Na teoria de Theodor W.
Adorno o ponto central, talvez possamos resumir assim, é a não-identidade, a
ruptura negativa da pseudo-harmonia da realidade existente[1]. E
isso não deve ser entendido como algo posto pela teoria, ou mesmo uma “utopia” –
algo que está fora e além, no futuro, de qualquer realidade. A negatividade é
propriedade das coisas, ou, como diria Adorno, do objeto, do movimento da própria
realidade. No entanto, a negatividade não é aparente, ou melhor, é ocultada
para o bom andamento do todo – diga-se, do todo ideológico. Se nos limitarmos
ao capitalismo como sistema social, não só como modo econômico, podemos dizer
que ele se compõe como uma sociedade duplamente falsa: em primeiro, um todo
falso pois fruto da “práxis do objeto”, isto é, da atividade reificada do
próprio capital e não obra dos Homens; em segundo, consequentemente, uma
sociedade falsa pois oculta sua verdade (ou melhor, como diria Adorno: o núcleo
temporal e dialético da verdade), e, ao ocultar, faz aparecer uma harmonia, supostamente
preexistente, como verdade natural e eterna.
Sucintamente, a
primeira determinação – falsidade como práxis do capital – pode ser
compreendida caso se leve em consideração a teoria madura de Marx. O capital,
por um lado, é produto da atividade humana. Todavia, por outro, é ele quem põe
as possibilidades para que essa atividade humana se realize, isto é, ele
determina sua própria produção (ou autorreprodução). Nesse movimento, o
capital toma para si a capacidade de pôr aquilo que deveria ser síntese
(resultado) da relação entre os Homens e entre eles e a natureza: as relações
sociais. A práxis não é mais obra dos humanos, ainda que seja domínio do
sujeito. Contudo, o sujeito agora é o capital, ele que produz a sociedade em
sua totalidade[2]
– aliás, a reprodução da sociedade se daria, em Adorno, pela indústria cultural,
pela formação (Bildung) determinada
pelo movimento abstrato da sociedade retirada ao controle humano.
Com isso, a segunda
determinação que colocamos – a dialética da sociedade ocultada por uma
pseudo-harmonia – versa exatamente na tentativa constante de não deixar
aparecer as contradições sociais e, quando aparecem, isolá-las e colocá-las na
conta dos indivíduos, dos grupos e etc.. Mas, não só isso. As contradições que
aparecem são, quando muito, fenômenos derivados das contradições fundamentais
e, por isso, no mais das vezes são incorporadas pela totalidade falsa a fim de
fortalecer esta totalidade, o capital. Em suma, toda contradição poderia, caso
fosse aprofundada, levar às contradições mais basilares, deixar à luz do dia
seu núcleo e, com isso, tender a superá-la. No entanto, antes que isso
aconteça, podemos dizer assim, o capital “dá um jeito” de incorporar o
diferente – aquilo que é não-idêntico e, por isso, iminente ruptura – e torná-lo
“igual”, “mesmice”. Se quisermos, um exemplo simples disso são os “movimentos
alternativos” que, na aparência de diferença, se perdem na mesmice sem
perceber: indústrias “alternativas” são criadas para estes nichos,
apresentam-se como diferentes, mas a lógica dura do capital não se altera: são
consumidores atentos na mesma medida em que a acumulação cada vez mais
crescente é igual aos demais ramos da “indústria tradicional”[3].
Na teoria adorniana, a experiência
negativa de ruptura, que poderia levar as contradições às últimas consequências,
é podada e incorporada, sugada e subjugada pelo movimento do capital. Porém,
como dissemos acima, a aparência de diferença
se mantém, ainda que somente como aparência. E é nessa manutenção da aparência
que o diferente, agora tornado igual (ou, o negativo, agora tornado positivo),
vale-se, é na aparência que ele se apega e leva adiante seu giro em falso sem
que perceba sua coisificação, sua conduta quase plenamente controlada.
Ainda assim, dissemos
que a não-identidade é propriedade do objeto, não da teoria. E sendo formadora
do objeto, imanentemente, a negatividade sempre tem potencialidade de romper
com a realidade dada, ainda que nem sempre isso aconteça. Podemos exemplificar
isso, de forma tanto quanto sucinta, remetendo-nos a Nietzsche. Em Nietzsche,
em sua filosofia da linguagem, os objetos possuem várias determinações e mesmo
um objeto semelhante a outro nunca é igual ao outro. No entanto, para
comunicar, precisamos isolar toda diferença, ainda que mínima. O problema é que
ao fazermos isso, tomamos aquela qualidade singular do objeto como a totalidade
do objeto, escondendo e, por fim, esquecendo aquelas qualidades que ocultamos[4].
Em suma, conceituamos as coisas, isto é, criamos conceitos a partir das coisas
e, inversamente, achamos que os conceitos que criaram as coisas. Por ex.:
quando dizemos que uma folha (de árvore) é um conceito, tudo que for “folha”
entrará nesse conceito, isto é, tudo que existir como tal em árvores – árvores diferentes
entre si; folhas nunca iguais umas as outras – será “folha”. Logo estaremos
dizendo, como a leitura mais corrente (e também mais senso comum) de Platão, que
existe “A folha”, um conceito
abstrato do qual todos os entes existentes e concretos são “cópias imperfeitas”.
Abrimos mão das múltiplas diferenças dos objetos para dar plena atenção a uma
característica determinada (formato, cor, tamanho etc.). Fazemos o diferente se
tornar igual e, numa inversão, dizemos que essa qualidade de ser “sempre-igual”
é das coisas e não de nossa incapacidade... Aliás, se quisermos um exemplo
atual, em São Paulo, especialmente na capital, o Nordeste e o Norte do país são
uma só coisa, homogênea, na qual todos têm os mesmos costumes, o mesmo sotaque,
a mesma cor de pele, formato de cabeça e etc., e todos se conhecem. Aqui, todo
mundo é “baiano” (em tom pejorativo). A mesma coisa acontece quando se fala de
África. Ela não é um continente, com vários povos, matizes, culturas e etc.: é
uma rua onde todo mundo joga bola junto e fofoca da vida alheia; e, quando não,
possuem alguma DST ou ebola... Mas aqui, nestes exemplos, o “sempre-igual”
aparece mais por preconceito e discriminação do que pelo movimento abstrato da
Coisa.
Enfim, a identidade, em
toda sua extensão, é aquela feita com e partir do capital, mediada pela
reificação dos indivíduos. Toda identidade é anulação das diferenças
intrínsecas no objeto[5].
Identificar, no capitalismo tardio, é coisificar, tornar igual aquilo que não é
igual; tornar tudo idêntico ao “sujeito objetivo” desta relação: a sociedade
abstraída do controle humano e posta pelo capital; em última instância, tornar
tudo idêntico ao capital, à coisa e suas determinações objetivas. Tudo que se
identifica perde sua identidade dialética, negativa; sucumbe à aparência
dominante e dominadora da realidade efetiva. Assim, trazer à tona a
não-identidade, pela interpretação, pela teoria, é um meio de combate prático à
redução fetichista do capital, desta sociedade que engole tudo.
Se quisermos deixar “concreta”
toda essa “abstração teórica”, podemos nos referir aos movimentos que existem e
que, cada um a seu modo, combatem as mazelas da realidade efetiva. Os negros,
por exemplo, desde sempre, especialmente nas Américas, foram levados a criar
uma identidade negativa, isto é, criar sua própria identidade não simplesmente para
se diferenciar dos demais, mas para resistir aos demais, ao movimento objetivo
opressor. No entanto, sucintamente falando, não cabe manter a criação da identidade
negra perpetuamente: enquanto, como negros, tivermos que nos diferenciar para
resistir, existirá a opressão, isto é, somente teremos que criar uma identidade
própria enquanto existir o modus operandi
que cria essa necessidade. Todavia, a própria sociedade tende a “nos incorporar”,
a nos “incluir”. Só que a inclusão do excluído, nesse todo, é subjugação. A
ruptura está não em identificar, mas em romper com o “princípio que identifica”:
a identidade dos negros é o não-idêntico dentro do capital e tende a romper com
essa sociedade. Em outras palavras, a superação do racismo não é a inclusão dos
negros, mas a superação da condição dos negros: destruir as condições objetivas
que nos determina a ser negros, que nos determina a ter que criar essa
identidade negativa de resistência. Somente com a ruptura das condições
objetivas que propiciam o surgimento dessas situações de opressão é que
poderemos vislumbrar inclusão efetiva: somente como “negro superado” que
seremos incluídos; ou seja, somente seremos incluídos quando não formos mais “negros”,
mas pessoas, em toda nossa multiplicidade.
Por outro lado, da
mesma forma que nos remetemos ao exemplo de Nietzsche, acima, podemos dizer que
temos de superar nossa condição que nos “conceitua”, nos determina por apenas
um de nossos aspectos. Enquanto a redução de nossa identidade humana for posta
em um dos aspectos de nosso corpo (aliás, se quisermos, Aristóteles chama estes
aspectos de “acidentes”, visto que são inessenciais), teremos situação de
opressão. Da mesma forma, enquanto olharmos e classificarmos pessoas pelos
gostos, opções, orientações sexuais e etc., reduzindo todo o humano ali a alguma
determinação singular, teremos uma situação que gera e retroalimenta a
opressão. Nesse sentido estrito, o humano completo surge, com força, como o
não-idêntico: a afirmação da complexidade e multiplicidade rompe com o simplismo
ao qual fomos submetidos, obrigados a viver. A violência do idêntico é a
violência de uma sociedade que preza pela mesmice: o diferente deve ser
eliminado por conta de seu perigo à totalidade[6].
Enquanto uma
determinação singular tiver o poder de conferir significado à totalidade, tanto
do indivíduo quanto da sociedade, viveremos em situação de violência, de
opressão e dominação. (Por ex.: um indivíduo negro é, antes de tudo, reduzido à
condição de “ser negro” e todos os “adjetivos” e “atributos” negativos e
positivos que vêm junto a isso, para depois, caso prove que seja “digno”, seja
visto como pessoa). A superação das opressões e da dominação só pode se
efetivar caso se leve a não-identidade às últimas consequências que ela pode
levar: ruptura com a situação que a oprime. Em suma, ruptura com a totalidade
social capitalista – com o capital e a complexidade das relações sociais
colocadas por ele.
[1] Quanto a esta questão, quem
quiser aprofundamentos, veja os textos tardios de Adorno. Aqui indico,
especialmente, “O Ensaio como forma”; “Sobre Sujeito e Objeto”; “Notas
marginais sobre Teoria e Práxis”; a Dialética
Negativa; e, ainda que não sejam textos tardios, a Dialética do Esclarecimento e a Minima
Moralia.
[2] Quanto a esta questão, confira
os textos maduros de Marx, especialmente os Grundrisse
e O Capital. Também indico “O
trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”,
de Oskar Negt e Alexander Kluge. Além destes, Tempo, trabalho e dominação social, de Moishe Postone (sobre este,
uma tradução recente saiu pela Editora Boitempo – aliás, tradução tão aguardada
há anos! Contudo, ainda não tive contato com esta recente tradução. Levando em
consideração o rigor da Boitempo, imagino que seja válida e boa).
[3] No
texto “Indústria Cultural...”, Adorno e Horkheimer demonstram isso, inclusive
com exemplos. Por todo o texto e, especialmente, no último parágrafo há um
exemplo elucidativo.
[4] Escrevi
um texto sobre a relação entre a filosofia da linguagem de Nietzsche e sua
relação com o não-idêntico em Adorno. Cf. A Primazia do Objeto: esboços da relação Nietzsche-Adorno.
[5] Cabe
referenciar, ainda que eu não vá desdobrar esta questão aqui, que o sujeito,
para Adorno, deve ser tomado como objeto, como composto em seu núcleo pelo
objeto, isto é, ele mesmo produto do movimento de constituição da História e da
sociedade, ele mesmo produto da relação com o objeto e, no capitalismo tardio,
produto da “vontade objetiva” do objeto.
[6] Sobre isso, escrevi algo há
algum tempo aqui mesmo no Diálogos do
Subsolo. Confira: Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano.
Subsolo Urbano!
No play: CONJUNTO 7 DE OUROS - IMPACTO (1964)
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