Sexta-feira 13. Sombria,
cheia de superstições, cheia de assombrações. Carregada de tudo que simboliza.
De um lado, os filmes trash: pessoas
sendo esquartejadas; ou filmes de terror: assombrações em casas, demônios
incorporados. De outro, torturas, mortes por motivos mínimos – ou mesmo sem
motivos –, gente sumindo quase que fantasticamente.
Há 45 anos
também tivemos uma sexta-feira 13: 1968.
O Estado de exceção é instaurado no
Brasil com o AI-5 (Ato Institucional
número 5): fantasmas, dos mais medonhos, saindo dos quartéis e do chão das
praças. Pessoas desaparecendo – temporariamente via aeroporto ou para sempre,
pela porta da frente da ditadura: tortura, morte, cemitérios clandestinos,
mar... Penumbra seguida de plena escuridão; assombrações e pesadelos que ainda
persistem – vivos na história, no cotidiano.
Os fantasmas do
presente e do passado fizeram desembocar nessa tragédia repetida. Por um lado, o
momento único em nossa história no qual o espaço público ganharia, ao menos um
pouco, o que lhe cabia: a sociedade pertencente a si própria, começando a
livrar-se das mãos de mando dos senhores. Por outro, o medo de que tudo isso
pudesse se tornar efetivo, por parte dos senhores, da elite, medo de perder,
mesmo que aos poucos, os privilégios sangrentos e sádicos vigentes desde o
início da colonização, fez com que a elite – não só a brasileira, mas a
americana em geral (não confunda, caro leitor, ‘americana’ com estado-unidense
simplesmente) –, temerosa e temerária, tomasse a dianteira da reação. A
revolução cubana assustou verdadeiramente esses senhores. Nenhum país, o Brasil
menos ainda, tinha capacidade de cumprir a tarefa que os cubanos – e um, ou
melhor, dois argentinos – cumpriram: não havia, aqui, qualquer possibilidade
revolucionária já que não havia processo histórico que levasse a isso. Mesmo
assim, a reação visando o esboço, ainda que parco, de democratização com Jango,
desembocou na tomada de poder de modo golpista e violento. A “grande” família
brasileira – família estendida, fruto da ‘ideia’ de família aqui composta
historicamente como círculo ampliado em torno do senhor de mando – abraçou com
todas as forças suas fantasias sombrias, mas de paz: tudo aquilo que pudesse
‘manter’ o estado de coisas vigente, fosse da forma que fosse, deveria ser
feito.
Criaturas sombrias
saíram dos buracos sujos no qual foram produzidas e vieram à luz para lambuzar
a realidade com sua ‘porca medida’: a exceção
permanente. Na sequência, roedores cinzentos como braço direito e como
linha de frente do ataque violento tomam a cena de assalto para que dela se
fizessem perpétuos. Herdeiros diretos e legítimos dos Capitães-do-mato e
Bandeirantes, seus ancestrais gloriosos, os ratos servem até hoje para deixar a
realidade pública sempre com o mesmo aspecto de seu bueiro e, ainda mais, com o
feitio asqueroso da caverna insólita – mas concreta – do ‘Dragão mimado’,
herdeiro, este, do Senhor de engenho e do Coronel. Ratos transmitem raiva. Suas
mordidas ferozes e irascíveis, por completo irracional pois meio indiscreto da
imposição de suas particularidades ao âmbito público, só se acirram com a luta
de classes: quanto mais diametral-oposto for a vítima, mais feroz e raivoso é o
rato. A Polícia Militar atual, criação desse período, não dá o braço a torcer –
ainda que torça e quebre todo braço minimamente oponente. Ela é o reflexo
histórico e a condição de atraso, está pautada na ordem do dia e sempre impõe
suas vontades – e as vontades da burguesia de engenho – à força. Quando se pede
para que se esfacele isso, para que se tampem os bueiros e que os ratos não
mais persistam em suas irascibilidades, logo reagem como bestas-medonhas, como
mortos-vivos históricos: “os ratos não sabem morrer na calçada”.
Isso não serve
apenas para trazer frescor à memória. O que naquela sexta-feira 13 se fez – cemitério maldito; volta dos mortos vivos etc. – assombra, obstrui e determina cada
passo dado no presente. A abertura em 1985 – talvez melhor, em 1988 com a
Constituinte e em 1989 com as eleições “diretas” – só se efetivou no âmbito
político – e, mesmo assim, se efetivou como sombra, como assombração e não com
força de realidade. A democracia só aparece no cenário como fantasma e
fantasia: no plano social, tudo que deveria ser superado, que deveria deixar de
existir para que realmente se tivesse força democrática, não foi removido da
cena. É como um teatro no qual o segundo ato só pode vir depois do primeiro,
com todo o cenário anterior removido e outro completamente novo se fazendo
existir. No entanto, aqui, as coisas se confundem: o primeiro ato não termina
nunca e o segundo é engolido pelo canto das sereias – esqueceu-se de amarrar
Ulisses ao mastro e colocar cera nos ouvidos dos remadores. No plano social, não há abertura ou
remodelamento algum. Tudo só pôde começar a existir com aparência de novo
quando o terreno propício e ideológico já estava sedimentado. Umas das
características intrínsecas do Brasil, suas sutilezas, é deixar o pretensamente
novo somente surgir quando não oferecer mais perigo algum: a escravidão só é
oficialmente abolida após o cenário imigratório europeu estar razoavelmente
assentado; Lula só pode subir à Esplanada após o palco já estar todo modelado e
o novo fantoche quase que completamente domado. A não abertura social – não houve
reformas de base, politização das massas, remoção e punição dos ratos e abutres
da ditadura e etc. – anula a abertura política.
No campo social
não há um Estado de exceção como exceção propriamente dita. Há uma exceção permanente, como regra básica de
domínio e manutenção da ordem para aqueles que a controlam de cima.
Historicamente, intervém também a noção confusa e desalinhada entre público e
privado: desde a casa-grande, o público é um espaço de efetivação plena dos
mandos e desmandos privados. Hoje, mais que nunca, o privado se anula no
público enquanto ele próprio se torna público: anula o público mais uma vez. O
domínio do jeitinho, âmbito social, afeta em demasia e destrói por dentro o
espaço público, de luta e de consenso. Só como fantasia, como espaço
mal-assombrado que o espaço no qual os indivíduos deveriam se efetivar
socialmente existe: não existem indivíduos sociais já que não há espaço para
que operem.
A sexta-feira 13
de 45 anos atrás não criou uma exceção, um estado de sítio transitório e, de
certa forma, efêmero: desenrolou um monstro histórico e quando se pode dizer
que esse monstro havia sido morto (1985), na verdade ele já havia se diluído e
penetrado nas almas, assim como possessões. Nosso problema: não possuímos um
exorcista social e histórico que não seja a luta lenta e permanente. Sombria e
tenebrosa, sexta-feira é hoje.
“Os mortos devem
enterrar seus mortos”
Subsolo Urbano!
no play: Clube da Esquina - Trem de Doido [1972]
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