Hegel dizia que a Filosofia seria aquela que
nasceria após o pôr do sol. A Coruja de Minerva que alça voo ao entardecer.
Queria com isso dizer que a reflexão crítica somente se daria após os acontecimentos
da história, depois que a poeira levantada tivesse baixado e tudo pudesse ser
visto com clareza, tendo como norte
seu fim. Isto daria certa segurança ao pensamento na medida em que reconduziria
a reflexão dialética a montar o quebra-cabeça dos acontecimentos – o processamento da história – à luz da totalidade deles mesmos: é como se, grosso
modo, o fim tivesse a chave-mestra que conferiria sentido ao todo, sob o ponto
de vista desse todo acabado. Contudo, visto assim, isto é falso. Pouco
importava o fim último para Hegel, mesmo que a totalidade somente pudesse ser completamente
vislumbrada ao entardecer da história. Falso na medida em que, para ele,“a verdade está no processo”, não apenas
em seu fim. Era o desenrolar do processo que se autojustificaria. É por isso
que o desconhecimento do “esquema geral” hegeliano impede uma leitura
compreensível de sua filosofia – ainda que conhecer tal esquema não garanta nitidez
em todos os momentos. Todavia, o que importa aqui é que a filosofia não
incidiria na realidade propondo um novo
– ainda que Hegel tenha tentado isto, de alguma forma, em sua derradeira Filosofia do Direito; e, também, ainda
que dê abertura para que se possam interpretar seus textos assim, à luz da crítica
que propõe e não apenas analisa ou reage, a filosofia hegeliana identifica-se
à Coruja de Minerva – embora crítica, “analisa” a realidade sem incidir praticamente
sobre ela.
Hoje, muitos dos críticos
sociais – facebookeanos, semiacadêmicos e semipartidarizados – formam a “zaga
do time do humanismo”. Sempre na retaguarda, aparecem após os acontecimentos
para criticá-los – algumas vezes profundamente, outras apenas ferozes sem
ferocidade e etc. São semihegelianos,
às vezes sem saber: semi, pois
prescindem da dialética e da perspectiva da totalidade. Sempre defendendo e,
alguns, tentando armar o contra-ataque,
ficam prostrados na crítica confortável – atrás da escrivaninha e seguros em
suas identidades. Mas, como é sabido
daqueles que já viram algum jogo de futebol, time que recua e se torna uma
grande zaga, não faz jogo, não cria nem contra-ataca. Acaba quase
sempre fazendo o jogo do outro. Como
também se sabe, time recuado apanha e, se não perde, sai muito ferido e sem
forças – e sem moral – para as disputas seguintes. São a Coruja de Minerva
capenga, com uma das asas quebrada.
Um espectro
de esquerda ronda a internet – e também
alhures. Este fantasma se deixou sucumbir pelas linhas direcionais do
pragmatismo da pós-modernidade e do
bloqueio (quase) geral e (quase) irrestrito do socialismo. Parece – e parece muito fortemente – que propor a luta
irrestrita pelo socialismo – que não é
somente a luta pela distribuição da riqueza, mas a produção socializada de outras formas de riqueza, de humanidade
e de sociabilidade – é um desvairo. Cabe somente, a eles, criticar o que
está dado, ficar na defensiva mais ou menos confortavelmente. Palavrear
efusivamente cânticos de ordem que, sobretudo, apelam, quase que
miseravelmente, pela integração, seja
pela institucionalização do reconhecimento
de uma tal identidade, de uma tal
representatividade, seja por um
espaço para ser aquilo que já são, mas
agora com mais entusiasmo e autoestima – aqui, mesmo sem querer, tentam pronunciar
Marx, mas só conseguem dizer Habermas, Honneth e congêneres – tal como Um Homem Célebre, de Machado de Assis,
que tentava sempre compor uma obra erudita e ao piano saiam apenas polcas. Sucumbem
à totalidade quando, no intuito do bom mocismo, esquartejam-na e acabam por
defendê-la – ao passo que, na realidade, pensam mesmo estarem-na destruindo. A
totalidade – a sociedade e a sociabilidade capitalista (até porque o
capitalismo não é só um modo de produção econômica) – espreme a consciência do
fantasma até que ele a defenda com o discurso contrário – contrário, pelo menos na aparência. E mesmo alguns dos “críticos”
deste fantasma real ou se dizem à esquerda – isto é, esta esquerda – ou são os entronizados, acocorados acima das
mazelas do mundo – algo nietzscheano, acima do bem e do mal – e estão aqui em
nobre missão de defender uma certa “verdade” – abstrata e vazia por excelência.
Este espectro é, além do mais, tal como um
hegelianismo popularesco e empobrecido, especulativo.
Entretanto um tipo novo de especulação: que se defende como o covarde que tem
medo de si mesmo e da supressão de sua identidade tão arraigada nesta realidade, ainda que tenha
aparência do sujeito mal encarado que não arrega para nada.
Assim como a introdução de O Manifesto Comunista, é hora de mostrarmos nossa cara sem medo: é
hora do Galo Gaulês! É cedo, antes do raiar do dia. Não é a teoria apartada e
especulativa que deve dar o tom, a linha mestra, a ordem do dia. É a práxis, proposição teórica e prática
sobre aquilo que queremos. O Galo ataca
cedo, não espera o dia passar para cantá-lo em decassílabos camoniano-semiespeculativos. É preciso reinventar a
realidade, mas não somente como literatura prescrita. Reinventar a realidade,
criar horizontes possíveis – de aparência impossível para muitos. É necessário propor. Deve-se ser o time do ataque,
que dá o tom e o ritmo do jogo, que bate forte e extrapola os limites temporais
e espaciais do campo, da partida. É a Filosofia
da Práxis, não a sobressaltada e manca especulação. É de manhã! É hora de o
Galo cantar e decidir os rumos da sociabilidade, as transformações necessárias.
Contra a especulação defensiva e capenga, quase totalmente integrada nas formas
e práticas desta sociedade, o Galo
Gaulês marxiano, utópico e concreto, firme e altivo, decidido e que dá a cara
do dia, pois dá a cara ao dia. É hora de a esquerda ser Esquerda, não sucumbir à institucionalização de si, nem mesmo de
suas palavras e utopias, de não ter medo da crítica dialética e da prática
concreta, tampouco reduzir seu pensamento para a adequação seja ao que for... É
hora de fazer a História e não apenas lê-la com lentes semi/pseudocríticas.
Subsolo!