Após a baixa da névoa, talvez seja o
momento (quase) adequado a intentar alguma reflexão. Já que o Galo Gaulês
marxiano, que desperta na alvorada histórica e canta com força, não despertou
tão cedo – ou, de outra forma, talvez tenha despertado meio perplexo e,
cooptado pelas raposas, deixou o galinheiro livre para o “sono da Razão” –, é
hora de voltar à coruja hegeliana. Contudo, não é necessário se analisar a
totalidade dos acontecimentos, e tampouco se têm condições para tal empreitada.
O objetivo é, quiçá, voltar atenção para os mínimos detalhes, para as pequenas
coisas que passam despercebidas – ou mal percebidas.
Vou me valer dos apontamentos de alguns
amigos que li por esses dias, além de vários apontamentos que irromperam com
força por todos os lados (apontamentos que, no geral, considero pertinentes,
partindo de uma posição não estanque
de classe e subjetiva – dizia Adorno, mais ou menos, que toda interpretação é
subjetiva e ativa, parte-se das condições complexas do ponto de vista do indivíduo
que intenta interpretar...).
1.
Para alguns, as “manifestações”
surgiram do nada. Para outros, ainda que surgindo no nada, serviram como um
trampolim anacrônico e neurótico para reivindicar o absurdo, para não refletir
e exigir mais pasto às vacas. Esqueceu-se de tentar compreender que não há
homogeneidade em lugar algum. Não há “brasileiro” que se dedique à bandeira de
forma plena e desinteressada. Existem distinções gigantes entre os habitantes “do
lado de lá e de cá da ponte”. Aqui – do lado de cá – os de baixo, de uma forma
ou outra, sempre resistiram; do lado de lá, os interesses retrógrados sempre
persistiram. O que parece, à primeira vista, é que estes, com toda força da “rebeldia”
da juventude, tomaram como causa comum uma pauta. Mas só parece. No decorrer,
grosso modo, foram “mostrando a cara” de fato – ou a escondendo, visto as máscaras
sem sentido (e máscaras lembram, talvez numa digressão, o Rousseau do 1º
Discurso, aquele sobre as ciências e as artes...).
As “manifestações” não surgiram do nada – “como um raio caído de um céu sem nuvens” –
e nem não iam para lugar algum. Grupos organizados existem há muito tempo e
reivindicam há muito tempo debruçando-se sobre uma pauta concreta, específica –
que, claro, não ignora as conexões com outras pautas. Movimentos de vários
tipos, à esquerda, existem tanto dentro das universidades (as “grandes”, pelo
menos), quanto nas periferias. No entanto, o que mais saltou aos olhos pode se
resumir em duas coisas, que se desdobram por dentro: a) uma indignação coletiva quanto aos vários âmbitos do processo
sócio-político – a1)
indignação, em vários níveis, abstrata e ideológica; a2) a indignação ideológica se dá num vácuo político – um
“sem rumo” em busca de um “tudo imediato” – que é facilmente cooptada por um
discurso simplista, aparentemente isento, e retrógrado (não vou usar a palavra “reacionário”,
pois já disseram que está “batida”); a3)
uma posterior “contrarrevolta” à direita que surge no meio da revolta, ou a
toma de assalto; b) uma
despolitização das “massas” que é facilmente politizada (cooptada
ideologicamente) por fora. Neste âmbito, cabe ressaltar que não se trata de uma
politização dos indivíduos anterior à própria práxis política. Isso seria
utópico e absurdo. Mesmo assim, é importante lembrar que os movimentos
históricos de revolta se deram, quase sempre, em torno de uma politização do
próprio movimento, pelo movimento histórico. Mesmo os movimentos dos
trabalhadores mais pauperizados foram pautados por objetivos claros e
específicos, que, claro, em vários momentos extrapolavam suas próprias
objetividades, mas não a perdiam de vista. (Penso, aqui, no filme Germinal, por exemplo. Ou em Queimada – filmes, entre outros, que
sempre são comentados ou assistidos em formações políticas de esquerda).
Quanto aos pontos A (a1, a2 e
a3), indica-se o
seguinte: um vácuo político – no sentido de não ter objetivos claros, definidos
e o “tomar partido” –, levou as massas a reivindicarem tudo sem, ao menos,
perceber o que e como se queria, além de a “indignação” da direita e das
classes médias em relação ao governo Petista, como se fosse o “mau do século”
por si só. O discurso fácil da direita altamente organizada invade até aquela
direita desorganizada e massificada, que reivindica a partir de sua “subjetividade
de classe” como um cão raivoso amalgamado a sua egóica criança mimada que
define seu Eu. E também invade, o discurso da direita organizada (desde as
forças político-midiáticas massivas às organizações “secretas” dentro e fora
dos partidos políticos da burguesia e sua sombra mal formada), o vácuo político
dos dominados que, quiçá, viram ali naquelas manifestações um momento privilegiado
para soltar um grito preso na garganta por muito tempo. Aliás, aqui já se
vislumbra, ainda que de forma resumida e grossa, as conexões complexas de ambos
os pontos, A e B.
2.
Aqui, não preciso dizer nada, pois
a intenção é falar em “tomar partido” e “partido político”, no geral. Remeto ao
textículo de meu amigo Marcelo Tomassini:
“Sobre política e partidos. Uma reflexão.
Será que o jeito
é me filiar a REDE da Marina Silva? E exercer minha individualidade
independente. Como se o problema fosse só a questão organizativa ou nome
“partido”? Ou o MPL não é um movimento social que assume também uma forma de
organização? Nos jornais, na mídia, todas as falas deles estavam conectadas. Ou
seja, partiu de uma discussão coletiva deles e tirou-se uma linha política
comum. Por isto teve uma fala comum no movimento. Todos diziam foco na
revogação do aumento, e a repressão é a tarifa, além da crítica à polícia.
Em outras
organizações temos o centralismo democrático. Discute-se coletivamente, vota-se
se for caso, tira-se uma política comum e todos que fazem parte do partido a
defendem no movimento. Independente do nome que partidos e movimentos sociais
dão para esta prática, seria possível construir o movimento sem esta
organização? O problema a meu ver é que se confunde organização, programa, e a
estrutura de regime.
Organização é a
forma que a política encontra para se manifestar. Pode ser um movimento social,
pode ser um sindicato, pode ser uma associação, pode ser um partido, pode ser
um coletivo e muitos etc..
Programa: é o
conteúdo histórico, teórico e político a ser manifestado resultado do acúmulo e
das experiências produzidas coletivamente durante gerações. E aí tanto MPL
quanto um partido expressam um determinado nível do que seria o programa em sua
prática cotidiana.
A estrutura de
regime, no caso, parlamentar: é o resultado dos regimes produzidos como legado
das revoluções burguesas. Estes regimes por mais que abarquem as contradições
de classe da sociedade, as canaliza para um modelo, uma forma determinada de se
fazer política. A ressonância portanto por fora deste modelo tende a ficar
comprometida. Além, é óbvio, que este modelo favorece a perpetuação de uma
determinada classe social.
Quando se
engessa a organização e o programa, não se os considera como históricos, temos
a crise que vivemos hoje. E ai sim, cabe principalmente a esquerda, organizada
em partidos ou não, refletir sobre suas práticas muitas vezes engessadas em sua
tradição, ou em sua burocratização.
Quando se
engessa programa e organização se fortalece a cooptação a um determinado regime
político. Ou será que o PT de hoje é o mesmo PT da década de 80? Sua adaptação
ao regime é resultado de que? Será que todos os movimentos sociais são
independentes, tem formas de organização democráticas, horizontais simplesmente
por não serem partidos? Será que temos que considerar que os indivíduos não
pertencem há uma classe social ou estrato de classe e expressam interesses
comuns a isto?
Temos que ter
cuidado a este ataque aos partidos isolando o problema da política somente em
sua forma de organização. Já tive experiências políticas com pessoas que diziam
ser contra partidos, mas reproduziam uma prática política institucional mais
burocrática que muito partido que está no poder.”
Cabe acrescentar a isso que o ranço que
existe da classe média e da burguesia é quanto ao Partido dos
Trabalhadores estar no poder. Uma digressão rápida à história recente
do Brasil mostra que não é o PT o grande vilão. Ele não se isenta. Porém, é uma
estrutura sócio-política comprometida. Os governos federais anteriores (FHC,
Collor, Sarney, os militares...) não foram tanto quanto “venenosos”? E não é a
própria formação do Brasil algo “cordial”, “cínica” e pautada no jeitinho
brasileiro? Enfim, isso não é uma defesa ao PT. Muito pelo contrário:
aquele que aceita entrar na estrutura e não intenta modificá-la, não está nada
isento da crítica teórica e prática. Mas uma crítica à direita, cínica e fácil,
não convence quem tem um pouquinho de massa encefálica...
3.
Junto a todo esse amalgama maluco,
surgem várias abstrações neuróticas, do protestar quanto a tudo, sem se pensar
em nada. É o protesto mais fácil: apontasse para o outro e isenta-se da crítica
(Obs.: não usarei, em hipótese
alguma, o termo crítica como sinônimo
de culpa. Não se trata de algo moral,
ou ético. É uma questão sócio-histórica e política. Aliás, Maquiavel já havia
desvinculado a política da ética. Somente um “retrógrado” faria uma crítica
ético-moral sem discernimento histórico-social). Aqui, é importante, em âmbito
de exemplo concreto, remeter às pequenas
coisas cotidianas; em âmbito sócio-histórico, pensar na formação do
indivíduo moderno e, especificamente, refletir sobre a formação do Brasil.
Em primeiro plano, cabe colocar enfaticamente que lutar
contra a corrupção, por exemplo, é, por um lado, isentar-se da formação
histórica e esquivar-se da crítica, e, por outro, uma pauta moralista de uma
direita (quase) fascista e ideológica. Junto a isso, esquecem-se quais as “concretudes”
das pautas de reivindicações desse tipo. O que significa lutar contra a
corrupção, concretamente? Ora, as “ruas” disseram nesses dias: é lutar contra
algo que foi colocado, ideologicamente, como corrupção por excelência: a
política, ou melhor, a “governança” do PT. Um exemplo prático (já que não sei
desenhar): seria bom um mundo sem corrupção? Sim, seria. Seria tão bom que
fulano que vai para a manifestação pedir o fim da corrupção não corrompesse...
Que ele não tentasse levar vantagem em nada; que também não fizesse,
supostamente escondido e solitário, perversidades que não faz no público...
Enfim, não sei desenhar... A Corrupção é algo histórico. E não foi com escambo “jeitinho
brasileiro” que, segundo a “historiografia oficial”, os do além-mar tiravam Pau-brasil
a rodo daqui? E não foi com “corrupção” que se deu toda a história do Brasil,
em âmbito generalizado?
Sem aprofundamentos, é mais ou menos isso...
Em segundo lugar, junto a toda essa neurose, surge movimento virtual-esquizofrênicos “pedindo” toda
sorte de coisas bizarras. Uma delas é o impeachment.
É mais ou menos assim: faz-se “revolução” (sic!) dentro da lei. E gentes se
debatem pedindo impeachment de todo mundo. “Queremos impeachment da presidenta”;
“queremos impeachment do governador”; “queremos impeachment do presidente do senado”;
“queremos impeachment do pica-pau”; “queremos impeachment da Diabolin”... E
assim vai o carro sem rodas das manifestações bizarras.
No entanto, a grande pergunta é: para quê? Que proposta
política se tem para se pedir um “impeachment”? Trocar de líder? Ora, e não é Kant que fala no texto sobre a Aufklärung
das vacas que não conseguem sair do carrinho pois foi dito a elas que não podem
andar? E não é isso, esse troço de impeachment, pedir líderes morais e
retrógrados que sejam mais rígidos e severos, beirando ao totalitário? E não é
a necessidade de um líder “forte” que se quer? A República de Weimar que o
diga! A classe média, principalmente a paulistana, se assemelha à criança
mimada que “bota o terror” e, inconscientemente, no fundo, pede limites para o
pai, exige um pai mais “autoritário”... Mas ainda é um pai generoso. Pede-se um
pai autoritário, mas generoso. A figuraça recente na história é, sem dúvida,
FHC.
Enfim, não faz sentido essas reivindicações bizarras e
abstratas, que são concretamente esquizofrênicas e neuróticas. Ter um horizonte
(quase) concreto nas/para as reivindicações, sejam elas quais forem, é o mínimo
que se deve ter. Sem elas, vira-se qualquer coisa e se é facilmente cooptado
pelas “forças obscuras” – Anakin (Skywalker) que o diga!
Política não é coisa que se faz de improviso. Não se trata,
como dito, de politização individual, simplesmente. Ela é importante, mas não imprescindível.
Trata-se de horizontes concretos, politização do movimento histórico. E é
necessário discernir sobre todas essas “manifestações do Espírito” para que,
aqueles que possuem algo de crítico, consigam se posicionar legitimamente,
longe das “verdades absolutas”, mas nem por isso menos resoluto. E que se saiba
o principal: o momento de ficar em silêncio e ouvir, simplesmente; o momento de
abrir mão do que se pensa, refletir e mudar; o momento de saber dar passos
atrás para continuar andando para frente.
Subsolo Urbano!