomia, neste sentido, são de simples definição: concordar com o senso comum. Não importa se acredita naquilo ou não. Não é a crença que está em jogo. Muito pelo contrário, o que está em jogo é a isenção da crença: deixe que algum outro faça isso por mim e que, assim, eu esteja liberado para pensar (e fazer) qualquer outra coisa (no texto sobre Lacan, Como ler Lacan, Žižek dá o exemplo da “roda de orações” tibetana: “eu prendo na roda um pedaço de papel em que a prece está escrita, giro-a mecanicamente [...] e a roda está rezando por mim [...], ‘objetivamente’ eu estou rezando, mesmo que meus pensamentos estejam ocupados com as mais obscenas fantasias sexuais.”). E não é isso que acontece hoje? Não é o “lamento” no muro das lamentações virtual que me libera para a inação? Não é, por falta de acaso, o grande Outro que me acolhe como um crítico, um revolucionário ou como um descontente que toma a continuidade (senão todo) do “serviço” por mim? A verdadeira práxis política já não tem mais lugar nesse espaço. Espaço, no entanto, que é todo ele ciberespaço, virtualizado mesmo nas relações mais íntimas. E não, simplesmente, por que todas as relações vão parar no muro das lamentações; antes, exatamente por conta de toda a realidade efetiva ter se tornado realidade virtual, virtualizada em ato. Será que no limiar, a fuga da realidade dura tornou a própria fuga a realidade efetiva?

Em termos mais concretos, quantos de nós sabíamos quem era quem, na década passada, que possuía algum poder político-burocrático (como “político profissional”) e, além do mais, para que e para quem se direcionava tal poder? Quantos tentaram ver a ascensão frenética – quase neurótica – do “protestantismo popular”, nas décadas passadas, como imanente ao movimento do real, ao movimento específico da sociedade, desta sociedade? Ora, a grande questão é que agora – e esse agora sempre é o que parece importar – todos, sem exceção – são politizados, críticos dos mais vorazes. Todos deixam seu “pedaço de papel [virtual] pendurado na roda de orações” e se liberam para qualquer outra atividade, seja ela contraditória ao que está escrito no “papel” (o que invariavelmente é), ou não. Somente o indivíduo suprimido pela ordem simbólica esmagadora do capital e de todo movimento da realidade subsumida é que pode, sem embargo, ser politizado sem sê-lo efetivamente: basta o ser virtualmente. Isso transformou o material básico dos fantoches: não são mais de pano, maleáveis para o vai-e-vem ideológico tradicional; são de pedra, da mais dura, aquela que nada penetra que não seja inequivocamente ordenado pela ordem simbólica. O “processo” de politização (processo no superlativo) criou seu contrário: indivíduos vazios – sentindo-se, obviamente, preenchidos (mesmo que não saibam qual a contradição de um preenchimento pelo vácuo). E não é aqui que entram os casos mais recentes? Não é aqui que uns e outros se “posicionam” amargamente? Nesse processo de politização técnica, que esvazia tudo, que solidifica tudo que antes desmanchava no ar, que se podem enquadrar os casos mais “polêmicos”. O indivíduo suprimido aparece como seu contrário. E, claro está, suas supostas manifestações mais contundentes não dizem realmente o que querem dizer? Se é para as “minorias” que um tal “religioso” se transformou no foco, ele está onde deve estar: representando as minorias (já que é uma minoria que o apoia). E não está onde está por conta da própria negatividade auto-negada do processo de “contestações” da população “altamente politizada”? E não é aqui que o esclarecimento dá um golpe de misericórdia em si mesmo, em autoflagelação? E a pergunta persiste: que fazer (se é que há algo a fazer)? 

Subsolo! 


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