sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Sobre Violência: Esboço 6

Ignoramos a morte e gozamos com ela. Ignoramos, pois nos “acostumamos” com o fato da morte-espetáculo, na qual a sensibilidade é aparência, algo mecânico e, por fim, inexiste de forma séria. Gozamos na medida em que o “outro” que morre, aquele indesejado ou o que “não fede nem cheira”, realiza as paixões mais sádicas do Eu; na medida em que, quando morre o outro, a “subjetividade” se completa mais um pouco.  – Aliás, o princípio do consumo, reitero, continua intacto: não importa que o Eu consuma o melhor hoje, no presente, mas que continue sempre consumindo, sem pausa, consumindo no sentido de “usar e anular” (ou usar para anular) e trocar pelo próximo melhor. O consumo, neste sentido, está sempre na superfície: consome-se a morte exigindo cada vez mais morte, pois é por meio delas que o Eu se satisfaz, completa-se de alguma forma. É claro que somente um Eu mecânico, robótico e coisificado pode regozijar-se. Ignoramos e gozamos; gozamos na mesma medida em que a vida é indiferente; gozamos a vida por meio de sua anulação. Entre o psicopata, o serial killer e o suicida, a diferença existente para com a subjetividade nossa de cada dia é de quantidade, apenas.
Gozamos com a morte, criamos vítimas, heróis, bandidos e vilões, tudo na mesma bizarrice de confabulações e fantasias; tudo com a mesma capacidade (ou seria incapacidade?!) de buscar e filtrar informações; com a mesma sagacidade de reprodução de discursos criados a toque de caixa por algum “intelectual” (aliás, para ser intelectual precisa-se de pouco: ou status, constituindo, quase sempre, falácia formal de apelo à autoridade; ou suposto saber). Reivindicamos a vilania para aqueles já preparados como bode expiatório e, no mesmo lado, reproduzimos discursos prontos atacando sempre aquele “desconhecido supostamente violento”, imagem criada por quem está no poder para ser a pichorra apta a receber pancadas.
Conhecimento crítico é inútil. É mais fácil, em nossos tempos, esfarelar rocha com os dedos do que desfazer “conceitos naturais”, prontos, verdadeiros absolutamente, inquestionáveis.
Todavia, a questão disso tudo está abaixo da superfície visível. Se pretos são vistos como inferiores, bandidos e etc., como se tudo isso fosse genético e natural, houve um processo histórico que a cada século, cada ano, fortalecia a degeneração desse povo. Da primeira invasão e destruição moderna da África, no séc. XVI, às teorias eugenistas no séc. XIX, o fortalecimento se deu pela naturalização do mal (não banalização: naturalização!). Das criações das favelas e periferias, naturalmente afastadas dos centros urbanos brancos – “higienização” –, à criação dos presídios que superlotam de gente escura (e que agora superlotam de gente escura e, como não poderia deixar de ser, são ainda mais afastados dos centros urbanos “civilizados”: jogados para o interior do estado, para falar de São Paulo). Ora, seres criados sob pancada saberão dar pancadas, e quase somente isso. Já que é natural sua inferioridade e violência, que mais pode ser feito? O equívoco está na produção dessa realidade, na história de constituição, não na superfície visível. Exemplo simples: se alguém cria uma criança, desde pequena, sem limites e disciplina, como se pode exigir isso anos depois? Ela nem sabe o que isso significa. Se se produz pessoas na base da violência, naturalizada e legitimada, reverenciada socialmente, motivo de status e glória, por que e como abrir mão de ser violento? Exemplo superficial: um professor tem um piso salarial, trabalhando 40h/semana de 1.900 reais, em média; um menino que rouba carros por encomenda ganha 5 mil reais, fáceis, em meia hora. Ora, que eu, como educador, posso falar para esse fulano que não seja risível? Na verdade, o problema não está aí. Na produção de nossa realidade, todos, sem exceção, buscam “vida boa” que, por sua vez, é o mesmo que ter dinheiro e alta disposição e capacidade de consumo. Quem não rouba, da forma que for, na maioria das vezes é por medo, pois a ambição e os objetivos são os mesmos (ou arrumam formas mais sutis e menos onerosas de se ganhar a vida fácil).
A violência é parte constituinte, histórica e culturalmente, da subjetividade moderna, do individualismo [NOTA: outro dia li alguma coisa, de algum fulano, dizendo que Adorno reivindicava o “individualismo” como uma das coisas “boas” da modernidade, apesar de também o individualismo servir para coisas más. Penso que tal fulano confundiu individualidade e individualismo, coisas distintas e díspares. A individualidade é reivindicada não só por Adorno, mas já pelos idealistas alemães e por Marx. Especialmente Marx entende como necessária a individualidade, uma subjetividade que conserve ao superar a individualidade burguesa (ou supere o individualismo da individualidade)]. Cabe notar que o individualismo não é a criação de uma subjetividade “autêntica”: antes, ele é a reprodução fiel, ainda que deformada, da totalidade social abstraída do controle dos seres humanos. E sua face mais nítida – o individualismo – é a dissolução do indivíduo e sua adaptação àquilo que existe.
O individualismo tende, na superfície, “diferenciar” as pessoas – ainda que as diferencie em aparência enquanto o essencial é o “sempre-igual”. Ele opera, por exemplo, na violência da mutilação de corpos. O alisamento de cabelo para os pretos é uma das violências mais brutais que algum ser humano pode passar: involuntariamente, o indivíduo alisa o cabelo para esconder sua feiúra, para se adaptar aos padrões de beleza, para ser aceito (ainda que semi-aceito). Ora, a primeira coisa que se esvai é a identidade: quem é esse indivíduo? Um preto não-preto? Que só mantém sua pele preta por não ter condições de mudar isso também. É um indivíduo sem individualidade, é ele mesmo sem ser; ele se acha feio, acha ser preto algo inferior, pensa que a beleza está no padrão branco transmitido pela TV e etc.; ele acaba por se autonegar. Porém, como toda essa violência é natural, quem pode dizer que este fulano está errado? Adaptar-se é sempre “melhor”, menos sofrível e a felicidade (pelo menos sua aparência ideológica) está num horizonte que vai se tornando cada vez mais acessível. Contudo, quantas e quantas mulheres pretas ficam carecas ou quase isso por causa de uma vida inteira de químicas, às vezes muito fortes, na cabeça e nos cabelos? Quantas e quantas não adoecem do corpo e do espírito – do primeiro por efeitos químicos; do segundo por efeito da inferiorização, de não conseguir nunca atingir um padrão (que, na verdade, não existe realmente), por efeito de danos psicológicos e psíquicos, danos causados pela falta de identidade (é mais ou menos isso: Quem sou eu? Quem vejo no espelho não reconheço; quem sou em aparência não quero ser, não sou). [NOTA: lembro que um dos primeiros livros que li, na adolescência, foi Malcolm X, autobiografia redigida e organizada por Alex Haley, no qual, em uma das partes, Malcolm relata como alisava o cabelo com produtos fortes que queimavam a cabeça, o couro cabeludo e tudo mais, e se vestia espalhafatosamente para ficar, se não parecido, pelo menos aceito pelos brancos. Na época, e ainda hoje, isso foi chocante].
Os pretos, especialmente, são os que mais sofrem violência. E esta violência é decorrência de toda uma história. Ela não se dá somente pela vontade do indivíduo, pela índole e todo esse blá blá blá que Datena e Marcelo Resende nos fazem acreditar todas as tardes. São os que mais morrem violentamente, os que mais sofrem socialmente, os que menos possuem escolaridade e etc.. Amistad! Se os pretos são violentos de alguma forma, isto pode muito bem ser uma resposta – talvez involuntária, inconsciente – à sua produção histórica.
Se a violência física existe e é crescente, ela é reflexo, epifenômeno, da violência estrutural da sociedade alheia aos indivíduos, de uma sociedade que coage e violenta a todos, especialmente os mais pobres e as classes trabalhadoras, de uma violência que estrutura e fomenta o crescimento do capital e, consequentemente, de uma burguesia correspondente. Uma violência estrutural que cria resíduos, cria teias ideológicas para a naturalização e manutenção do estado de coisas vigente. Uma violência que é tão violenta que faz o violentado ser o próprio algoz, de si mesmo e de seus semelhantes. Faz o preto odiar tudo que é preto, adorar o que nunca terá (e nem precisa ter, na verdade) e se mutilar, matar-se aos poucos e matar-se rapidamente. Se antes havia pelourinho e chibata, hoje existem coisas sutis e mais perniciosas – pois são “invisíveis”: da chapinha às químicas com formol e coisas mais, das cirurgias invasivas e corrosivas às anfetaminas e outros remédios fortes que servem para “beleza” (beleza?) [NOTA: Réquiem para um sonho talvez seja um filme interessante para verificar esta utopia de se alcançar algo inalcançável, pois inexistente, pelo uso de anfetamina e outras drogas e pela esperança (e outras drogas!) que sempre “promete no futuro, nunca realiza no presente”].
“Se na periferia não existe fábrica da Taurus, quem abastece isso aqui?” (Z’África Brasil) – Ora, de onde vem toda droga, fomento do tráfico, e toda arma, proibido o porte e a compra por lei no Brasil mas produzida e distribuída aos montes? A violência física, do tráfico, do Estado, da polícia e etc., é estruturante dessa realidade. Ainda que existam mortes, faz parte do jogo. Mais vale manter as mortes do que abrir mão de tudo que existe, do poder, do lucro, do status e etc. [Aliás, em Corporation, documentário canadense (salvo engano), é mostrado como as principais fabricantes de agrotóxicos, herbicidas e etc. – a Monsanto, por exemplo – preferem pagar indenizações e multas ao abrir mão de matar e mutilar milhares de pessoas. Faz-se um cálculo técnico: o que dá mais lucro: continuar produzindo (a morte) e pagando indenizações e multas ou parar de produzir? Nem é preciso dizer que a primeira opção é mais lucrativa. O mundo irá acabar, a “natureza” irá acabar... não importa, assim como não importa para aqueles que vangloriam a morte como forma de “frear” ou “reduzir” a violência por meio da “redução” de “criminosos” que quanto mais mortes, mais violência e, claro, mais mortes e assim por diante – aliás, isto é a lógica do absurdo, pois não faz sentido algum! É difícil até de compreender que alguém chegue a pensar firme e seriamente assim].
Toda violência é fruto histórico da constituição de um povo, busca por poder e manutenção do existente. Toda violência física, direta, na modernidade, é uma consequência da violência estrutural, violência que afeta da sociabilidade e da cultura à psique e ao foro mais íntimo de cada ser humano, que condiciona e determina sua estrutura de consciência e, especialmente, inconsciência [Cabe lembrar a questão das depressões. Quanto a isso, Maria Rita Kehl tem um excelente texto: O tempo e o cão – aliás, o capital cria doenças e problemas gigantescos e coloca na conta de cada indivíduo isoladamente: quer que demos conta, sozinhos, de problemas sociais e estruturais]. Além do mais, toda esta estrutura que se dá na constituição exclusiva de um Eu ultra-narcísico – Eu, este, que pode ser coletivo – leva, invariavelmente, a fundamentalismos de todos os tipos, anulação de qualquer diferença e anulação do outro.
À caminho da identificação total, entretanto, somente vai uma coisa: o capital como sociedade e modo de produção da sociabilidade e da cultura, da intimidade e da subjetividade. Somente ele tende a se identificar a si mesmo, trazendo para seu vórtice tudo que existe, engolindo tudo e regurgitando tudo com sua imagem, idêntico a si, fazendo que tudo trabalhe em seu favor, acumulação, crescimento, em suma, totalização.

– Vivemos tal qual um carrapato: suga sua própria morte ao sugar todo sangue possível e explodir.
...


Subsolo!

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