A atualidade é
marcada por uma ampla participação dos indivíduos no debate político. Sobre
todas as esferas da vida pública, todos veem uma necessidade em opinar, estranhamente
imposta a si como uma força que impele para frente, trazendo suas concepções
mais variadas sobre os assuntos mais diversos. Todos possuem, aparentemente,
capacidade em marcar suas posições firmemente. Desde questões acerca das condutas
individuais mais simples até questões mais polêmicas envolvendo a vida coletiva,
os indivíduos trazem verdades subjetivas – e porque não isoladas e absolutas. A
respeito de tudo todos já possuem verdades prévias e completamente formadas de modo
estanque.
Para que essas
concepções fossem efetivadas, isto é, fossem postas de modo público, seria
necessário uma “esfera” (um “local”) que comportasse tais ideias e, além disso,
essas ideias, ou ao menos seus criadores, fossem abertas ao debate entre si. Esse
local deveria, por conseguinte, ser um espaço por definição aberto, apto a
aceitar o embate entre os indivíduos e suas ideias, e os mesmos indivíduos
aptos a enfrentar-se entre si de modo aberto, num jogo franco (ou seja,
aceitando as regras do combate: abertura frente aos argumentos, sabendo
reconhecer a validade e a força de um argumento melhor e, claro, abrindo mão do
mau argumento). A partir dessa definição sucinta e precisa, teríamos, portanto,
uma Esfera Pública.
No entanto, as
ideias postas na esfera pública existente,
não surgem do nada. Elas são produtos de indivíduos. Os indivíduos, por sua
vez, são produtos de várias relações, complexas e determinadas. No âmbito da
totalidade (isto é: da estrutura global que rege todas as relações entre os
indivíduos), temos a História. A
História é produtora dos Homens enquanto indivíduos. E ela é também produto dos
Homens enquanto indivíduos coletivos. Portanto temos: a História é produto das
relações humanas em geral e é, ao mesmo tempo, produtora de tais relações.
Ainda no domínio da totalidade, mas de modo mais específico, temos a sociedade.
Esta é produto da História, produto de relações determinadas entre os seres
humanos. Relações humanas que se diferenciam em aspectos centrais produzem
sociedades diferentes. Uma sociedade que se constitui de relações familiares
que não possuem a figura do Pai como central, será uma sociedade organizada de
forma diferente em relação à nossa. Todavia, sociedades complexas como a nossa “saem”
do controle dos indivíduos e, assim, são produtos não mais deles, mas das
classes sociais, compostas por esses indivíduos e determinada por caracteres relacionados
aos costumes e hábitos, aspectos vivenciais, aspectos culturais e,
principalmente, econômicos (como ganham a vida ou como sobrevivem dentro da
sociedade). Ainda, por “sair” do controle dos indivíduos, em alguns tipos de
sociedade a própria estrutura social se volta contra os indivíduos e as classes
sociais. Tais estruturas se abstraem do controle (não totalmente, é claro) inclusive
das classes sociais e passam a determinar o funcionamento das classes e das
relações entre elas. E se controla tais relações entre classes, também controla
as relações entre indivíduos, determinando, inclusive, como e quem será e se
comportará o indivíduo.
Nenhum indivíduo
escapa a isso. Ele é produto da História, de uma determinada sociedade, das
relações específicas que compõem tal sociedade. E isso demonstra que nenhum
indivíduo é autônomo sem conteúdo. O conteúdo da autonomia e da liberdade dos
indivíduos é também histórico: depende da formação social. Se quisermos ser
mais enfáticos, depende das relações complexas de tal sociedade, de uma ordem,
de seu direito, de sua política. Estas esferas (da ordem, do direito, da política
e etc.), por sua vez, são produtos das relações de dominação existente entre as
classes sociais. Em nossa sociedade, são produtos da relação entre aqueles que
têm a primazia do poder (não só político) e aqueles que não possuem poder, os
dominados. Estes, mesmo que não se entendam como desprovidos de poder e como
dominados, em nada alteram a substância e o conteúdo concreto da dominação.
Na sociedade,
produto de um desenvolvimento histórico, que se constitui baseada na produção
de um determinado tipo de riqueza – as posses e propriedades privadas – as
relações entre os indivíduos passam a ser determinadas por essa riqueza (e pela
sua contrapartida: a falta dessa riqueza). Essa riqueza específica, contudo, é
produto antes de ser produtora de relações sociais. Ela é produto do trabalho
humano: por meio do trabalho se transforma a natureza bruta em bens que podem
ser consumidos e trocados, ou trocados para serem consumidos.
No entanto, a
troca dos bens produzidos pelos indivíduos que possuem em seu final o consumo,
não cria riqueza. Algo produzido e trocado por um equivalente, não pode fazer
com que exista riqueza por um motivo mais ou menos óbvio: não há acumulação de
produtos por nenhuma das partes, ao menos que deixe de consumir aquilo que
precisa para sobreviver, mas aí cairíamos no absurdo de dizer que para se ter
riqueza acumulada teria que se privar das necessidades mais básicas, o que é
impensável. Mas a riqueza começa a aparecer quando surge um terceiro elemento,
que pode ser trocado por todo e qualquer outro produto: o dinheiro. O dinheiro
pode ser trocado por um bem de consumo e não necessita ser consumido, pode ser “guardado”,
acumulado. Entretanto, ainda assim teríamos um problema: dois indivíduos, um
com produto outro com dinheiro, trocam entre si. O produto passa para as mãos
daquele que antes tinha dinheiro, e o dinheiro para aquele que tinha o produto.
O que tem agora o produto pode consumi-lo e satisfazer suas necessidades. Mas o
que tem a posse do dinheiro terá que trocá-lo por um outro produto, com um
outro produtor para satisfazer suas necessidades. E assim em um ciclo infinito.
A primeira questão é: de onde veio o dinheiro, como ele apareceu nas
transações? A outra seria, ainda: como é produzida a riqueza?
Ambas as
questões podem ser sucintamente respondidas caso tenhamos em mente a história
de constituição de nossa sociedade. Em primeiro lugar, a igualdade entre
produtores, que levamos em consideração até aqui, é uma abstração. E é uma
abstração na medida em que alguns já possuem certo tipo de riqueza e
investem-na para a criação de mais riqueza. Esse investimento (e estou sendo
bem sintético, tentando não deturpar o movimento da História), cria a indústria,
isto é, alguém investe parte de seu “dinheiro” não em bens para consumir
imediatamente, mas em produtos que podem criar outros produtos, que por sua vez
podem ser trocados, sendo uma parcela consumida, outra parcela acumulada e uma
terceira investida na compra de mais produtos que produzem. Esses produtos que
produzem podem ser entendidos como máquinas e assim por diante. Porém, ainda não
temos a resposta sobre a criação de riquezas. Se tiver um tanto de dinheiro X,
para produzir qualquer coisa devo, por exemplo, investir ½ X, metade do que
tenho. Desse ½ X conseguirei produzir exatamente ½ X e, portanto, na troca,
receberei ½ X. Não há acumulação de riqueza. Ainda que pense que posso elevar o
preço do meu produto em vista de acumular riqueza, esqueço-me de pensar que
todos podem aumentar da mesma forma o preço de seus produtos (matéria-prima que
compro de alguém; maquinaria que compro de outro alguém e etc.). Além disso,
esqueço-me de pensar que não posso aumentar o preço a meu bel-prazer por conta
da concorrência: se vendo um mesmo produto que outro pelo dobro do preço, logo não
terei compradores. Mas, nesse movimento de um investir e começar e produzir em
larga escala, com auxílio de máquinas, outros passam a não conseguir mais
competir. Se tenho máquinas que produzem em 30 minutos, com custos mais baixos
portanto, o que outros sem máquinas produzem em 8 horas, logo, meu produto terá
o valor 16 vezes menor que daquele outro. Em outras palavras, para sobreviver,
o outro terá que vender seu produto por aquilo que precisaria para sobreviver
um dia (pensando em 8 horas de trabalho = 1 dia). Mas, para sobreviver à
concorrência, terá que vender o seu produto 16 vezes abaixo do seu valor real,
ou seja, igualar o valor do seu produto ao do meu produto (que foi produzido em
30 min.). Consequentemente, com aquilo que receber em troca não conseguirá
sobreviver com as condições mínimas para um ser humano (moradia, alimentação,
vestuário e etc.). O outro perde seus meios de trabalho e sua capacidade autônoma
de produtor pois não resiste à concorrência. Em contrapartida, para operar
muitas máquinas em minha indústria, não posso fazê-lo sozinho. Mas agora me
vejo na condição de possuidor dos meios de trabalho e aqueles outros, que
perderam para na concorrência, têm de arrumar um meio de subsistência. A única
coisa que lhes resta, numa sociedade que se baseia na troca, é trocar sua
própria capacidade de trabalho (suas forças físicas e mentais) por coisas ou
produtos que necessita para sobreviver. Viram trabalhadores: despossuídos dos
meios de produção passam a vender sua força de trabalho para alguém que possua
os meios de produção. Assim, aquele que ainda possui a capacidade de produzir
(o detentor dos meios de produção), tenderá a acumular riqueza. Ele irá querer
acumular para reinvestir na produção, ampliando-a e modernizando-a e, por outro
lado, para enriquecer enquanto indivíduo privado. No entanto, como vimos, não é
possível a acumulação de riqueza por meio da troca simples com outro produtor,
tampouco por meio da negação em relação às necessidades básicas. E, como vimos
também, o produtor que possui maquinaria consegue produzir em menor tempo e em
maior escala. A riqueza, então, tem seu primeiro fundamento: o tempo, ou,
melhor dizendo, a produção em menor tempo possível. Na medida em que emprego,
agora, aqueles despossuídos (dos meios de produção) em minha própria produção,
e sabendo que é por meio do trabalho que se criam produtos que podem ser
trocados, faço com que trabalhem para mim e me deem o que produziram para que
eu troque, como minha posse. Em troca lhes dou uma parte: salário. Mas, se pagar
os trabalhadores com tudo que recebo na troca, isto é, se trocar os produtos de
um dia e distribuir o “dinheiro” com a parte que cabe a cada um, não ficaria
com nenhuma parte, pois não produzi nada, apenas deixei que produzissem por
mim. E como acumulo riqueza? Não pagando integralmente os trabalhadores,
ficando com uma parte do que produziram para mim: em uma palavra, apropriação
privada. Assim sendo: por dia “meus” trabalhadores produzem 8X; pago-lhes 2X e
fico com 6X. Tomo uma parte do que fizeram. Se produziram 8X em 8 horas de
trabalho, então estou lhes pagando apenas 2 horas. Logicamente infere-se que
trabalharam 6 horas sem receber, ou seja, trabalharam de graça para a produção
de minha riqueza. E são essas 6 horas de trabalho não pago que são acumuladas
por mim. Portanto, acumulação de riqueza é igual tempo de trabalho não pago e,
consequentemente, riqueza é produto da exploração do trabalho alheio.
A grande questão
de toda essa digressão é que essa riqueza acumulada passa a determinar as
relações sociais: há aqueles que possuem os meios de produção e aqueles que
somente possuem sua própria capacidade de trabalho. Estes são explorados por
aqueles. Consequentemente, os dominantes (os possuidores dos meios de
produção), passam a determinar o andamento de outras esferas da sociedade na
medida em que os beneficie ou, ao menos, não entrave seus “negócios”.
Mas ainda há outro
nível por meio do qual a sociedade e as relações que nela acontecem são
determinadas. Aquela acumulação de riqueza é acumulação de capital. O capital é
produto do trabalho, ou melhor, da exploração do trabalho humano. O trabalho
humano direto, explorado, é criador de valor (de troca) e de capital. Todavia,
na medida em que todas as relações sociais tendem a ser definidas por uma única
esfera – esta esfera de produção econômica –, essa esfera passa a ser o núcleo
central da sociedade. Em outras palavras, a esfera de produção econômica passa
a ser esfera de produção da sociedade.
Por um lado, a produção de capital globalizada faz com que todas as relações
globais sejam determinadas pela esfera de produção de capital. Por outro, ela
toma dimensões tão amplas que saem do controle dos Homens, inclusive daqueles
que detêm o poder sobre o capital (os produtores). Ainda, na medida em que
determinada as relações sociais, que seriam a síntese (o resultado) do encontro
entre dois indivíduos ou grupos, o capital repõe, ao seu modo, essa mesma
síntese, a relação social. Dito de
outro modo, é o capital – algo abstrato e inumano – que determina como os
Homens devem se relacionar. É ele, agora na qualidade de sujeito primordial, que
determina como os indivíduos se portarão, como se comportarão, como agirão,
como pensarão, em suma, como e quem serão. O capital, numa inversão, agora
produz as relações sociais, consequentemente as pessoas, à sua imagem e
semelhança. E como é um produtor inumano, ele produz os Homens como simulacros:
como sujeito, torna os Homens objetos em duplo sentido. No primeiro sentido,
objeto como coisa: os Homens são coisificados. No sentido seguinte, os Homens
são aquilo que faz o sujeito ser sujeito, isto é, relacionam-se com o Capital
(o sujeito) como seu outro (como um objeto) – assim como nós nos relacionamos,
por exemplo, com os cachorros e nos entendemos como humanos por sabermos a nós
mesmos diferentes do animal.
Nessa sociedade,
por ser composta em sua totalidade por um sujeito inumano, não há ética. E por ser
o único sujeito, “pensa” somente a si mesmo, sua própria constituição e sua
ampliação progressiva. Os indivíduos, por serem objeto do capital, serem
produtos dele, também não possuem ética: não há como existir indivíduo ético na
medida em que o outro é apenas uma ponte para a satisfação de seu egoísmo,
reflexo do egoísmo do capital. E se não há sujeitos éticos, não é possível o
debate entre eles, já que a ética (ou a eticidade, uma ética na qual os
indivíduos se submetam a suas próprias regras, à ordem criada por si mesmos) é
aquele aspecto que permeia a vida e confere sentido coletivo e humano a ela.
Voltando-nos aos
parágrafos iniciais deste texto, se os indivíduos criam ideias para o debate
público, e se esses mesmo indivíduos são produtos do capital – e, portanto,
egoístas, fora do âmbito da eticidade, e “necessitam” somente de si mesmos para
se constituírem como indivíduos – as ideias
são produtos do capital. A própria Esfera Pública é um produto do capital.
Ela dependeria de indivíduos éticos e autônomos. Os indivíduos não são
autônomos (ou, pelo menos, não completamente; suas autonomias, quando existem,
são frágeis e instáveis). Além do mais, esta esfera pública efetiva, esta que
temos, é fruto da nossa falta de democracia real. Uma democracia determinada,
capenga e limitada, cria seus próprios problemas de forma intrínseca. Um deles
é a impossibilidade de criação ética de um debate efetivo, plena e radicalmente
democrático. Não somos seres democráticos na medida em que, primeiro, somos
egoístas ao ponto de qualquer outro indivíduo representar um nada, um vazio;
segundo, por termos nossa própria verdade como a única, absoluta e
incontestável. Mesmo pelo fato de esta nossa verdade ser uma reprodução o mais
fiel de uma sociedade e de relações coisificadas, ao não percebermos isso, ela
aparece como a verdade por si mesma.
A própria esfera
do debate público, na qual as pessoas tendem a debater sobre assuntos da vida
coletiva, não passa de uma determinação do movimento abstrato e autônomo do capital.
Os indivíduos que participam da Esfera Pública dependem de uma formação
cultural (não entenda formação cultural como formação acadêmica) que seria
criada, por um lado, no âmbito privado da família, da escola e da educação em
geral; por outro, no domínio dos conflitos entre capital e trabalho, entre
capitalistas e trabalhadores. Porém, a própria família, a escola e etc., são
produtos e reprodutores das determinações do capital, não seu contrário. Ou
seja, não possuem a capacidade de se contrapor ao poder do capital. O âmbito do
trabalho, aquele do conflito constante e latente, também tende a não mais
formar por meio da experiência prática das contradições, visto que tal
experiência tende a ser sobrepujada pelo controle ideológico, entendendo por
ideológico toda a sociedade que procura aparecer a cada indivíduo como se fosse
natural e tivesse plena harmonia, fazendo com que os problemas privados não
sejam vistos como problemas políticos ou estruturais da sociedade, mas como
problemas de uma “inadequação” dos indivíduos em relação ao seu “lugar de
direito” na sociedade.
Ainda é
necessário ressaltar que “debate” pressupõe abertura frente às contradições, às
contraposições entre ideias. Contudo, com o advento da possibilidade de acesso
imediato à informação por parte de qualquer indivíduo, os indivíduos podem “criar”
suas próprias concepções sem a necessidade da “opinião” do outro (e não
percebem que a informação a que têm acesso é, exatamente, uma dada opinião, um
ponto de vista, de um outro qualquer). O interessante é que não percebem que é
uma “opinião” de um outro porque, de fato, não
é: toda a informação que chega à grande massa de pessoas e é prontamente absorvida,
não é uma informação criada a partir de um ponto de vista de alguém: pelo
contrário, é a verdade – absoluta e intocável. Esse é um dos efeitos mais
perverso, e ao mesmo tempo mais perfeito, da chamada “indústria cultural”. É
por meio de uma produção determinada do capital – que chamamos de indústria
cultural, que é a produção da formação da subjetividade deformada dos
indivíduos –, que as verdades são produzidas. Aliás, produzidas a bel-prazer do
capital, à sua imagem e semelhança. E elas aparecem, é claro, isentas: são a
verdade, não uma verdade.
Assim sendo, essa
Esfera Pública determinada é um produto coisificado do capital. Sua aparência
mais notória, a internet (as redes
sociais etc.), é como a ponta do iceberg: é a aparência da aparência de uma Esfera Pública autêntica. Isto é: é
um epifenômeno do capital. Ela, como local de um suposto debate, é produto,
também, da falta de democracia real e, por isso mesmo, aparece como seu oposto
diametral: autoritária e vazia de substância e conteúdo.
Subsolo Urbano!
No play: Milton Nascimento: Courage [1969]