terça-feira, 12 de setembro de 2017

Descompasso

    
     Qual a questão mais candente de nossa época? Ser sujeito! Quando se é sujeito, no estilo vigente, tem-se a glutonia de um monstro. Sem cérebro, tal monstro devora tudo que brilha – o que brilha, pois, cego, só vê o que cintila, um Midas invertido. Abole-se a precisão da experiência. Experiência! Compra-se tudo, pois a experiência, pretérita, nada pode contra o todo. Cronos venceu Kairós. Engoliu-o. Aonde foi a espontaneidade? Quem em sã consciência ainda almeja qualquer tipo de envolvimento erótico com o mundo, é anacrônico. Subjetividade! – grita-se de lá. Qual? ... Quem, em sã consciência, ainda arriscaria a própria pele, correndo-se o risco de anacronismo, de morte total? ... A mercearia abstrata, tal como aquelas de interior, só que ampliada, tem tudo à mão. Nada deve ficar por desconhecido e enigmático. Tudo deve ter sentido prévio, posto, cristalizado. Cabe ao monstro – ou àquele que se diz sujeito – captar da maneira certa. Da maneira certa, pois há um sentido que transcende e extrapola as forças e a capacidade reflexiva do dito cujo. Aqui vigora o sempre-igual, o sempre-mesmo. Destoa? Paulada no cocuruto! Morte a tudo que descompassa, ao dissonante! Aqui, subjetividade significa o isto, prescrito pelo Grande Doutor. A interioridade é causa dos idiotas. Importa o que está por dentro. O que está por dentro, não a interioridade: somente aquilo que está por dentro desponta e brilha; é devorado; cega. Qual a questão mais de-cadente de nossa época? ...

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Subsolo!

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Galo Gaulês e a Coruja de Minerva

        
          Hegel dizia que a Filosofia seria aquela que nasceria após o pôr do sol. A Coruja de Minerva que alça voo ao entardecer. Queria com isso dizer que a reflexão crítica somente se daria após os acontecimentos da história, depois que a poeira levantada tivesse baixado e tudo pudesse ser visto com clareza, tendo como norte seu fim. Isto daria certa segurança ao pensamento na medida em que reconduziria a reflexão dialética a montar o quebra-cabeça dos acontecimentos – o processamento da história – à luz da totalidade deles mesmos: é como se, grosso modo, o fim tivesse a chave-mestra que conferiria sentido ao todo, sob o ponto de vista desse todo acabado. Contudo, visto assim, isto é falso. Pouco importava o fim último para Hegel, mesmo que a totalidade somente pudesse ser completamente vislumbrada ao entardecer da história. Falso na medida em que, para ele,“a verdade está no processo”, não apenas em seu fim. Era o desenrolar do processo que se autojustificaria. É por isso que o desconhecimento do “esquema geral” hegeliano impede uma leitura compreensível de sua filosofia – ainda que conhecer tal esquema não garanta nitidez em todos os momentos. Todavia, o que importa aqui é que a filosofia não incidiria na realidade propondo um novo – ainda que Hegel tenha tentado isto, de alguma forma, em sua derradeira Filosofia do Direito; e, também, ainda que dê abertura para que se possam interpretar seus textos assim, à luz da crítica que propõe e não apenas analisa ou reage, a filosofia hegeliana identifica-se à Coruja de Minerva – embora crítica, “analisa” a realidade sem incidir praticamente sobre ela.
   Hoje, muitos dos críticos sociais – facebookeanos, semiacadêmicos e semipartidarizados – formam a “zaga do time do humanismo”. Sempre na retaguarda, aparecem após os acontecimentos para criticá-los – algumas vezes profundamente, outras apenas ferozes sem ferocidade e etc. São semihegelianos, às vezes sem saber: semi, pois prescindem da dialética e da perspectiva da totalidade. Sempre defendendo e, alguns, tentando armar o contra-ataque, ficam prostrados na crítica confortável – atrás da escrivaninha e seguros em suas identidades. Mas, como é sabido daqueles que já viram algum jogo de futebol, time que recua e se torna uma grande zaga, não faz jogo, não cria nem contra-ataca. Acaba quase sempre fazendo o jogo do outro. Como também se sabe, time recuado apanha e, se não perde, sai muito ferido e sem forças – e sem moral – para as disputas seguintes. São a Coruja de Minerva capenga, com uma das asas quebrada.
           Um espectro de esquerda ronda a internet – e também alhures. Este fantasma se deixou sucumbir pelas linhas direcionais do pragmatismo da pós-modernidade e do bloqueio (quase) geral e (quase) irrestrito do socialismo. Parece – e parece muito fortemente – que propor a luta irrestrita pelo socialismo – que não é somente a luta pela distribuição da riqueza, mas a produção socializada de outras formas de riqueza, de humanidade e de sociabilidade – é um desvairo. Cabe somente, a eles, criticar o que está dado, ficar na defensiva mais ou menos confortavelmente. Palavrear efusivamente cânticos de ordem que, sobretudo, apelam, quase que miseravelmente, pela integração, seja pela institucionalização do reconhecimento de uma tal identidade, de uma tal representatividade, seja por um espaço para ser aquilo que já são, mas agora com mais entusiasmo e autoestima – aqui, mesmo sem querer, tentam pronunciar Marx, mas só conseguem dizer Habermas, Honneth e congêneres – tal como Um Homem Célebre, de Machado de Assis, que tentava sempre compor uma obra erudita e ao piano saiam apenas polcas. Sucumbem à totalidade quando, no intuito do bom mocismo, esquartejam-na e acabam por defendê-la – ao passo que, na realidade, pensam mesmo estarem-na destruindo. A totalidade – a sociedade e a sociabilidade capitalista (até porque o capitalismo não é só um modo de produção econômica) – espreme a consciência do fantasma até que ele a defenda com o discurso contrário – contrário, pelo menos na aparência. E mesmo alguns dos “críticos” deste fantasma real ou se dizem à esquerda – isto é, esta esquerda – ou são os entronizados, acocorados acima das mazelas do mundo – algo nietzscheano, acima do bem e do mal – e estão aqui em nobre missão de defender uma certa “verdade” – abstrata e vazia por excelência.
         Este espectro é, além do mais, tal como um hegelianismo popularesco e empobrecido, especulativo. Entretanto um tipo novo de especulação: que se defende como o covarde que tem medo de si mesmo e da supressão de sua identidade tão arraigada nesta realidade, ainda que tenha aparência do sujeito mal encarado que não arrega para nada.
       Assim como a introdução de O Manifesto Comunista, é hora de mostrarmos nossa cara sem medo: é hora do Galo Gaulês! É cedo, antes do raiar do dia. Não é a teoria apartada e especulativa que deve dar o tom, a linha mestra, a ordem do dia. É a práxis, proposição teórica e prática sobre aquilo que queremos. O Galo ataca cedo, não espera o dia passar para cantá-lo em decassílabos camoniano-semiespeculativos. É preciso reinventar a realidade, mas não somente como literatura prescrita. Reinventar a realidade, criar horizontes possíveis – de aparência impossível para muitos. É necessário propor. Deve-se ser o time do ataque, que dá o tom e o ritmo do jogo, que bate forte e extrapola os limites temporais e espaciais do campo, da partida. É a Filosofia da Práxis, não a sobressaltada e manca especulação. É de manhã! É hora de o Galo cantar e decidir os rumos da sociabilidade, as transformações necessárias. Contra a especulação defensiva e capenga, quase totalmente integrada nas formas e práticas desta sociedade, o Galo Gaulês marxiano, utópico e concreto, firme e altivo, decidido e que dá a cara do dia, pois dá a cara ao dia. É hora de a esquerda ser Esquerda, não sucumbir à institucionalização de si, nem mesmo de suas palavras e utopias, de não ter medo da crítica dialética e da prática concreta, tampouco reduzir seu pensamento para a adequação seja ao que for... É hora de fazer a História e não apenas lê-la com lentes semi/pseudocríticas. 

Subsolo!

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Fragmento #5: A Dialética do Umbigo

(ou a consagração da parvoíce)

         Nestes tempos imemoriais, olha-se para baixo como se se olhasse para o horizonte. O Umbigo é o norte. Todos querem tê-lo; e mais: todos querem ter o seu. E nada mais. O Umbigo revela, dialeticamente, as contradições da Coisa. Por um lado, a assunção do projeto ideal burguês de efetivação plena da subjetividade sem limites e condicionamentos. Por outro, a realidade burguesa do esmagamento e supressão do sujeito – ainda que, no plano disparatado do indivíduo-umbigo isto não ocorra. A Dialética do Umbigo é uma continuação secular da Dialética da Malandragem. A mônada ambulante que encarna nos donos de umbigos quer se ajeitar nesse mundo, quer seu quinhão, sem, no entanto, admitir tal requerimento. Quer seu quinhão mas o nega: o indivíduo quer ser sujeito – que, em conceito, traz em si alteridade – ao se igualar a todos. Sua radicalidade no protesto é seu perecimento mais profundo. A mônada subjetiva, todavia, somente se satisfaz quando outras, juntas e idênticas a ela, formam apenas uma, em coro uníssono – superam Leibniz! “O Umbigo é meu e faço o que quiser” – inclusive, sem saber, ficar sem ele. Mônadas, ou Umbigos, numa sociedade de classes não são revolucionárias. São, quando muito, o centro que se acha especial e que para nada serve – tal com um desforrado umbigo – e, sem precedentes, assumem todas as mazelas do movimento do corpo. Acham-se coração e cérebro: no fundo, e no fundo mesmo, só se entopem de sujeira difícil. O possuidor do umbigo, um experto, veste várias peles ao mesmo tempo em que se acha defendendo plenamente uma – a sua. Se antes havia aqueles que liam o mundo só que voltados ao umbigo, hoje há aqueles que leem o umbigo voltados para seu mundo. “Seu mundo”: sua suposta projeção que arregaça as mangas e luta com unhas e dentes para que consiga se igualar aos outros, independente das desigualdades, ainda que digam – e queiram até – o contrário! Se antes a desigualdade poderia criar a revolta de sua superação, agora causa a má-consciência daquele que quer ser “igual” mantendo-a. O “Grande Umbigo”, em sua face protofascista, independente de sua cor, é a superação da luta de classes: negam-se as classes por má-consciência e pelo trauma recalcado; quer-se manter as classes, pois o que seria do Umbigo se ele não tivesse algum inferior para quem aparecer e que, ainda mais, servisse de aporte de descarrego de sua culpa expressa, tanto latente quanto ultrainternalizada? Protofacista: assumir o “compromisso” da individualidade abstrata, do coletivo uníssono e estéril que lê o mundo somente como quer – projeta sua “umbiguidade” no mundo para conseguir retê-la, mais tarde, em “teoria”. Assumir, por fim, a fragmentação do “cada umbigo por si”; e mais ainda: “se meu umbigo for igual ao seu – e se consentir em se sujar como o meu – estarei ao teu lado”. Aliás, ai daquele que tiver umbigo de outro matiz e quiser meter o bedelho no umbigo alheio! Ai!
         A Dialética do Umbigo revela que a dominação total – ideológica – pôde se tornar real porquanto agora são os próprios dominados que se digladiam e assumem, concomitantemente, as pautas do “Grande Irmão” como suas. Revela, ainda mais, que o umbigo de cada um está acima do problema real: o umbigo é a solução de seu próprio problema, ou a criação deste, e vice-versa – seja lá o que isso possa significar!