domingo, 1 de junho de 2014

A Esfera Pública do Capital

A atualidade é marcada por uma ampla participação dos indivíduos no debate político. Sobre todas as esferas da vida pública, todos veem uma necessidade em opinar, estranhamente imposta a si como uma força que impele para frente, trazendo suas concepções mais variadas sobre os assuntos mais diversos. Todos possuem, aparentemente, capacidade em marcar suas posições firmemente. Desde questões acerca das condutas individuais mais simples até questões mais polêmicas envolvendo a vida coletiva, os indivíduos trazem verdades subjetivas – e porque não isoladas e absolutas. A respeito de tudo todos já possuem verdades prévias e completamente formadas de modo estanque.
Para que essas concepções fossem efetivadas, isto é, fossem postas de modo público, seria necessário uma “esfera” (um “local”) que comportasse tais ideias e, além disso, essas ideias, ou ao menos seus criadores, fossem abertas ao debate entre si. Esse local deveria, por conseguinte, ser um espaço por definição aberto, apto a aceitar o embate entre os indivíduos e suas ideias, e os mesmos indivíduos aptos a enfrentar-se entre si de modo aberto, num jogo franco (ou seja, aceitando as regras do combate: abertura frente aos argumentos, sabendo reconhecer a validade e a força de um argumento melhor e, claro, abrindo mão do mau argumento). A partir dessa definição sucinta e precisa, teríamos, portanto, uma Esfera Pública.
No entanto, as ideias postas na esfera pública existente, não surgem do nada. Elas são produtos de indivíduos. Os indivíduos, por sua vez, são produtos de várias relações, complexas e determinadas. No âmbito da totalidade (isto é: da estrutura global que rege todas as relações entre os indivíduos), temos a História. A História é produtora dos Homens enquanto indivíduos. E ela é também produto dos Homens enquanto indivíduos coletivos. Portanto temos: a História é produto das relações humanas em geral e é, ao mesmo tempo, produtora de tais relações. Ainda no domínio da totalidade, mas de modo mais específico, temos a sociedade. Esta é produto da História, produto de relações determinadas entre os seres humanos. Relações humanas que se diferenciam em aspectos centrais produzem sociedades diferentes. Uma sociedade que se constitui de relações familiares que não possuem a figura do Pai como central, será uma sociedade organizada de forma diferente em relação à nossa. Todavia, sociedades complexas como a nossa “saem” do controle dos indivíduos e, assim, são produtos não mais deles, mas das classes sociais, compostas por esses indivíduos e determinada por caracteres relacionados aos costumes e hábitos, aspectos vivenciais, aspectos culturais e, principalmente, econômicos (como ganham a vida ou como sobrevivem dentro da sociedade). Ainda, por “sair” do controle dos indivíduos, em alguns tipos de sociedade a própria estrutura social se volta contra os indivíduos e as classes sociais. Tais estruturas se abstraem do controle (não totalmente, é claro) inclusive das classes sociais e passam a determinar o funcionamento das classes e das relações entre elas. E se controla tais relações entre classes, também controla as relações entre indivíduos, determinando, inclusive, como e quem será e se comportará o indivíduo.
Nenhum indivíduo escapa a isso. Ele é produto da História, de uma determinada sociedade, das relações específicas que compõem tal sociedade. E isso demonstra que nenhum indivíduo é autônomo sem conteúdo. O conteúdo da autonomia e da liberdade dos indivíduos é também histórico: depende da formação social. Se quisermos ser mais enfáticos, depende das relações complexas de tal sociedade, de uma ordem, de seu direito, de sua política. Estas esferas (da ordem, do direito, da política e etc.), por sua vez, são produtos das relações de dominação existente entre as classes sociais. Em nossa sociedade, são produtos da relação entre aqueles que têm a primazia do poder (não só político) e aqueles que não possuem poder, os dominados. Estes, mesmo que não se entendam como desprovidos de poder e como dominados, em nada alteram a substância e o conteúdo concreto da dominação.
Na sociedade, produto de um desenvolvimento histórico, que se constitui baseada na produção de um determinado tipo de riqueza – as posses e propriedades privadas – as relações entre os indivíduos passam a ser determinadas por essa riqueza (e pela sua contrapartida: a falta dessa riqueza). Essa riqueza específica, contudo, é produto antes de ser produtora de relações sociais. Ela é produto do trabalho humano: por meio do trabalho se transforma a natureza bruta em bens que podem ser consumidos e trocados, ou trocados para serem consumidos.
No entanto, a troca dos bens produzidos pelos indivíduos que possuem em seu final o consumo, não cria riqueza. Algo produzido e trocado por um equivalente, não pode fazer com que exista riqueza por um motivo mais ou menos óbvio: não há acumulação de produtos por nenhuma das partes, ao menos que deixe de consumir aquilo que precisa para sobreviver, mas aí cairíamos no absurdo de dizer que para se ter riqueza acumulada teria que se privar das necessidades mais básicas, o que é impensável. Mas a riqueza começa a aparecer quando surge um terceiro elemento, que pode ser trocado por todo e qualquer outro produto: o dinheiro. O dinheiro pode ser trocado por um bem de consumo e não necessita ser consumido, pode ser “guardado”, acumulado. Entretanto, ainda assim teríamos um problema: dois indivíduos, um com produto outro com dinheiro, trocam entre si. O produto passa para as mãos daquele que antes tinha dinheiro, e o dinheiro para aquele que tinha o produto. O que tem agora o produto pode consumi-lo e satisfazer suas necessidades. Mas o que tem a posse do dinheiro terá que trocá-lo por um outro produto, com um outro produtor para satisfazer suas necessidades. E assim em um ciclo infinito. A primeira questão é: de onde veio o dinheiro, como ele apareceu nas transações? A outra seria, ainda: como é produzida a riqueza?
Ambas as questões podem ser sucintamente respondidas caso tenhamos em mente a história de constituição de nossa sociedade. Em primeiro lugar, a igualdade entre produtores, que levamos em consideração até aqui, é uma abstração. E é uma abstração na medida em que alguns já possuem certo tipo de riqueza e investem-na para a criação de mais riqueza. Esse investimento (e estou sendo bem sintético, tentando não deturpar o movimento da História), cria a indústria, isto é, alguém investe parte de seu “dinheiro” não em bens para consumir imediatamente, mas em produtos que podem criar outros produtos, que por sua vez podem ser trocados, sendo uma parcela consumida, outra parcela acumulada e uma terceira investida na compra de mais produtos que produzem. Esses produtos que produzem podem ser entendidos como máquinas e assim por diante. Porém, ainda não temos a resposta sobre a criação de riquezas. Se tiver um tanto de dinheiro X, para produzir qualquer coisa devo, por exemplo, investir ½ X, metade do que tenho. Desse ½ X conseguirei produzir exatamente ½ X e, portanto, na troca, receberei ½ X. Não há acumulação de riqueza. Ainda que pense que posso elevar o preço do meu produto em vista de acumular riqueza, esqueço-me de pensar que todos podem aumentar da mesma forma o preço de seus produtos (matéria-prima que compro de alguém; maquinaria que compro de outro alguém e etc.). Além disso, esqueço-me de pensar que não posso aumentar o preço a meu bel-prazer por conta da concorrência: se vendo um mesmo produto que outro pelo dobro do preço, logo não terei compradores. Mas, nesse movimento de um investir e começar e produzir em larga escala, com auxílio de máquinas, outros passam a não conseguir mais competir. Se tenho máquinas que produzem em 30 minutos, com custos mais baixos portanto, o que outros sem máquinas produzem em 8 horas, logo, meu produto terá o valor 16 vezes menor que daquele outro. Em outras palavras, para sobreviver, o outro terá que vender seu produto por aquilo que precisaria para sobreviver um dia (pensando em 8 horas de trabalho = 1 dia). Mas, para sobreviver à concorrência, terá que vender o seu produto 16 vezes abaixo do seu valor real, ou seja, igualar o valor do seu produto ao do meu produto (que foi produzido em 30 min.). Consequentemente, com aquilo que receber em troca não conseguirá sobreviver com as condições mínimas para um ser humano (moradia, alimentação, vestuário e etc.). O outro perde seus meios de trabalho e sua capacidade autônoma de produtor pois não resiste à concorrência. Em contrapartida, para operar muitas máquinas em minha indústria, não posso fazê-lo sozinho. Mas agora me vejo na condição de possuidor dos meios de trabalho e aqueles outros, que perderam para na concorrência, têm de arrumar um meio de subsistência. A única coisa que lhes resta, numa sociedade que se baseia na troca, é trocar sua própria capacidade de trabalho (suas forças físicas e mentais) por coisas ou produtos que necessita para sobreviver. Viram trabalhadores: despossuídos dos meios de produção passam a vender sua força de trabalho para alguém que possua os meios de produção. Assim, aquele que ainda possui a capacidade de produzir (o detentor dos meios de produção), tenderá a acumular riqueza. Ele irá querer acumular para reinvestir na produção, ampliando-a e modernizando-a e, por outro lado, para enriquecer enquanto indivíduo privado. No entanto, como vimos, não é possível a acumulação de riqueza por meio da troca simples com outro produtor, tampouco por meio da negação em relação às necessidades básicas. E, como vimos também, o produtor que possui maquinaria consegue produzir em menor tempo e em maior escala. A riqueza, então, tem seu primeiro fundamento: o tempo, ou, melhor dizendo, a produção em menor tempo possível. Na medida em que emprego, agora, aqueles despossuídos (dos meios de produção) em minha própria produção, e sabendo que é por meio do trabalho que se criam produtos que podem ser trocados, faço com que trabalhem para mim e me deem o que produziram para que eu troque, como minha posse. Em troca lhes dou uma parte: salário. Mas, se pagar os trabalhadores com tudo que recebo na troca, isto é, se trocar os produtos de um dia e distribuir o “dinheiro” com a parte que cabe a cada um, não ficaria com nenhuma parte, pois não produzi nada, apenas deixei que produzissem por mim. E como acumulo riqueza? Não pagando integralmente os trabalhadores, ficando com uma parte do que produziram para mim: em uma palavra, apropriação privada. Assim sendo: por dia “meus” trabalhadores produzem 8X; pago-lhes 2X e fico com 6X. Tomo uma parte do que fizeram. Se produziram 8X em 8 horas de trabalho, então estou lhes pagando apenas 2 horas. Logicamente infere-se que trabalharam 6 horas sem receber, ou seja, trabalharam de graça para a produção de minha riqueza. E são essas 6 horas de trabalho não pago que são acumuladas por mim. Portanto, acumulação de riqueza é igual tempo de trabalho não pago e, consequentemente, riqueza é produto da exploração do trabalho alheio.
A grande questão de toda essa digressão é que essa riqueza acumulada passa a determinar as relações sociais: há aqueles que possuem os meios de produção e aqueles que somente possuem sua própria capacidade de trabalho. Estes são explorados por aqueles. Consequentemente, os dominantes (os possuidores dos meios de produção), passam a determinar o andamento de outras esferas da sociedade na medida em que os beneficie ou, ao menos, não entrave seus “negócios”.
Mas ainda há outro nível por meio do qual a sociedade e as relações que nela acontecem são determinadas. Aquela acumulação de riqueza é acumulação de capital. O capital é produto do trabalho, ou melhor, da exploração do trabalho humano. O trabalho humano direto, explorado, é criador de valor (de troca) e de capital. Todavia, na medida em que todas as relações sociais tendem a ser definidas por uma única esfera – esta esfera de produção econômica –, essa esfera passa a ser o núcleo central da sociedade. Em outras palavras, a esfera de produção econômica passa a ser esfera de produção da sociedade. Por um lado, a produção de capital globalizada faz com que todas as relações globais sejam determinadas pela esfera de produção de capital. Por outro, ela toma dimensões tão amplas que saem do controle dos Homens, inclusive daqueles que detêm o poder sobre o capital (os produtores). Ainda, na medida em que determinada as relações sociais, que seriam a síntese (o resultado) do encontro entre dois indivíduos ou grupos, o capital repõe, ao seu modo, essa mesma síntese, a relação social. Dito de outro modo, é o capital – algo abstrato e inumano – que determina como os Homens devem se relacionar. É ele, agora na qualidade de sujeito primordial, que determina como os indivíduos se portarão, como se comportarão, como agirão, como pensarão, em suma, como e quem serão. O capital, numa inversão, agora produz as relações sociais, consequentemente as pessoas, à sua imagem e semelhança. E como é um produtor inumano, ele produz os Homens como simulacros: como sujeito, torna os Homens objetos em duplo sentido. No primeiro sentido, objeto como coisa: os Homens são coisificados. No sentido seguinte, os Homens são aquilo que faz o sujeito ser sujeito, isto é, relacionam-se com o Capital (o sujeito) como seu outro (como um objeto) – assim como nós nos relacionamos, por exemplo, com os cachorros e nos entendemos como humanos por sabermos a nós mesmos diferentes do animal.
Nessa sociedade, por ser composta em sua totalidade por um sujeito inumano, não há ética. E por ser o único sujeito, “pensa” somente a si mesmo, sua própria constituição e sua ampliação progressiva. Os indivíduos, por serem objeto do capital, serem produtos dele, também não possuem ética: não há como existir indivíduo ético na medida em que o outro é apenas uma ponte para a satisfação de seu egoísmo, reflexo do egoísmo do capital. E se não há sujeitos éticos, não é possível o debate entre eles, já que a ética (ou a eticidade, uma ética na qual os indivíduos se submetam a suas próprias regras, à ordem criada por si mesmos) é aquele aspecto que permeia a vida e confere sentido coletivo e humano a ela.
Voltando-nos aos parágrafos iniciais deste texto, se os indivíduos criam ideias para o debate público, e se esses mesmo indivíduos são produtos do capital – e, portanto, egoístas, fora do âmbito da eticidade, e “necessitam” somente de si mesmos para se constituírem como indivíduos – as ideias são produtos do capital. A própria Esfera Pública é um produto do capital. Ela dependeria de indivíduos éticos e autônomos. Os indivíduos não são autônomos (ou, pelo menos, não completamente; suas autonomias, quando existem, são frágeis e instáveis). Além do mais, esta esfera pública efetiva, esta que temos, é fruto da nossa falta de democracia real. Uma democracia determinada, capenga e limitada, cria seus próprios problemas de forma intrínseca. Um deles é a impossibilidade de criação ética de um debate efetivo, plena e radicalmente democrático. Não somos seres democráticos na medida em que, primeiro, somos egoístas ao ponto de qualquer outro indivíduo representar um nada, um vazio; segundo, por termos nossa própria verdade como a única, absoluta e incontestável. Mesmo pelo fato de esta nossa verdade ser uma reprodução o mais fiel de uma sociedade e de relações coisificadas, ao não percebermos isso, ela aparece como a verdade por si mesma.
A própria esfera do debate público, na qual as pessoas tendem a debater sobre assuntos da vida coletiva, não passa de uma determinação do movimento abstrato e autônomo do capital. Os indivíduos que participam da Esfera Pública dependem de uma formação cultural (não entenda formação cultural como formação acadêmica) que seria criada, por um lado, no âmbito privado da família, da escola e da educação em geral; por outro, no domínio dos conflitos entre capital e trabalho, entre capitalistas e trabalhadores. Porém, a própria família, a escola e etc., são produtos e reprodutores das determinações do capital, não seu contrário. Ou seja, não possuem a capacidade de se contrapor ao poder do capital. O âmbito do trabalho, aquele do conflito constante e latente, também tende a não mais formar por meio da experiência prática das contradições, visto que tal experiência tende a ser sobrepujada pelo controle ideológico, entendendo por ideológico toda a sociedade que procura aparecer a cada indivíduo como se fosse natural e tivesse plena harmonia, fazendo com que os problemas privados não sejam vistos como problemas políticos ou estruturais da sociedade, mas como problemas de uma “inadequação” dos indivíduos em relação ao seu “lugar de direito” na sociedade.
Ainda é necessário ressaltar que “debate” pressupõe abertura frente às contradições, às contraposições entre ideias. Contudo, com o advento da possibilidade de acesso imediato à informação por parte de qualquer indivíduo, os indivíduos podem “criar” suas próprias concepções sem a necessidade da “opinião” do outro (e não percebem que a informação a que têm acesso é, exatamente, uma dada opinião, um ponto de vista, de um outro qualquer). O interessante é que não percebem que é uma “opinião” de um outro porque, de fato, não é: toda a informação que chega à grande massa de pessoas e é prontamente absorvida, não é uma informação criada a partir de um ponto de vista de alguém: pelo contrário, é a verdade – absoluta e intocável. Esse é um dos efeitos mais perverso, e ao mesmo tempo mais perfeito, da chamada “indústria cultural”. É por meio de uma produção determinada do capital – que chamamos de indústria cultural, que é a produção da formação da subjetividade deformada dos indivíduos –, que as verdades são produzidas. Aliás, produzidas a bel-prazer do capital, à sua imagem e semelhança. E elas aparecem, é claro, isentas: são a verdade, não uma verdade.

Assim sendo, essa Esfera Pública determinada é um produto coisificado do capital. Sua aparência mais notória, a internet (as redes sociais etc.), é como a ponta do iceberg: é a aparência da aparência de uma Esfera Pública autêntica. Isto é: é um epifenômeno do capital. Ela, como local de um suposto debate, é produto, também, da falta de democracia real e, por isso mesmo, aparece como seu oposto diametral: autoritária e vazia de substância e conteúdo.

Subsolo Urbano!
No play: Milton Nascimento: Courage [1969]

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