terça-feira, 17 de março de 2015

“... depois como farsa”


É preciso que a esquerda acorde. É urgente que se reinvente sem medo de errar, sem medo de pisar em cacos de vidro. Quem está aqui, deste lado, sempre pisou em cacos: é preciso coragem.

Junho de 2013 foi um marco para a política brasileira. De uma vez por todas, aqueles que não se interessavam por política ou não aderiam a nada, a nenhum projeto, tomaram consciência de que as ruas poderiam ser ocupadas, que pessoas comuns poderiam ser ouvidas, de alguma forma. É aqui que começa o imbróglio da esquerda. Foi uma oportunidade de dar direcionamento (e não entendam “doutrinação”): muitos que ocuparam as ruas estavam atrás de algum norte, de alguma coisa que os guiasse para algum lugar, algum objetivo maior e concreto. [Quanto a isso, veja também o texto de Vladmir Safatle]. A maioria – e isso até hoje – não tinha noção do que “viria depois”: apenas sabia que nada seria mais como antes. As querelas “internas” da esquerda – tanto da organizada em partidos, quanto das pessoas que se aliam de alguma forma às causas basilares dela – fizeram com que não se conseguisse compreender esse movimento. Ainda que alguns tentem e se esforcem para isso, grande parte da esquerda organizada se furta da discussão e da prática de fato. Por um lado, ela tem que parar de discutir conceitos e categorias do mais alto nível teórico nos corredores das universidades – coisa que também é importante –, e pisar no chão, vir ao concreto das aspirações, desejos e lutas das pessoas comuns. Por outro – e isso que trava o processo de renovação em larga escala –, precisa sair de cima do muro e compreender que o projeto que o PT criou na década de 1980 morreu há mais de 10 anos (no mínimo) e que hoje sobrevive um espectro sanguessuga que não realiza e nem sai de cima. Não obstante, tem o apoio irrestrito dos sindicatos pelegos (CUT, especialmente) e do falido MST, que mesmo sem o PT tocar nos latifúndios e na questão da reforma agrária, continua fiel ao seu amigo-algoz.
Outubro de 2014 é resultado direto do que se iniciou no ano anterior; resultado de uma insatisfação crescente – ainda que abstrata e desnorteada –, mesmo por parte dos mais pobres e marginalizados. Aqui a esquerda sucumbiu a si mesma: ao invés de encampar a crítica e reivindicar à esquerda, deu um passo atrás por conta do “medo” de um retrocesso (?!) que poderia se dar com a “direita” assumindo o poder: por “força do destino” elegeram a direita, o retrocesso, o ataque aos direitos dos marginalizados indígenas e quilombolas, dos homossexuais, das mulheres, dos pretos, dos trabalhadores e etc.. E elegeram a direita para não eleger a direita! Era, numa leitura rasa, legítimo naquele momento esse posicionamento. Mas somente de uma perspectiva que cegava frente à história recente. O problema maior disso não foi ter elegido Dilma e o PT: foi, antes de tudo, pensar ter colocado no poder a esquerda – ou um PT que “daria” (supostamente) uma guinada à esquerda. E, aqui, mais uma vez a esquerda se desarticula: enquanto a direita ganha força, ainda que abstrata pois sem um comando efetivo e sem um direcionamento concreto, os que encamparam o discurso PT=esquerda hostilizaram aqueles que se abstiveram e tentaram levar à cabo uma crítica ao PT: a “esquerda” rompe com a própria esquerda numa querela sobre quem era o legítimo possuidor da verdade. Enquanto, de um lado, ainda no primeiro turno, Luciana Genro cumpriu um importante papel discursivo, aglutinando inclusive setores da classe média (proletarizados), de outro, já no segundo turno, a “esquerda” petista e seus apoiadores não-petistas voltaram suas armas contra si próprios: contra aqueles que tentavam avançar mostrando o quão equivocado seria colocar Dilma e o PT – e também o “mestre dos magos” Lula – à esquerda desse processo. Nesse momento a esquerda se desarticula ainda mais, deixando um vácuo ideológico em grande parte da sociedade – novamente, por conta de querelas insignificantes (rifando inclusive sua existência).  – Enquanto isso, alguns idolatram um tecnocrata e o elegem como “gato”, este mesmo (gato de botas) condena os movimentos sociais de esquerda, furtando-se da discussão direta e democrática, retirando direito de trabalhadores, de pessoas de todos os tipos, e sucumbe ao assumir a postura que o capital quer que assuma: um carismático autoritário.  – Aquele vácuo passa a ser preenchido, ainda mais, por um “discurso-fantasma” ideológico (e abstrato) da direita: fantasma pois não havia – e ainda não há – uma liderança efetiva da direita que encampe esse espírito vagante que está aí, mas um discurso de “anti-Dilma” e “anti-PT” que, de um lado, é legítimo, de outro, ideológico. Legítimo na medida em que os avanços – parcos – que o PT conseguiu nos anos idos esgotaram-se, e a população “menos politizada”, com auxílio da grande mídia latifundiária, conseguiu sentir essa estagnação (enquanto a esquerda acadêmica e de estratégias do início do século XX não compreendeu). Discurso ideológico na medida em que reflete distorcidamente o que de fato é, ligando pontos absurdos e relegando assuntos centrais.
Ainda, há uma “esquerda” tão atônita e perdida no processo – desde pessoas à esquerda quanto “organizações” – que não conseguem distinguir uma fala liberal de uma libertária: qualquer um que fale o que é “preciso”, o que é “gostoso ouvir”, não importa o que nem como, não importa os pressupostos e as implicações, as entrelinhas, em suma, todo aquele que faz um discurso de cunho liberal ou “social-democrata”, com aparência “humanista” e “crítica”, mesmo que não saiba disso, é logo ovacionado (altamente “compartilhado”), sem uma reflexão crítica sobre. Qualquer um que faça caricatura do “oponente” é trazido para o “lado de cá”. Qualquer um que fale “mal” da Globo ou algo do tipo, é aceito. Aliás, só a título de curiosidade, não é a Globo (somente) o grande problema: o problema maior é o grande capital, com seus latifúndios de dinheiro, terras, propriedades, exploração e, aqui especialmente, monopólio da informação que se transforma prontamente em detenção da verdade.
Março de 2015 vai ficar na história – aliás, já está: toda a “esquerda” reunida para defender um governo que não tomou nenhuma medida, só para dizer deste novo mandato, que não fosse austeridade e ataque direto aos trabalhadores, quilombolas, sem-terras, indígenas, à classe média proletarizada e etc..
No Príncipe, Maquiavel fala sobre o mais eficaz método de governo: medo. Aqui, o “medo invertido”, medo de sua própria sombra e de um espectro que a própria esquerda deixou se fortalecer. Querem defender a “democracia”. Não problematizam esta democracia, não reivindicam uma abertura qualitativa e uma transformação. No mais, quando reivindicam isso, é por meio de um pedido de “Constituinte” – sem uma discussão efetiva do que isso viria a ser e o que acarretaria. Cá entre nós: Constituinte, agora e sem democracia direta, sem fortalecimento dos movimentos sociais e das esquerdas, seria o maior tiro no pé! Discussão acrítica provocada pelo medo sem-sentido da reviravolta conservadora, como se esta não fosse fruto de um processo histórico!
A esquerda atônita não sabe de onde surgiu essa massa enorme de insatisfeitos e alguns oportunistas. “Um raio caído de um céu sem nuvens”: como se dia 15 tivesse surgido do nada. Enquanto se valem somente de “fatos concretos” – como se um dia não tivesse conexão com o anterior e o seguinte –, não conseguem compreender que esse movimento – até para nossa sorte – ainda está, em grande parte, sem direção: basta ver a gama incrível e até nonsense, em alguns casos, de reivindicações. Falam “mal” das pessoas que apoiam a ditadura militar, como se ela tivesse sido universalmente ruim: não foi. Para uma parcela da população – e uma parcela crescente – ela foi benéfica e é sempre bem-vinda. Não adianta apelar para “houve mortes e torturas, inclusive de crianças”: há mortes e torturas, inclusive de crianças, todos os dias, transmitidas ao vivo por Datena e Marcelo Rezende e aplaudida até pelos mais pobres. Para uma parcela da população, foram anos bons: as empregadas não tinham direitos trabalhistas; os pobres não estudavam; quase não se via negros nos bairros (deles); os “bandidos” sumiam ou tampouco surgiam; e etc..
Este movimento, se pegarmos a história recentíssima – de 2013 para cá –, é fruto de um processo; processo este, aliás, que esquerda deixou de encampar e dar direcionamento.
Agora, neste exato momento, os de esquerda e a esquerda propriamente dita, salvo algumas exceções, ainda se debatem com a mesma bullshit daqueles que criticam. Defendem uma em relação ao “impeachment” enquanto aconselham o mesmo ao outro; condenam a corrupção, mas parece, em alguns casos, só a dos “outros”; usam de apelos ad hominem de todos os tipos para atacar quem se opõem às ideias que acham “corretas” (e não percebem seu próprio equívoco: “o inferno são os outros”). Isto não muda nada, já que protestar não é um direito ou só se faz de uma forma. Não é um direito na medida em que os movimentos surgem fora do âmbito do direito e da moral; ele é organizado à revelia do que se entende por “direito”, para além das leis: é um processo político, ainda que os à esquerda tentem “judicializar” tudo, torna-se “legalista”, apelando para a “justiça” e despolitizam ainda mais o processo. Enquanto a esquerda organizada se debate, e não se desvincula do ranço petista, fica agarrada ao passado morto e deixa de fazer a crítica e avançar. – Até Eliane Brum (que, até onde sei, não é de partido algum e tampouco “capa” de alguma organização) consegue ir além daqueles que se dizem “politizados” (aliás, não estou dizendo que ela não seja politizada, mas a função de olhar para além do concreto seria, principalmente, daqueles que almejam outro horizonte e se organizam em partidos de esquerda ou em movimentos autônomos à esquerda).  
Estes “protestos” refletem, também, que até a classe média e a burguesia se liberaram com junho de 2013, conscientes que poderiam fazer barulho e reivindicar o que quer que fosse. Ainda que reflitam somente de forma distorcida a luta de classes, já que foi com esses anos de PT no poder que a burguesia mais se beneficiou e se estabilizou no cenário econômico nacional e mundial, no cenário de poder social no Brasil, esse movimento ganha força (supostamente/no plano da aparência) polarizando a sociedade – ainda que de forma ideológica. Se eles ainda não sabem disso, ou ignoram isso, é porque não compreenderam a conexão que foi feita entre o parco desenvolvimento social e a grande acumulação de capital em suas (da burguesia) mãos. [Falei disso, de forma abreviada, aqui].

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A “piada” do Titanic

Enquanto o Titanic afunda, depois de bater no iceberg, três pessoas discutem: o primeiro diz que tudo é culpa de quem pilotava o navio, pois ele estaria em outro rumo se não fosse a incompetência do piloto; outro, com medo da água fria, mas com mais medo de o piloto ceder lugar ao seu crítico (que é tão idiota quanto o piloto, ainda que se sinta superior), defende o piloto e diz que “agora ele dará uma guinada a bombordo e aportará na praia com o navio ainda flutuando e deslizando sobre as águas”; o último, o Capitão, diz ser só uma marolinha, apazigua a discussão, diz que nada daquilo aconteceu. Todos sorriem e, no segundo posterior, vão direto para o fundo obscuro do oceano levando todos juntos consigo.
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Enquanto isso, do lado de cá, os mais sagazes chamam as migalhas de pão na toalha de mesa suja de “café da tarde”: contentam-se com o que já passou, sobrando apenas memórias que eles projetam no vácuo da mesa devido, justamente, ao medo da fome (Quincas Borba e Rubião que se cuidem! É insanidade e ilusão para todos os lados e gostos).
Por fim, ficar atônito tentando compreender o que se deu neste março atípico, ao mesmo tempo em que insulta o outro que fez “aquela coisa indevida que não se poderia nem se deveria fazer”, não vai resolver em nada: pelo contrário, fortalece o movimento “dos outros” de dupla forma: pela vingança e pela (nossa) desorganização. Aqueles que ainda podem ser direcionados – e é com esses que temos de debater francamente – e aqueles outros que precisam fazer a crítica (ou autocrítica, num sentido meio stalinista), não virão ao nosso lado sendo xingados e tirados de idiotas e burros. Ficar caricaturando o movimento (da história), resultado de nossa própria incapacidade organizativa, vai somente insuflá-lo ainda mais. A esquerda precisa se reinventar. Precisa tomar as rédeas e ocupar os vácuos deixados pelo PT – vácuos perniciosos, tal qual água parada em balde no meio do quintal. Ocupar esses vácuos expurgando toda e qualquer possibilidade que se dê em torno de um “apoio” ou um “posicionamento” acrítico a esse modelo falido. Enquanto uma crítica – poderosa e honesta – não for feita aos fantasmas que ainda assolam os vivos, só deixaremos mais espaços para que movimentos de direita – inclusive os mais radicais e fascistas – cresçam, inclusive entre os marginalizados, dentro das periferias. Enquanto não agirmos pensando em outros mundos possíveis, outros tipos possíveis, outros horizontes, e ficarmos na esperança malograda desse velho que se esqueceu de quem foi, em algum momento remoto do passado, não conseguiremos avançar um milímetro: a prática deve se dar na tentativa de reinvenção, na inserção massiva e crítica no cotidiano, que conecte as aspirações concretas com as discussões e práticas políticas mais arrojadas, ligando os problemas particulares ao todo e fazendo com que pessoas se vejam refletidas, sejam agentes ativos e representadas verdadeiramente.


Os mortos devem enterrar seus mortos!

Subsolo!

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