sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Sobre médicos, doentes e...


1.      Quando se fala em escravidão a primeira “imagem” quem vem é de assombro: a memória viaja e retém 400 anos em um instante. Quem a profere, mal sabe o que está dizendo, a carga imensamente pesada que isso possui. Eles não sabem o que fazem, o que dizem. Não sabem do tráfico de latino-americanos para as imediações de MT, MS... para o Brás e Pari – para não estender mais. Não sabem o que são os grandes latifúndios – invariavelmente “grilados” – que “destroem vida para colher vida (mecânica)”. Ou melhor: sabem! Mas fingem não saber, esquecem-se para que os seus discursos sejam moldados com toda a carga abstrata e histórica do termo, para quem, desse mesmo termo, passou longe. Invariavelmente, são os mesmos que escravizam e não sabem! Que são os remanescentes vivos, a história manifesta e incorporada dos Senhores, Capitães-do-mato, Feitores: está tudo ali, encarnado naqueles corpos, naquelas palavras proferidas aos urros.
2.      Seus argumentos são: não irão receber todo o montante do que deveriam receber; estão tomando nossos lugares (empregos que, aliás, foram veementemente recusados!); estão a serviço de um “ditador/país/governo” a quem devem se submeter. Argumentos... Ou talvez, apenas, palavras jogadas ao vento, já que não dizem nada, apenas tentam ecoar no vácuo. Comparação esdrúxula, porém, perspicaz: fulaninho viaja o mundo como “consultor/engenheiro/representante” – ou seja o que for! – de uma “grande multinacional”. Esta, por sua vez, cobra pelos serviços, e cobra caro. Consequência: fulaninho feliz da vida pelo status de ter um emblema bem desenhado estampado em sua camisa “corporativa”. Recebe o mesmo salário, mais um “agrado” – quando muito. O montante, a grana grossa fica com quem? Quem o paga? Não é, é claro, nenhum dos governos ou nenhuma das filiais/empresas as quais visitou. Outro exemplo, mais “simples” para aqueles que não querem ver, mas não estão cegos: cicraninho tem TV por assinatura em casa. O decodificador dá pau. Ele liga para a empresa que presta serviço e logo vem um técnico. O serviço é cobrado, digamos, um valor extra na assinatura mensal do cicraninho. Suponhamos, 500 mangos. O técnico, como é de conhecimento comum, não ganha por comissão, então, nada desses 500 mangos vai para o ordenado dele. E, quando muito, ganha uma gorjetinha do cicraninho. (Ainda que nenhum real seja cobrado a mais na fatura, o tal técnico não recebe nada do “consumidor”). Fora isso, ninguém o chama de escravo, não, visto que ele presta serviço para uma “empresa” e esta é quem deve prestar contas a ele. É óbvio e patético. Por que, então, em um acordo diplomático, ou seja, não um acordo entre governo e indivíduos, pessoas físicas, tais pessoas deveriam receber diretamente deste governo, sendo que não estão trabalhando para ele, e sim para o seu próprio governo? Não dá para entender. Ou talvez dê...
3.      Bem ou mal, gostem todos ou não, tenham críticas e etc., é o primeiro governo que temos, no Brasil, que “barra”, mesmo que de forma parca, a explosão da desigualdade social. É o primeiro que leva – ainda que de forma altamente criticável – políticas públicas aos confins do país: sejam esses confins o Norte do Pará, do Amazonas, seja o extremo leste de São Paulo, capital. Após a suposta abertura democrática, em 1985 – ou melhor, só em 1989 com as primeiras eleições efetivas –, somente em 2002, com a chegada do PT ao poder central que tivemos algumas políticas públicas que, de fato, beneficiaram os mais pobres. Gostem ou não do governo de centro do PT – eu não gosto, tenho críticas, várias – é inegável que há algo que foi feito. Não cabe, aqui, elencá-las. Poderia ter sido diferente, o PT poderia ainda ser de esquerda – coisa que deixou no início dos anos 1990 – e ter efetivado muito mais. Mas isso são apenas abstrações. Enfim, a própria ordem do capital – e nada na contramão dela – fez com que os mais pobres, ou parcela destes, deixassem de ser “tão pobres” assim, puderam terminar o ensino médio e ingressar no ensino superior (e ainda mais); puderam consumir para além do mercadinho, da farinha de mandioca...; em suma, puderam ter o mesmo status que a classe média decadente – e só porque ela é decadente. Não se trata de dizer que a Senzala agora parece a Casa-Grande desses supostos Senhores. Antes, é a própria Casa-Grande que diminuiu, que é mais modesta, e a Senzala, por sua vez, cresceu e “se modernizou” um tantinho.
4.      Essa guinada histórica é propiciada pela própria ordem capitalista: a produção de mais tecnologia, sua inserção nas coisas do dia-a-dia, traz a reboque uma gama de consumidores. Sem adentrar nisso – pois o texto ficaria pesado demais –, trata-se da produção de um estilo de vida, de uma nova forma de sociedade, ainda que essa nova forma seja o desdobramento interno da precedente. As consequências disso são mais que manifestas, ainda que escamoteadas – ou há tentativas fartas de se escamotear: uma tentativa deliberada de totalitarismo. Não, o termo não é “pesado” para o contexto. Totalitarismo não é apenas uma forma de Estado que tende a se hegemonizar com o esmagamento de todos seus opostos; tampouco uma forma política de mão única. É, antes de tudo, uma sociedade, junto a uma sociabilidade, não reflexiva e intolerante e suas múltiplas manifestações. O Totalitarismo permite a multiplicidade de manifestações. Contudo, todas culminam para um mesmo princípio, e é aqui que reside o âmago totalitário: a negação total de toda diferença, de toda possibilidade, ainda que abstrata e por menor que seja, de mudança. Diriam os mais “radicais”: é o fetiche da existência, o valor (de troca) de todas as coisas. É necessário que tudo se iguale por meio de um vazio, de uma abstração concreta.
5.      O racismo, a homofobia, xenofobia e tudo mais, não é uma fissura no Real da sociedade. Antes, é a expressão necessária desse Real. As tentativas de escamoteá-los, de esmagá-los é, na contramão da história, a tentativa de encobrir inclusive as batalhas que se devem travar contra tais formas de discriminação. O Real da realidade efetiva somente vem à tona quando se rompe o círculo restrito do constrangimento e do medo e se expressa por meio dessas formas. E é exatamente aí que podemos combatê-las de forma radical, teórica e pratica. É quando a fantasia, que é um componente ordenador e organizador necessário da realidade efetiva – ou seja, a realidade efetiva enquanto totalidade ideológica –, se rompe e dá lugar ao seu núcleo Real. É, igualmente, aqui que a liberdade e igualdade abstratas – trazidas com as revoluções burguesas em forma de ideologia – podem ser combatidas e vertidas, colocadas face-a-face com seu outro Real: somente aqui as falsidades dessas práticas podem ser encaradas sem máscaras. É quando o grande mote fantasioso “não somos racistas” cai por terra e pode ter o dedo radical apontado ao seu nariz. É, por fim, quando a saúde abstratamente ideológica dá lugar à doença do Real. É aqui que a dialética pode agir com toda sua força perturbadora...
6.      Está na moda “se manifestar”. A cultura técnica atual impõe isso como imperativo. Esquece-se, contudo, que toda manifestação tem uma carga dialética que não pode ser escondida ou abandonada. Esquece-se, ainda, que toda manifestação não tem somente seu elemento concreto, prático, aquele do “agora”, e esse “agora” indicando que “estamos aqui e agora contra isso ou aquilo”, sem que se saibam os porquês... Elas, as manifestações, sempre carregam uma carga que não pode ser medida pelo fato, pelo dado concreto: sempre apontam para um dever-ser que nega a realidade efetiva e concreta. E o problema está aí. O núcleo central da dialética é a ideia de Aufheben – negar e conservar, ao mesmo tempo; superar mantendo algumas determinações: é, por fim, negação determinada. E essas negações determinadas indicam que é necessário avançar, suprimir o que impede o progresso, mantendo aquilo que o impulsiona. O que leva a cabo essa ideia de negação determinada é a ideia de Aufklärung, o Esclarecimento. A dialética, desde Hegel (ou melhor, de Kant) à Adorno, pelo menos, é devedora da tradição Iluminista, que se pauta por uma necessidade de renovação, de mudança, de negações determinadas em direção ao Progresso, por mais que este nunca seja um alvo concreto, e sim uma necessidade imanente da própria dialética. É a ideia de movimento, de negar e superar (suprassumir), ainda que este movimento não seja linear e nem tenha um fim último claro e preciso. E é exatamente nisso que a dialética se contrapõe ao positivismo, ao historicismo. É aqui que se pode postar a discrepância, ou o paradoxo das manifestações atuais: algumas – as mais “birrentas” e “barulhentas” – organizam-se em vistas do retrocesso a partir da fantasia que ordena o Real (é mais ou menos a crítica que Marx faz ao Hegel da Filosofia do Direito que vê a superação das contradições da sociedade civil-burguesa num retrocesso: as corporações de ofício, que, na realidade efetiva, já tinham perdido seu caráter histórico).
7.      O retrocesso atual se dá mais ou menos nesses termos: as coisas devem ir (ou voltar) para seus lugares de origem. Isto é, ficarem estáticas em suas “acomodações”, por mais que tais acomodações sejam sempre a ideia perfeita que o “eu” faz do “outro”, nunca o que o “outro” faça de si mesmo (ainda que isso não mude muita coisa). Uma parcela da sociedade se “manifesta”, agora, por ter sido jogada aos trancos e barrancos no mundo da realidade efetiva, onde as coisas de fato acontecem – para além do Alice’s Wonderland. Por outro lado, ocupar a esfera pública, o espaço público no intuito de “contestar” algo (e é “algo” mesmo, pois grande parte foi um grande “qualquer coisa”), tornou-se uma premissa necessária de qualquer indivíduo. Com a expansão – ainda que desordenada e ideológica – da possibilidade de contestação do mundo, todos se veem no direito – legítimo até aqui – de se pronunciar criticamente. Mas há um problema: há um pronunciamento, esquece-se, ou melhor, sobrepuja-se a crítica e a joga para debaixo do tapete. O que se faz, no mais dos casos, é a “privatização do espaço público”. Além, há uma privatização de um público que já era a expressão privada: há uma reprivatização do espaço público (que já era, antes disso, “público” apenas no nome). É aqui que os desejos recalcados, latentes – ideológicos – da pequena-burguesia voltam ao cenário principal: eliminar o outro, primeiro ato! [Aliás, sobre a questão do “outro” como mote, já esbocei algo AQUI].
8.  Um ranço histórico da classe média, média alta e da burguesia brasileiras quanto aos mais pobres, aos pretos e etc., é um dos motes atuais. Quando estes começam a tomar a cena atual, de modo ou por via política, no qual nem tudo dá para ser escamoteado pelo discurso oficial – em outras palavras, não há uma rápida assimilação pela “indústria cultural” –, a intolerância e a raiva latentes pululam ou retornam com mais espuma nos lábios. Tais, nesse sentido estrito, almejam eliminar qualquer diferença física e, principalmente, simbólica. No macrocosmo, para esses que ora se “manifestam”, o PT representa tudo isso. Nos âmbitos menores – menores só na palavra – a ocupação de espaços antes simbolicamente fechados aos pobres causa o furor da classe chupim. Ainda, que fique claro: como ideologia, como totalidade falsa e fantasiosa, tudo isso não se reduz a uma parcela da sociedade, uma classe; antes, é a expressão ideal da realidade efetiva como fetiche. O médicos cubanos – que não serão os únicos, mas foram o bode expiatório, por vários fatores, desses chupins – são exemplos vivos. Os meninos Mc’s, e toda a “subcultura” que se criou em torno das expressões efetivas e simbólicas do Funk, são outro aspecto disso. Como exemplificações concretas, isso basta. Por fim, não é nada muito novo, contudo, também, não é nada que deva ser deixado passar: como diria Florestan, mesmo num contexto outro, “contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres”.


Diálogos do Subsolo Urbano!

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