quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Adjetivação e contradição

A última moda em alta – e em ascendência – é o julgamento, que mesmo se esquivando do cunho moral volta-se a ele com força e se enreda em todo tipo de interdição moral. Esta interdição, por sua vez, é dialética. Ela corrompe tanto o dito, quanto o interdito: ela se vinga daquele que diz; vinga-se daquilo que fala e impõe (ou tenta, ao menos) ao mundo e aos outros. E é dialética – pautada na via de mão dupla contraditória e mediada pela estrutura das relações na sociedade vigente –, pois o sujeito que julga é mediado pelo julgamento. O que julga – e entenda-se bem: o que (alguém) julga e não quem julga –, é também produto social, do indivíduo em sociedade, das relações sociais, não de um indivíduo puro acima dela (da sociedade), nem mesmo “produto” da natureza ou algo predeterminado geneticamente no indivíduo julgado. O julgamento que um indivíduo (ou um conjunto de indivíduos) faz em relação a alguém (ou um conjunto de fatos), é também, ainda que não saiba, um julgamento às relações sociais as quais participa como produtor e produto. Mesmo que em aparência esteja, o indivíduo, envolvido apenas indiretamente nas situações, ele está diretamente emaranhado na sociedade. Nele transparecem, umas vezes mais outras menos, as determinações universais da sociedade e de suas relações. Romper com tais situações, ainda que se leve em consideração a autonomia dos indivíduos, só pode ocorrer com a ruptura (superação) do universal (a sociedade e suas relações). A autonomia do indivíduo deve ser considerada em sua luta contra as determinações da sociedade, mas ele não pode prescindir da sociedade e suas determinações, mesmo que queira e se esforce ao último. Mesmo o mais atento e politizado indivíduo, o mais consciente e regrado, está sujeito às determinações sociais, seja externamente (tendo de se curvar às instituições) ou internamente (na medida em que absorve a história em si ainda que não queira ou não saiba). Escorregar, no sentido de estar sujeito a falhas em sua conduta, é algo plausível e, até certo ponto, normal. O sujeito politizado e regrado 24 horas por dia, que mantém uma conduta impecável perante a realidade, não existe e engana a si mesmo. Sua existência (falsa em si mesma) é de ordem positiva, pois anula o movimento da história e da sociedade: (o indivíduo) é antidialético ainda que reivindique a dialética como método. Extático – e estático – diante do mundo, ele anula a si mesmo, ou anula sua sombra que somente existe para si, não na realidade efetiva. Estar envolto e absorvido por essa situação histórico-social é determinação histórico-social: não há como fugir – e isto não quer dizer que não há como transformar. A terceira das Teses sobre Feuerbach, de Marx, exemplar, é síntese disso: “... o educador precisa ser educado”[1].
Adjetivação, que se quer figura de linguagem, não se limita à “linguagem” – tal como compreendida pelo senso comum. E esta não se limita a simples meio de comunicação. A adjetivação é o princípio norteador e formador do ser social em sua completude finita, ao passo que a linguagem é a forma concreta de existência desse ser social. Pensar e ser necessitam de dois fatores: da sociedade (seja qual for) – e todos os limites e determinações que ela impõe – e da linguagem. Sem linguagem, não existiria ser nem pensar. A linguagem não é, portanto, uma forma simples de comunicação ou algo externo ao ser social. Ela é forma. Mesmo que imponha limitações – pois a linguagem se contradiz e não consegue abarcar tudo que deseja –, é exatamente através dessas limitações que se deve tentar superar as restrições autoimpostas. Para existir, é preciso qualificar as coisas. O adjetivo[2], como forma, é a expressão do pensamento e do ser, não seu complemento. Sem ele, o pensamento sequer existe. Entretanto, que não se entenda que o adjetivo cria o ser, ou o ser cria o adjetivo. Não é disso que se trata. Antes, dialeticamente pensando, são os sujeitos que determinam a objetividade social, e esta, ao mesmo tempo, produz o sujeito (que também é, como produzido, objeto – tanto da objetividade social quanto de si mesmo na medida em que é criador e criatura). A linguagem, e com ela a “criação” de sujeito e objeto, é a forma da realidade. A adjetivação é intrínseca a toda linguagem, portanto, a todo ser. Reduzir a linguagem à mera comunicação entre sujeitos – como fizeram J. Habermas, A. Honneth entre outros – é se perder no equívoco de um ser que criaria autonomamente a partir de si, como ser mais ou menos “indeterminável”, sendo as relações sociais criações autônomas desse ser, e externas a ele (isto é, sem que pudessem determinar, dialeticamente, o próprio “ser”).
Como sujeito-objeto, o sujeito (determinado internamente pela sociedade, já que é ser social e objeto tanto quanto sujeito das relações sociais), não pode se isentar das particularidades da sociedade, mesmo que “não lhe diga respeito”. As particularidades da sociedade (“fatos” supostamente isolados que ocorrem “distantes” ou não e que, também supostamente, não envolvem o indivíduo em questão) revelam o todo da sociedade. Os “fatos” particulares expõem, de um modo ou de outros, as determinações sociais e, com elas, as parcelas de participação singular de cada indivíduo. Assim, julgar de modo imediato as coisas e fatos como se não lhes dissesse respeito e estivessem “erradas” do ponto de vista do sujeito que se acha acima da situação, é no mínimo um equívoco. A forma imediata de julgamento – para esclarecer – não quer dizer que o “fato” acontece e o sujeito julga no “aqui e agora”. Diferente disso, diz respeito ao julgamento que não se põe no centro do julgado. O indivíduo coloca aquele julgado como algo que não lhe diz respeito de maneira alguma. Ele não percebe que algo que ocorre na sociedade é da sociedade e, portanto, revela a totalidade desta sociedade. Revela, ainda mais, uma espécie de “mea-culpa” do indivíduo que julga. O indivíduo não se percebe, além disso, como sujeito mediado, que é, tal como o fato que julga, produto da sociedade e de suas relações. Ele não se dá conta, também, que julga conforme estas relações determinem como deve ser o julgamento. Quanto mais imediato o indivíduo – ou seja, quanto menos se entenda dentro da situação, que é a sociedade revelando suas fraturas centrais em “fatos” particulares –, menos possibilidade de perceber o movimento determinante – e ideológico – das relações sociais que aparecem totalmente em seu julgamento “isento” e “autônomo”. Porém, as contradições também se revelam aí, nesse ser supostamente imediato. Elas despontam através do julgamento das situações; surgem no indivíduo que se contradiz já que não consegue conectar sua própria existência em si mesma. Para deixar claro isto: indivíduo X julga a vida como bem mais precioso; o mesmo indivíduo clama pela morte como solução para o seu bem mais precioso (a vida)[3]. Além destas, as (outras) contradições da sociedade também se revelam no indivíduo. Uma sociedade não-livre produz indivíduos não-livres, mas que se entendem livres – isto é: uma situação na qual a liberdade é condição sine qua non de existência desta sociedade. A ruptura da ilusão poderia ser o primeiro passo para a ruptura da totalidade. Romper a ilusão significa quebrar a imediatidade em seu núcleo profundo.
O que dá vida – lesada – a esta sociedade é, por um lado, a adjetivação como elevação de uma particularidade ao âmbito do universal. Por outro, a imediatidade da própria adjetivação. Imediatidade e, consequentemente, seu vazio de sentido que cobra do indivíduo um conteúdo. Este conteúdo é a própria privação do sujeito e sua (auto)sentença de morte. Como é mediado – ainda que pense prescindir disso ou não sabia de forma alguma dessa sua condição –, o sujeito trai a si mesmo. A linguagem trai seu melhor. Isto indica que ao passo em que expressa o mundo, a linguagem não consegue abarcá-lo por conta de suas próprias limitações. Limitações estas que se agravam pela “inconsciência” do indivíduo: sua imediatez. A adjetivação reificada – não-mediada – frustra as intenções mais conscientes do sujeito, na mesma medida em que satisfaz sua condição de objeto mediado por uma sociedade que deixou de ser “sua”. Concomitante à imediatidade dos julgamentos – e, junto a ela, imediatidade da existência –, e por consequência dela, particularidades são ressaltadas e elevadas ao domínio do universal, tal como se fossem de fato o universal. Eis a fórmula irredutível de toda discriminação: tomar uma parte pelo todo. Esta parte é, invariavelmente, transcendida ao próprio julgamento, como se fizesse parte da “coisa mesma”, da natureza, e não da falta de percepção – e da imediatidade – daquele que julga. Mas, como se disse, o juiz é também o julgado, mesmo que não queira e não saiba, e mesmo que se ache isento. As mazelas que condena são também produtos da condenação – seja esta implícita ou explícita. Condenação – em palavras que coadunam com o texto: adjetivação – não existe somente quando a palavra é proferida. A ação – mãe da palavra e da linguagem, pois estas são ação – é executada também na omissão, e em seu contrário: a não-ação. Delimitar é negar. Agir de determinada maneira é negar todas as outras formas potenciais possíveis. Não-agir não é “não-negar”: é negar tanto quanto. Não existe não-agir. Deixar de fazer algo é fazer outro algo – ainda que pareça um “não-fazer”. Como alusão, tal como diria J.-P. Sartre: estamos condenados a agir (a escolher, a “sermos livres”)[4].
Adjetivar é necessidade intrínseca de toda interpretação. E a interpretação é obrigatoriedade da existência. Mesmo quando não interpreta – e não julga – já julga e interpreta. A falha cardeal de toda linguagem, reiterando, é não conseguir abarcar o que se quer, a totalidade, por meio de si. Ela falha em seu maior intento. Mas nem por isso é preciso (tampouco é possível) abrir mão da tentativa. Através dessa mesma limitação é possível superar o que ficou vago e indefinido, superar aquilo que pareceu antes impossível. É o pensar mediado, e a existência que se entende também como objeto, que pode propor superar as limitações autoimpostas. O ato de vida – a ação – deve ser refletido mais de uma vez, para que a vida seja compreendida e agida. Ação sem pensamento refletido frustra-se já antes do início[5]. Pensar o julgamento, os adjetivos, a predicação, é pensar o mundo dialeticamente – por uma particularidade que seja, já que o universal compõe e se manifesta no particular. Para deixar “menos” abstrato, pode-se pensar a partir de exemplos (mesmo que os exemplos sejam, tal como a linguagem, imperfeitos em seu desígnio). Aqui nos limitaremos a alguns exemplos. O restante da reflexão – que cabe ao leitor – pode ser feita com esforço e participação.[6]
1. Um primeiro exemplo que, pelo menos aparentemente, se limita ao domínio lógico, mas nem por isso deixa de ser instrutivo. – “Deus é tão intenso que não cabe em definições.”[7] O que há de errado nisso? Aparentemente, nada. Aliás, aparentemente é até uma bela expressão, bem construída e que diz o que deveria ser dito. Contudo, ela se trai. “Deus é tão intenso”. A intensidade é uma definição. Ela exclui – para não estender em demasia a reflexão sobre este exemplo – seu contrário: a não-intensidade. Até aí, nada de errado, pois Deus não poderia ser “não-intenso”. Porém, se Deus é intenso ele não poderia ser Deus. Ser “algo” é ser delimitado; ser algo é negar todos os outros “algos” que poderiam existir. Como definição de Deus (único) ele é, na teologia monoteísta cristã, onipotente, onisciente, onipresente; é a perfeição e a totalidade. Estes adjetivos, que também se traem, contradizem o “intenso”. Pois sendo perfeição e totalidade ele deveria abarcar tudo, inclusive a “não-intensidade”. Se ele, Deus, não abarca tudo, então ele não é totalidade, tampouco perfeição. A própria definição de intenso trai seu propósito sem mesmo o saber. Se se unir as duas expressões – “Deus é tão intenso que não cabe em definições”, a contradição fica mais clara, e dupla. Ele “não cabe em definições” ao passo que é definido duas vezes: é intenso e também é definido como aquele que não pode ser definido. No plano da lógica formal o Proslogion de (Sto.) Anselmo dá conta de resolver esta questão. Todavia, a lógica formal se vale das palavras isoladas da construção do mundo, isenta-se completamente da imbricação entre universal e particular, entre sociedade e linguagem. Ela se vale das palavras por elas mesmas, independente da forma concreta das mediações. Ainda, esta lógica não pressupõe o que não está explícito, em palavras, no texto: o que lhe importa são as palavras, não as construções das mesmas, não como elas chegaram até ali (como significado). É como se a linguagem e as palavras fossem estanques, sem movimento. Não obstante, esta não é a discussão na qual queremos entrar. O que nos interessa são a contradição inerente e suas consequências. A linguagem trai a si mesma, trai seu melhor. Ela falha (sempre) em seu intento. Quanto mais i-mediada, prescindindo das mediações, mais reversa será. Reversa no sentido de reverter-se a si mesma, “dar um tiro no pé”. A adjetivação volta-se contra o “adjetivador”. Apesar disso, este exemplo é simples, está mais para mostrar a falha cardeal da lógica formal, ou de como a lógica formal contradiz seu intento e “se safa” ao abdicar de todo conteúdo concreto (que é contraditório por si só). Assim, adjetivar algo é relacioná-lo ao que se excluiu, àquilo que “não se disse”. E não dizer de Deus é uma contradição com o conceito: “Deus é”; qualquer adjetivação trairia a intenção.
2. Muitas expressões, que possuem até boa intenção, deturpam-se por conta de seus desenvolvimentos. Chegam mesmo a “matar” pela raiz seu intento. Por exemplo: “A PM não tem o direito de matar... nós somos trabalhadores!”. Uma defesa apaixonada é, ao mesmo tempo, o julgamento de “todo o resto” como passível de morte. Defende-se a vida pressupondo a morte. O adjetivo – ou predicação, ou complemento – volta a arma para quem profere o dito. Mas não se pode esquecer que o predicado tem raízes sociais. A “defesa” da vida dos trabalhadores se embasa numa sociedade do trabalho, na qual, suposta e implicitamente, está dado que quem trabalha é honesto e melhor. Historicamente, foi a passagem da Idade Média à Modernidade que conferiu essa definição positiva – e tudo que viria junto a ela – à ideia de “trabalho”[8]. Socialmente, esta ideia reforça e aprofunda a crise humana sob o capitalismo: venerar o trabalho, como algo divino, natural e eterno, é ratificar esta sociedade que depende do trabalho (da exploração do trabalho humano) e o glorifica, pois ele mantém as coisas como estão e gera riqueza e poder de dominação quase-total para uma parcela privilegiada da sociedade. A adjetivação “somos trabalhadores” traz consigo toda a complexidade da sociedade que venera o trabalho. As contradições sociais determinam o dito, ao mesmo tempo em que o dito ratifica e coloca em outro patamar de existência (mais elevado) as relações sociais exteriores aos indivíduos (exteriores e que os controlam). A boa ação, que não permite a morte “aos trabalhadores”, admite e até a deseja para os demais. Quando os “demais” são mortos pela PM, por exemplo, os “trabalhadores” não se identificam de pronto com a situação, já que “nada lhes diz respeito” e o “não-trabalho” traiu o morto. Ainda assim, à revelia, o “outro” é sempre o mesmo: este outro ao qual se deseja implícita e inconscientemente a morte também faz parte da classe que vive do trabalho. O adjetivo, por fim, revela quem deve ser poupado e quem não deve; manifesta, além do mais, a cisão da sociedade, a dissensão do humano consigo mesmo. Demonstra fortemente que uma sociedade centrada no trabalho determina, pela lógica social do trabalho e de suas consequências, todo o restante das relações sociais. Este exemplo, incompleto em si mesmo, poderia ser substituído e argumentado (ainda que de maneira mais ou menos diversa) por qualquer outra designação particular da sociedade. O que importa, por fim, é que o universal se manifesta no particular e tem sua existência através dele. A linguagem, a adjetivação, é uma de suas manifestações que, por conseguinte, torna visível o todo, pois é o todo e parte dele.
Qualquer adjetivação atual – verificando-se o senso comum reinante – resulta em uma aceitação da totalidade, ainda que pretensamente negue uma particularidade (por exemplo: nega-se o machismo, como particularidade, mas ratifica-se, em grande parte dos casos, a estrutura que o dá suporte e o engendra). E como se pauta na particularidade, não é simplesmente o “adjetivo concreto” que deve ser levado em consideração. O mesmo adjetivo – por ex.: “corrupto” – é aplicado dependendo de um referencial externo. Descontextualizado em relação ao significado e ao todo social, o adjetivo é relativizado conforme as preferências pessoais e inclinações sensíveis, emocionais e etc., daquele que referencia. Não é a corrupção que é ruim, mas o sujeito determinado que corrompe; não é a corrupção que é ruim, mas aquilo que foi eleito como tal (de modo estanque). Por um lado, a historiografia social do Brasil pode dar um viés explicativo para isso: cordialidade – no sentido conferido na década de 1940 por Sérgio Buarque de Holanda[9]. Por outro, o adjetivo trai o “militante” da linguagem e da retidão moral ao se aliar à relativização. A totalidade e suas contradições, que se mostram com força na linguagem, não são, todavia, levadas em consideração por aquele que se vale dos adjetivos concretos. Pouco importa o conteúdo abstrato – “abstrato” no sentido de “geral” e relacionado à totalidade – que permeia o dito. Contudo, contraditoriamente, é este conteúdo abstrato que se volta ao sujeito e o suga para seu vórtice, esfacelando-o.
A linguagem é a expressão concreta das contradições da sociedade. Ela revela as relações sociais vigentes, ainda que de maneira invertida, ideológica. Mas não só: como a linguagem é pensamento e ação – tanto concretos quanto abstratos – ela própria determina o todo social ao ser determinada por ele. Mesmo na imediatidade aparente do ato, ela traz à tona as mediações. Os indivíduos, queiram ou não, são produtos concretos de uma dominação abstrata da totalidade que se apresenta toda em cada particularidade. Mesmo que ela traia a intenção, pois a adjetivação mostra as contradições e dá um golpe na moralidade, politicamente a linguagem pode ir até as últimas consequências, e em suas limitações manifestar o falso todo: a totalidade abstraída dos indivíduos que se volta contra eles, domina-os, podando a experiência – que poderia se apropriar de tais contradições e, quiçá, superá-las – e substituindo-a por uma formação reificada da sociedade e dos indivíduos, uma formação substitutiva que possui o capital e suas designações totalitárias na base do processo de formação cultural dos indivíduos, da sociabilidade e da sociedade[10]. Semiformado, coisificado e deixando de ser humano, o indivíduo não consegue absorver suas próprias ações, tampouco a sociedade. Quanto mais adjetiva – sempre em direção ao outro, seja quem for este “outro” –, mais envolto na produção da barbárie que tanto condena moralmente: condenação moral e ratificação política são irmãs gêmeas.
A adjetivação revela, portanto, as contradições da sociedade e a falta de liberdade dos indivíduos. Uma sociedade que somente sobrevive podando a liberdade e a substituindo por um simulacro, cria sujeitos estanques que se manifestam pela imediatidade da ação. Quanto mais imediatos e radicais se tornam os indivíduos, “cobrando” retidão de um outro qualquer (seja indivíduo ou algo abstrato), menos liberdade e autonomia terão. Mais fincam os pés na lama da dominação que retroage sobre eles na mesma medida em que tentam ressuscitar o morto com a pá que cavam a cova. A contradição da totalidade somente se revela nos indivíduos quando a totalidade é também os indivíduos, as particularidades. Os julgamentos morais são, em suma, uma imediata frustração inconsciente do indivíduo consigo mesmo, e sua forma de “sublimação” é o ataque mediado a si próprio[11].




[1] Karl Marx, “Teses sobre Feuerbach”. Seria interessante, também, ver o texto de Ernest Bloch, Princípio Esperança, vol. I, no qual o autor faz uma belíssima interpretação sobre essas Teses de Marx.
[2] Adjetivo, aqui, não se refere somente a qualificação e definição. Isto é: não se limita, somente, aos adjetivos como forma de atribuir uma qualidade boa ou má a algo. Adjetivação é predicação. Sem predicação qualificativa nada existe para o sujeito social, nem sequer ele mesmo e seu mundo. Como exemplo pode-se dizer do trabalho: o trabalho cria algo a partir da relação do sujeito com o objeto. No entanto, em primeiro lugar, conformar a natureza, mesmo que seja em um “trabalho do pensamento” (como quando se olha para nuvens e se vê “formas” definidas), é limitar a natureza, predicá-la: isto pode ser um galho de árvore ou uma alavanca. Em ambos os casos depende-se da definição da coisa. Em segundo lugar, ao definir a coisa o sujeito define a si mesmo, pois delimita seu campo do ser. Sem delimitar as coisas não se delimita a si próprio, e não há como ser Ser, tampouco haveria como se diferenciar da natureza (quanto a isso, seria interessante o texto de Walter Benjamin: “Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem”). Em terceiro, o sujeito, em sociedade, não delimita as coisas sozinho e, portanto, não delimita a si mesmo em completa autonomia (Aliás, mais de uma vez Marx aludiu a isso remetendo à Robinson Crusoé, de D. Defoe. O que Marx dizia é que mesmo isolado na ilha, Crusoé era um ser social – isto é, independente de seu “isolamento” da sociedade, levava-a – a sociedade – em si: as determinações sociais estavam em Crusoé). Como ser social, ele é determinado a determinar. Não cabe a pergunta se a determinação veio primeiro que o determinante, pois não é possível pensar um sujeito primordial fora da sociedade que criaria a sociedade, nem, por outro lado, pensar uma sociedade sem sujeitos que a crie. “Definir é negar”, dizia G. W. F. Hegel. Ao se dar uma “determinação positiva para algo” (por ex.: este algo é X), nega-se todas as outras potencialidades (possibilidades que poderiam vir a ser) contidas no objeto (ou no sujeito). Se se tomar F. Nietzsche, em seu Verdade e mentira no sentido extramoral, o problema fica ainda maior: ao “delimitar” algo a partir de uma particularidade deste algo – como se tal particularidade fosse idêntica em todos os elementos semelhantes (o formato de uma folha, por exemplo) –, exclui-se todas as diferenças entres os elementos daquele “algo” e, ainda, toma um aspecto particular (algumas vezes irrisório) e o torna “o todo”, como se ele fosse a própria coisa. Delimitar, neste caso, é falsear: cria-se a imagem de uma coisa primordial da qual todas as coisas que existem são dependentes; isto é, cria-se uma definição transcendente, que não seria criada mas criadora da coisa, e dos humanos que se relacionam com a coisa, por consequência (tratei mais detidamente disto aqui: A primazia do objeto).  Todavia, sem a negação determinada de tudo que existe – sem a delimitação, sem determinação e negação do restante – nada existiria. É nesse processo que a História é possível. É, igualmente, nela que o sujeito é possível – e também o objeto. É aí que reside a autonomia e a liberdade: em tomar as rédeas dentro de uma situação na qual não se escolheu estar mas se está (quanto a isto, seria bom o livro Saint Genet, de Jean-Paul Sartre). O sujeito, que não tem primazia sobre o objeto pois ele é também um objeto, ainda que seja um “objeto privilegiado” que também é sujeito, tem a opção histórica de, mesmo dentro das determinações sociais e históricas inelimináveis, ser protagonista ou ser objeto de valor mais baixo entre objetos [coisa que o capitalismo faz com os indivíduos quando o capital – uma coisa, totalidade social reificada – passa a ditar as regras sociais ao tomar do controle dos indivíduos a decisão acerca da síntese social (as relações sociais) e recolocá-la ao seu bel-prazer. Quanto a isto, seria interessante o texto “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”, de Oskar Negt e Alexander Kluge]. Quanto à situação do sujeito também ser objeto, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno: “Sobre sujeito e objeto”. Por fim, o sujeito, ser de linguagem, necessita interpretar, pois é por meio da interpretação ativa que ele existe e define-se no mundo. Não há como não interpretar. E por interpretação não se deve compreender a mera opinião passiva que exclui o sujeito do movimento total da sociedade e o torna, mesmo quando não quer, um “moralista”. Interpretar é ser dialético. Ser dialético é se entender como mediado além de ser mediador. O contrário disso seria o “ser imediato” – e falso – que pretensamente existe e se entroniza fora do mundo para julgá-lo conforme sua “sublime” perfeição. Quanto a isto, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno: “O Ensaio como forma”; e também o terceiro manuscrito de Karl Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, no qual o filósofo faz uma crítica aos “hegelianos de esquerda” e ao idealismo acrítico, dizendo, entre outras coisas, que eles se postam fora do mundo, acham-se “pensando” o mundo perfeito e querem, por fim, impor suas ideias ao mundo imperfeito. O que vale, aqui, é que se colocar fora do mundo e pensar sua perfeição fora do movimento histórico da realidade para depois julgar o mundo como um equívoco, não é lá das coisas mais sensatas e críticas: pelo contrário, é ideológico e produto desta sociedade, na mesma medida em que são as mediações sociais coisificadas – isto é, tomadas do indivíduo – que determinam e possibilitam que o indivíduo se poste “fora” do mundo e se ponha a julgá-lo. A possibilidade de se compreender livre de qualquer determinação – imediato –, somente é possível numa situação em que a não-liberdade radical aparece como liberdade total.
[3] Ainda assim, este exemplo é imperfeito. Trata-se de pensar algo que seja, em si mesmo, contraditório. Portanto: indivíduo “X” julga algo (digamos, o machismo) e aponta para algum “julgado” (outro indivíduo que perpetrou diretamente o ato). O que aquele indivíduo “X” não percebe é que, primeiro, o indivíduo “Y” (aquele que cometeu a infração) revela, em seu ato aparentemente imediato, as contradições e determinações sociais; expõe, ainda mais, as fissuras da sociedade e sua violência intrínseca; segundo, não compreende que ele, “X”, é um dos polos que possibilita a “ação” de “Y”: ele é também mediado e mediador da violência das relações sociais. Quando esta violência “surge” em algum canto traz consigo também o indivíduo “X” como partícipe da totalidade social. Interessante seria, mas não é tão simples dada a ideologia dominante “postmodern” , apreender a totalidade social (as relações “estruturais” e “estruturantes” da sociedade e dos indivíduos) quando esta se manifestasse no “particular” (em um fato ou indivíduo “isolado”). Deixando mais simples: o machismo não é simplesmente “culpa” do machista (ainda que este deva responder sumamente por seu ato, pois, por mais determinado que seja, possui opções, um resquício de autonomia); ele é produto de uma sociedade que, à revelia do que pensam através da ideologia (“reificadamente”), coloca seu ponto de inflexão em seu contrário: no feminino. A ideia de feminino, por exemplo, somente existe na medida em que é produto histórico-determinado de uma situação que depende de tal “afirmação” para fazer valer sua dominação: o machismo e a ideia de feminino, tal como colocada pela ideologia e mesmo sendo afirmada em sua radicalidade contestadora, são faces que se ligam e necessitam se superar mutuamente. Algo semelhante ocorre com o racismo: afirmar o “preto”, tentando firmar com todas as forças uma “identidade”, pode ser, por essa interpretação, afirmar a situação que coloca o “ser preto” como subalterno e subjugado: afirmar a identidade do “preto” é ratificar a situação social que engendrou (e engendra) esta determinação definidora. Superar o racismo, por essa via, é superar a situação na qual o racismo é condição basilar de sustentação social. Por fim, para deixar claro o que aqui se quer dizer: as “mediações” sociais fazem com que uma única coisa possua contradição em si mesma, seja ela mesma produto e produtora (ainda que talvez não diretamente) da situação na qual está envolvida. Um último exemplo que destoa dos anteriores: o estuprador – em sentido lato – é o mesmo que é bombardeado por determinações (propagandas, formas de ser, consumo, formas de pensar e etc..) que exigem gozo em todos os momentos, com todas as coisas, e que, ainda que exigindo gozo (prazer irrestrito, sem limites) em tudo, poda a capacidade do indivíduo de alcançar tal gozo (pois este gozo é falso em si mesmo) e está, além de tudo, fundamentada em tabus que na tentativa de interditar o gozo (ou o ato que busca o prazer proibido), incentiva-o. O estuprador é produto de uma neurose social e coletiva profunda, não (tão somente) produto de si mesmo.
[4] Seriam interessantes os livros de Jean-Paul Sartre, tanto filosóficos quanto literários. Vou me restringir a indicar alguns: O ser e o nada (filosófico), A náusea e Entre quatro paredes (ambos literários).
[5] Quanto a isto, seria interessante o texto “Notas marginais sobre teoria e práxis”, de T. W. Adorno.
[6] No texto “O Ensaio como forma”, T. W. Adorno diz que a interpretação deve ser ativa, que o leitor deve participar do texto e incidir sobre ele, interpretá-lo. Um texto, além disso, é quando o leitor o interpreta. Não há como escapar a isso.
[7] Esta frase, “adesivada” em vidros de carros, lembra o Proslogion, ou Argumento ontológico sobre a existência de Deus, de Anselmo de Cantuária.  
[8] Quanto a isto, seriam interessantes os seguintes livros: A ética protestante e o espírito do capitalismo, clássico de Max Weber; e, História da riqueza do homem, de Leo Huberman.
[9] Seria interessante o livro Raízes do Brasil, clássico da historiografia crítica brasileira, de Sérgio Buarque de Holanda. Ao mesmo tempo, seria de suma importância o excelente artigo de Francisco de Oliveira: “Jeitinho e jeitão”, que pode ser encontrado aqui: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-73/tribuna-livre-da-luta-de-classes/jeitinho-e-jeitao.
[10] Quanto a isso, seria interessante o texto de Theodor W. Adorno “Teoria da semiformação” (há duas traduções deste texto: a primeira, traduzida como “Teoria da Semicultura”, que pode ser econtrado na web, foi publicada em 1996; a mais recente, 2010, Halbbildung foi traduzido por semiformaçãosemiformação cultural. Esta se encontra na coletânea Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa, organizada por Bruno Pucci, Antônio Zuin e Luiz Calmon Nabuco Lastória, publicada pela Autores Associados). Além deste, os seguintes textos do professor Wolfgang Leo Maar: “Materialismo e primado do objeto em Adorno”; “Adorno, semiformação e educação”; e, “Lukács, Adorno e o problema da formação”, todos disponíveis na web.
[11] O indivíduo isolado, portanto, não possui (quase) nenhum poder. “Atacar” um indivíduo racista, por exemplo, pode até ser satisfatório para o ego e uma forma de lutar contra o racismo. Porém, eliminar o indivíduo racista não toca no problema central: o racismo. O racismo não é uma soma de racistas, como se a cada racista que se vai (é preso, processado, muda de ideia e etc.) o racismo diminuísse. Ele, como uma particularidade social, é também expressão da estrutura universal da sociedade. Mesmo o não-racista pode ser racista na medida em que se está envolto numa situação complexa da qual é impossível sair sozinho, tampouco sair ileso. Usar a lógica do pensamento pós-moderno do senso comum, que se vale de uma estrutura fragmentada, pois o pensamento é fragmentado e não consegue conceber nada além daquilo que os olhos podem ver, ...usar esta lógica, portanto, é se enveredar por uma via que depõe também, e talvez com mais força, contra a testemunha. Valer-se desta lógica pode levar ao absurdo de ter de ratificar inclusive aquilo que se condena. Como é possível, por exemplo, alguém que é contra e luta contra o racismo, o machismo e etc., mas acha que o racismo, o machismo e etc., são unicamente produtos do indivíduo racista, machista e etc., (como é possível então) que este que pensa dessa maneira possa contra-argumentar em relação à redução da maioridade penal, por exemplo? Ora, a lógica é a mesma: para o “outro”, o problema é o indivíduo concreto, e isolado, que é criminoso. Nada mais justo, então, – pela mesmíssima lógica – que condená-lo. Veja-se, por exemplo, a traição adjetivadora das seguintes frases, pressupondo esta “lógica do absurdo”: “Quais as causas do estupro?” – pergunta-se. “A única causa é o estuprador.” Ou, outro exemplo: “Quais as causas do machismo?” – Ora, é “óbvio” (para os que pensam assim): “a causa são os machistas!” (os mais radicais dizem: “são os homens!”). Não levar a totalidade em consideração, a estrutura e as determinações sociais totais, é se enredar em contradições insolúveis e, como é fácil perceber, é dar um tiro certeiro em si mesmo – agora não mais no pé, mas no coração! As relações sociais determinadas, e junto a elas os indivíduos sociais determinados por tais relações à revelia de si mesmos, devem ser consideradas. Caso contrário, a luta pode ser em vão, mesmo que pareça moralmente satisfatória. Um adendo: a partir dessa lógica, impõe-se, por dentro, que os pretos devem lutar e discursar contra o racismo; que as mulheres devem lutar e discursar contra o machismo e etc.. Um dos problemas é que “lutar e discursar” significa, aqui, “lutar e discursar exatamente igual àqueles que impõem isso”, isto é, qualquer discurso que “varie” da forma convencionalmente aceita é rechaçado de pronto, imediatamente. As “revelações” individuais quanto a estes “fatos isolados” são (leia-se: podem ser; nem sempre são assim) da melhor espécie: “você não é negro (ou não é “tão negro quanto esperávamos que fosse”) para falar sobre racismo”; “você não é mulher, não possui o direito (inato, deve ser) de falar acerca do machismo”; e etc.. 

Subsolo!

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