Ignoramos
a morte e gozamos com ela. Ignoramos, pois nos “acostumamos” com o fato da morte-espetáculo, na qual a
sensibilidade é aparência, algo
mecânico e, por fim, inexiste de forma séria. Gozamos na medida em que o “outro”
que morre, aquele indesejado ou o que “não fede nem cheira”, realiza as paixões
mais sádicas do Eu; na medida em que, quando morre o outro, a “subjetividade”
se completa mais um pouco. – Aliás, o
princípio do consumo, reitero, continua intacto: não importa que o Eu consuma o
melhor hoje, no presente, mas que continue sempre consumindo, sem pausa,
consumindo no sentido de “usar e anular” (ou usar para anular) e trocar pelo
próximo melhor. O consumo, neste sentido, está sempre na superfície: consome-se
a morte exigindo cada vez mais morte, pois é por meio delas que o Eu se
satisfaz, completa-se de alguma forma. É claro que somente um Eu mecânico,
robótico e coisificado pode regozijar-se. Ignoramos e gozamos; gozamos na mesma
medida em que a vida é indiferente; gozamos a vida por meio de sua anulação.
Entre o psicopata, o serial killer e
o suicida, a diferença existente para com a subjetividade nossa de cada dia é
de quantidade, apenas.
Gozamos
com a morte, criamos vítimas, heróis, bandidos e vilões, tudo na mesma bizarrice
de confabulações e fantasias; tudo com a mesma capacidade (ou seria
incapacidade?!) de buscar e filtrar informações; com a mesma sagacidade de reprodução
de discursos criados a toque de caixa por algum “intelectual” (aliás, para ser
intelectual precisa-se de pouco: ou status, constituindo, quase sempre, falácia
formal de apelo à autoridade; ou suposto
saber). Reivindicamos a vilania para aqueles já preparados como bode
expiatório e, no mesmo lado, reproduzimos discursos prontos atacando sempre
aquele “desconhecido supostamente violento”, imagem criada por quem está no
poder para ser a pichorra apta a
receber pancadas.
Conhecimento
crítico é inútil. É mais fácil, em nossos tempos, esfarelar rocha com os dedos
do que desfazer “conceitos naturais”, prontos, verdadeiros absolutamente,
inquestionáveis.
Todavia,
a questão disso tudo está abaixo da superfície visível. Se pretos são vistos
como inferiores, bandidos e etc., como se tudo isso fosse genético e natural, houve
um processo histórico que a cada século, cada ano, fortalecia a degeneração
desse povo. Da primeira invasão e destruição moderna da África, no séc. XVI, às
teorias eugenistas no séc. XIX, o fortalecimento se deu pela naturalização do
mal (não banalização: naturalização!).
Das criações das favelas e periferias, naturalmente
afastadas dos centros urbanos brancos – “higienização”
–, à criação dos presídios que superlotam de gente escura (e que agora
superlotam de gente escura e, como não poderia deixar de ser, são ainda mais
afastados dos centros urbanos “civilizados”: jogados para o interior do estado,
para falar de São Paulo). Ora, seres criados sob pancada saberão dar pancadas,
e quase somente isso. Já que é natural sua inferioridade e violência, que mais
pode ser feito? O equívoco está na produção dessa realidade, na história de
constituição, não na superfície visível. Exemplo simples: se alguém cria uma
criança, desde pequena, sem limites e disciplina, como se pode exigir isso anos
depois? Ela nem sabe o que isso significa. Se se produz pessoas na base da
violência, naturalizada e legitimada, reverenciada socialmente, motivo de
status e glória, por que e como abrir mão de ser violento? Exemplo superficial:
um professor tem um piso salarial, trabalhando 40h/semana de 1.900 reais, em
média; um menino que rouba carros por encomenda ganha 5 mil reais, fáceis, em
meia hora. Ora, que eu, como educador, posso falar para esse fulano que não seja
risível? Na verdade, o problema não está aí. Na produção de nossa realidade,
todos, sem exceção, buscam “vida boa” que, por sua vez, é o mesmo que ter
dinheiro e alta disposição e capacidade de consumo. Quem não rouba, da forma
que for, na maioria das vezes é por medo,
pois a ambição e os objetivos são os mesmos (ou arrumam formas mais sutis e
menos onerosas de se ganhar a vida fácil).
A
violência é parte constituinte, histórica e culturalmente, da subjetividade
moderna, do individualismo [NOTA: outro dia li alguma coisa, de algum fulano, dizendo
que Adorno reivindicava o “individualismo” como uma das coisas “boas” da
modernidade, apesar de também o individualismo servir para coisas más. Penso
que tal fulano confundiu individualidade e individualismo, coisas distintas e
díspares. A individualidade é reivindicada não só por Adorno, mas já pelos
idealistas alemães e por Marx. Especialmente Marx entende como necessária a
individualidade, uma subjetividade que conserve ao superar a individualidade burguesa
(ou supere o individualismo da individualidade)]. Cabe notar que o
individualismo não é a criação de uma subjetividade “autêntica”: antes, ele é a
reprodução fiel, ainda que deformada, da totalidade social abstraída do
controle dos seres humanos. E sua face mais nítida – o individualismo – é a
dissolução do indivíduo e sua adaptação àquilo que existe.
O
individualismo tende, na superfície, “diferenciar” as pessoas – ainda que as
diferencie em aparência enquanto o essencial é o “sempre-igual”. Ele opera, por
exemplo, na violência da mutilação de corpos. O alisamento de cabelo para os
pretos é uma das violências mais brutais que algum ser humano pode passar:
involuntariamente, o indivíduo alisa o cabelo para esconder sua feiúra, para se
adaptar aos padrões de beleza, para ser aceito (ainda que semi-aceito). Ora, a primeira coisa que se esvai é a identidade:
quem é esse indivíduo? Um preto não-preto? Que só mantém sua pele preta por não
ter condições de mudar isso também. É um indivíduo sem individualidade, é ele
mesmo sem ser; ele se acha feio, acha ser preto algo inferior, pensa que a
beleza está no padrão branco transmitido pela TV e etc.; ele acaba por se
autonegar. Porém, como toda essa violência é natural, quem pode dizer que este
fulano está errado? Adaptar-se é sempre “melhor”, menos sofrível e a felicidade
(pelo menos sua aparência ideológica) está num horizonte que vai se tornando
cada vez mais acessível. Contudo, quantas e quantas mulheres pretas ficam
carecas ou quase isso por causa de uma vida inteira de químicas, às vezes muito
fortes, na cabeça e nos cabelos? Quantas e quantas não adoecem do corpo e do
espírito – do primeiro por efeitos químicos; do segundo por efeito da
inferiorização, de não conseguir nunca atingir um padrão (que, na verdade, não
existe realmente), por efeito de danos psicológicos e psíquicos, danos causados
pela falta de identidade (é mais ou menos isso: Quem sou eu? Quem vejo no
espelho não reconheço; quem sou em aparência não quero ser, não sou). [NOTA:
lembro que um dos primeiros livros que li, na adolescência, foi Malcolm X,
autobiografia redigida e organizada por Alex Haley, no qual, em uma das partes,
Malcolm relata como alisava o cabelo com produtos fortes que queimavam a
cabeça, o couro cabeludo e tudo mais, e se vestia espalhafatosamente para
ficar, se não parecido, pelo menos aceito pelos brancos. Na época, e ainda
hoje, isso foi chocante].
Os
pretos, especialmente, são os que mais sofrem violência. E esta violência é decorrência
de toda uma história. Ela não se dá somente pela vontade do indivíduo, pela
índole e todo esse blá blá blá que Datena e Marcelo Resende nos fazem acreditar
todas as tardes. São os que mais morrem violentamente, os que mais sofrem
socialmente, os que menos possuem escolaridade e etc.. Amistad! Se os pretos são violentos de alguma forma, isto pode
muito bem ser uma resposta – talvez involuntária, inconsciente – à sua produção
histórica.
Se
a violência física existe e é crescente, ela é reflexo, epifenômeno, da
violência estrutural da sociedade alheia aos indivíduos, de uma sociedade que
coage e violenta a todos, especialmente os mais pobres e as classes
trabalhadoras, de uma violência que estrutura e fomenta o crescimento do
capital e, consequentemente, de uma burguesia correspondente. Uma violência
estrutural que cria resíduos, cria teias ideológicas para a naturalização e
manutenção do estado de coisas vigente. Uma violência que é tão violenta que
faz o violentado ser o próprio algoz, de si mesmo e de seus semelhantes. Faz o
preto odiar tudo que é preto, adorar o que nunca terá (e nem precisa ter, na
verdade) e se mutilar, matar-se aos poucos e matar-se rapidamente. Se antes
havia pelourinho e chibata, hoje existem coisas sutis e mais perniciosas – pois
são “invisíveis”: da chapinha às químicas com formol e coisas mais, das
cirurgias invasivas e corrosivas às anfetaminas e outros remédios fortes que
servem para “beleza” (beleza?) [NOTA: Réquiem
para um sonho talvez seja um filme interessante para verificar esta utopia
de se alcançar algo inalcançável, pois inexistente, pelo uso de anfetamina e
outras drogas e pela esperança (e outras drogas!) que sempre “promete no futuro,
nunca realiza no presente”].
“Se
na periferia não existe fábrica da Taurus, quem abastece isso aqui?”
(Z’África Brasil) – Ora, de onde vem
toda droga, fomento do tráfico, e toda arma, proibido o porte e a compra por
lei no Brasil mas produzida e distribuída aos montes? A violência física, do
tráfico, do Estado, da polícia e etc., é estruturante dessa realidade. Ainda
que existam mortes, faz parte do jogo. Mais vale manter as mortes do que abrir
mão de tudo que existe, do poder, do lucro, do status e etc. [Aliás, em Corporation, documentário canadense
(salvo engano), é mostrado como as principais fabricantes de agrotóxicos, herbicidas
e etc. – a Monsanto, por exemplo – preferem pagar indenizações e multas ao abrir
mão de matar e mutilar milhares de pessoas. Faz-se um cálculo técnico: o que dá
mais lucro: continuar produzindo (a morte) e pagando indenizações e multas ou
parar de produzir? Nem é preciso dizer que a primeira opção é mais lucrativa. O
mundo irá acabar, a “natureza” irá acabar... não importa, assim como não
importa para aqueles que vangloriam a morte como forma de “frear” ou “reduzir”
a violência por meio da “redução” de “criminosos” que quanto mais mortes, mais
violência e, claro, mais mortes e assim por diante – aliás, isto é a lógica do
absurdo, pois não faz sentido algum! É difícil até de compreender que alguém
chegue a pensar firme e seriamente assim].
Toda
violência é fruto histórico da constituição de um povo, busca por poder e
manutenção do existente. Toda violência física, direta, na modernidade, é uma consequência
da violência estrutural, violência que afeta da sociabilidade e da cultura à
psique e ao foro mais íntimo de cada ser humano, que condiciona e determina sua
estrutura de consciência e, especialmente, inconsciência [Cabe lembrar a
questão das depressões. Quanto a
isso, Maria Rita Kehl tem um excelente texto: O tempo e o cão – aliás, o capital cria doenças e problemas
gigantescos e coloca na conta de cada indivíduo isoladamente: quer que demos
conta, sozinhos, de problemas sociais e estruturais]. Além do mais, toda esta
estrutura que se dá na constituição exclusiva de um Eu ultra-narcísico – Eu, este, que pode ser coletivo – leva,
invariavelmente, a fundamentalismos de todos os tipos, anulação de qualquer
diferença e anulação
do outro.
À
caminho da identificação total, entretanto, somente vai uma coisa: o capital
como sociedade e modo de produção da sociabilidade e da cultura, da intimidade
e da subjetividade. Somente ele tende a se identificar a si mesmo, trazendo
para seu vórtice tudo que existe, engolindo tudo e regurgitando tudo com sua
imagem, idêntico a si, fazendo que tudo trabalhe em seu favor, acumulação,
crescimento, em suma, totalização.
–
Vivemos tal qual um carrapato: suga sua própria morte ao sugar todo sangue possível
e explodir.
...
Subsolo!
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