terça-feira, 20 de agosto de 2019

Notas sobre a luta de classes no Brasil




Há pouca possibilidade de compreensão da atual situação da luta de classes no Brasil caso não se leve em conta o período anterior, que remete aos inícios do novo milênio e aos governos, aos acordões – públicos ou velados –, às “conciliações” – que só se deram no plano da aparência – e etc., que vigeram de lá para cá. E há pouca possibilidade, pois, a luta de classes não é um fato, mas um processo, intricado, de difícil compreensão empírica, movente.
Em torno de diversas dificuldades de fixação do conceito, em sobrevoo pode-se ver uma linha que conduz, opaca mas manifesta, a história recente. Os governos do PT – Lula, especialmente – levaram a capacidade “democrática” brasileira (entre aspas, pois se trata de uma forma mal acabada e bastante peculiar e “defeituosa”) ao extremo. Os governos pós-Golpe (em maiúscula, pois não foi qualquer golpe de Estado) acirraram – pela via econômica, dos costumes, da falsa polêmica que toma de assalto o lugar de verdade e etc. – a tensão entre as classes. Trata-se de um período de extremo, de transição. Não está claro o que há por vir – o futuro é turvo como o céu de Rondônia neste agosto malfadado.
A “conciliação de classes”, dita aos quatro ventos de boca cheia por Lula, não passou de um verniz em madeira bichada. Tudo se deu sobre – ou sob, tanto faz neste caso – escombros não removidos, e ainda incandescentes, do passado mais recente que, via de regra brasileira, era o revolvido do passado mais longínquo, remetendo à “Independência”. Foi o consenso democrático sem rupturas com a última ditadura militar, com uma “abertura democrática” ocorrendo sem resolver o passado, sem o trazer ao nível da consciência e sem o reelaborar praticamente. Não se resolveu o passado assombroso, e não se tinha campo para tanto – aliás, é regra: a escravidão, seu Espírito, como um fantasma potente, absorve a existência dos vivos, até o mais profundo da vida social, da psique, das relações mais íntimas. Conciliação com um passado que não passa; acordo mefistofélico. Se a burguesia brasileira abriu mão de sua soberania, sucumbindo conscientemente ao Império do Capital e, ali, engendrando e dando vazão à forma violenta do Golpe de Estado de 1964, ela, consciente ou não, “abriu mão” do executivo do Estado para que se alavancasse sua ascensão. “Nunca banqueiros ganharam tanto quanto em meu governo”, disse o velho sindicalista, agora ex-presidente. Integração por cima, via consumo, e inserção dos sem-nome de forma anticidadã, à reboque tanto do crescimento vertiginoso da extração de mais-valor pela exploração diversificada do trabalho abstrato, quanto por uma espécie de “imperialismo” na América Latina e no Atlântico Sul.
O Espírito do século XIX, aparentemente inócuo para olhos desavisados, e aquele que deu o tom da sociabilidade no período ditatorial, continuaram a assombrar. Qualquer possibilidade de mudança efetiva esbarraria, mais dia menos dia, nos limites de uma conciliação do inconciliável por definição: levou-se ao extremo tanto a “paciência” da burguesia, que viu mais claramente os limites do “desenvolvimento” – ainda que de forma avessa, enviesada –, quanto aquilo que se estabeleceu com a “abertura democrática”. O futuro esbarrava no passado. Na visão deles, somente seria possível por uma reelaboração do que havia sido. Vejam só! Os reacionários se tornaram os verdadeiros reformistas. Trazem o passado à tona para avançar por seus meandros, reinventando formas de poder e de dominação de classes, culminando num progresso – abstratamente controlado, “do jeito que dá”, no jeitinho, na pancada, na destruição da natureza em todas suas dimensões e numa gambiarra social – das formas do capital. Alguns dizem “desumano”, como se fosse possível qualquer humanidade não-reificada no e pelo capital.
Se Lula levou a um limite as possibilidades de desenvolvimento (capitalista e tipicamente brasileiro, ainda que o mundo esteja passando pela mesma reorganização)[1], levou ao limite, igualmente, as possibilidades de certa sociabilidade – tendo em vista a forma com que se impôs. Agora, porém e por conseguinte, se trata da explosão dos limites e suas reconfigurações: último obstáculo ultrapassado, luta de classes sem véus e sem mediações escamoteadoras. Luta de classes como dominação crua, nua e impiedosa (como se tivesse sido piedosa alguma vez), sem meandros, na qual estamos perdendo, sendo esmagados – não para sumir, mas para sucumbir.
Há uma mudança em curso. Suas linhas mais visíveis estão no campo do discurso e dos costumes e da exploração do trabalho e dominação social de uma classe sobre as demais via reformas econômicas – que, diga-se, tiveram seu caminho pavimentado durante os anos dourados, na qual não se fez nenhuma reforma profunda, e arrematado com o governo do Golpe (Temer).
Tal imbróglio histórico atual é resultado de um processo. Como resultado, é também uma das cabeceiras de reinício, de continuidade-ruptura com o passado. Não haverá repetição ipsis litteris do passado, nem no governo vigente – ou seja lá o que for essa merda –, nem na brisa utópica daqueles que sonham com o passado “paradisíaco” de 2002-2010, até porque condições objetivas e subjetivas, as formas da totalidade, já não são as mesmas e, ainda que pareça, nunca se repetem – ao menos para aqueles que fizeram mal leitura, e somente da primeira página, do 18 Brumário: tudo que Lula conseguiria fazer agora seria comédia piorada, paródia sem graça – para não dizer o que faria o professor do Insper...
Estamos mais para O Alienista: uma revolução que nada muda, tudo permanecendo como está, diferente ainda que igual. No fundo, aquilo que anima este processo é mais que volúvel: como Brás Cubas ou Conselheiro Aires, é volúvel na medida em que seu chão firme, sua fixidez, se faz por um movimento de oscilação pendular, que vai e vem sem sair do lugar, ainda que avançando, e sucede por mudança na qual seu êxtase legitime sua estase.


Subsolo! 




[1] Apesar de que não era o único limite existente; como forma, o limite se estabeleceu concretamente pelo processo, não antes; se a forma de comando do Estado e da sociedade fosse outra, outros seriam os limites, talvez mais amplos, talvez mais restritos, talvez não tão visíveis...

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