quinta-feira, 20 de maio de 2010

Resenha crítica de “O nascimento das fábricas”, de Edgar de Decca

           Introdução
 
O objetivo do presente trabalho é analisar o texto de Edgar de Decca “O nascimento das fábricas”. Para tanto, desdobraremos a reflexão em três partes. Na primeira, faremos um esboço do texto de Decca. Em seguida, mostraremos seu equívoco quanto ao socialismo realmente existente e pautaremos uma contraposição à sua concepção através daquilo que chamaremos de dominação abstrata, constituída pela especificidade histórica da categoria trabalho, mostrando que a forma de dominação prevalecente na sociedade capitalista está assentada no fetiche do capital, para além da oposição de classes. Por último traremos nossas considerações finais.

O nascimento das fábricas, de Edgar de Decca
O sistema de fábricas foi imposto pela necessidade organizativa de um período histórico. A “fábrica, ao mesmo tempo em que confirmava a potencialidade criadora do trabalho, anunciava a dimensão ilimitada da produtividade humana através da maquinaria. (...) a presença da máquina definiu de uma vez por todas a fábrica como o lugar da superação das barreiras da própria condição humana.” (DECCA, 1984, p.8-9). Contudo, segundo Decca, a simples introdução tecnológica da máquina como instrumento contraposto ao trabalho vivo, hipostasiando sua capacidade criativa e submetendo-o ao julgo da máquina, não foi elemento determinante no processo de nascimento dessa nova organização social. Antes, “o surgimento do sistema de fábrica parece ter sido ditado por uma necessidade muito mais organizativa do que técnica, e essa nova organização teve como resultado, para o trabalhador, toda uma nova ordem de disciplina durante todo o transcorrer do processo de trabalho.” (DECCA, 1984, p. 25). Esta necessidade organizativa, porém, não estava sob o controle direto do trabalhador. O surgimento do capitalista e de uma classe de capitalistas, além de introduzir uma nova forma de organizar o mundo do trabalho, traz consigo todo um modo próprio de pensar que, com o desenvolvimento desse sistema, vai se aperfeiçoando de maneira progressiva e de acordo com as necessidades de manutenção dessa organização. A nova dimensão de pensamento e saber é constituída e apropriada inteiramente pela classe de capitalistas que o produzem segundo um universo limitado.
Essa forma organizativa do trabalho, imposta pela necessidade e dominada pela classe de capitalistas, impõe, ainda, algo além da forma de trabalho: introduz toda uma mudança na forma de pensar o tempo, de utilizar o tempo, afirmando a positividade do trabalho e seu poder de redenção (coisa que não ocorria nos períodos históricos anteriores). Não obstante, os saberes sociais produzidos sob a égide dessa organização são, também eles, apropriados pelos capitalistas de uma maneira dupla. Primeiro, com a divisão social do trabalho, divide-se os trabalhos intelectuais e manuais, cabendo à classe dominante produzir saber e exercer seus poderes através dele. Segundo, com a lógica de dominação imposta, a sociedade aparece na quase totalidade de seus fatos como algo dado, naturalizado no processo de imposição dos pensamentos da classe dominante; e, ainda, com a constituição de todo um mundo como dado, os pensamentos e tentativas de ação que extrapolem esse limites são excluídos de maneira quase que natural pela lógica desse sistema.
Quando nos defrontamos hoje com a impossibilidade de criar situações de conhecimento que interrompam ou invertam a lógica de um processo, designado real, podemos nos perguntar sobre os dispositivos que regem a ordem de domínio da sociedade. Sejamos explícitos desde o princípio. Estamos falando, no caso, de uma incapacidade imposta ao social, por ordem de um determinado domínio que retira dos homens a própria dimensão do pensar, como algo além do já dado.
Dentro daquilo que nos interessa, determinadas respostas já são bastante conhecidas. Por exemplo, quando falamos da produção de conhecimentos técnicos que não conseguem se impor socialmente, buscamos a resposta, via de regra, no nível do próprio mercado. Assim, uma tecnologia é ineficaz porque não consegue romper a barreira da concorrência imposta por uma ordem implacável. Nesse sentido, a conclusão é imediata. Não existem outras tecnologias além daquelas conhecidas, porque o próprio mercado se responsabiliza em eliminar as “menos eficazes”. Contudo, deveríamos ser menos ingênuos em questões que colocam explicitamente em jogo as relações de dominação social. Em outras palavras, as relações de mercado vão bem mais além do que as puras determinações econômicas. O estabelecimento do mercado é também o estabelecimento de um dado registro do real, no qual os homens pensam e agem conforme determinadas regras do jogo. Assim, o mercado não só impõe aos homens determinadas tecnologias “eficazes”, como também impede que lhes seja possível pensar outras tecnologias. (DECCA, 1984, p. 11-12).
Surge, portanto, uma forma de pensar definida e delimitada pela lógica da dominação da organização do trabalho pelos capitalistas: a ideologia. Neste sentido, os pensamentos dominantes expressam, idealmente, as relações materiais dominantes. São, portanto,
(...) relações materiais dominantes apreendidas sob a forma de idéias, logo, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; (...), são as idéias de sua dominação. (...) uma vez que dominam como classe e determinam uma época histórica, em toda a sua extensão, é evidente que dominam e regulamentam, completamente, como seres pensantes, como produtores de idéias, a produção e a distribuição dos pensamentos de sua época; suas idéias são, portanto, as idéias dominantes de sua época. (MARX, 1996, p. 155).
Assim, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que ensinam a conhecer e agir. A unificação do pensamento e ação, para obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, nada mais é que a imagem da classe dominante (CHAUÍ, 2006, p. 15). Há, então, uma forma lógica delimitada, uma regra a qual todos devem se adaptar, pois, qualquer tentativa de pensar e agir que fuja a essa lógica é excluído como erro, como irracional e ilógico. Assim, “pensar, (…) é pensar segundo regras já definidas, e o seu contraponto, no nível da sociedade, é justamente a impossibilidade de pensar além das regras.” (DECCA, 1984, p. 13).
Dessa forma, com uma nova dimensão de valores sociais imposta pelo mundo do trabalho, uma nova organização do tempo e uma nova técnica com saber racional e absoluto, a fábrica, segundo Decca, “foi transformando a produção de saberes técnicos numa esfera especializada de controle social, e, progressivamente, as questões de eficácia e produtividade tornaram-se regras do jogo da acumulação capitalista. Isto é, eficácia e produtividade foram reduzidas aos problemas de melhor e mais racional utilização da tecnologia pelos trabalhadores fabris.” (DECCA, 1984, p. 37). É dessa maneira que o autor conclui que um “determinado saber técnico” engendrou-se a partir da constituição do sistema de fábricas, “cujo fundamento esteve ligado ao maior controle e disciplina do processo de trabalho.” (DECCA, 1984, p. 37).

A especificidade histórica do trabalho no capitalismo
A fábrica, como descreve e analisa Edgar de Decca, ao contrário do que diz ele, é especificamente uma criação capitalista e só tem função e sentido nessa sociedade. Diz Decca:
(...) o sistema de fábrica, como o lugar privilegiado para a produção e efetivação de saberes técnicos, não tem os seus limites na ordem capitalista. Pensemos, por exemplo, o caso da União Soviética, reconhecida por muitos como alternativa histórica do capitalismo. Lá também o sistema de fábrica ao se implantar, trouxe consigo todas as seqüelas relacionadas à disciplina, hierarquia e controle do processo de trabalho, e o saber técnico aplicado esteve muito longe de ser detido pelos próprios trabalhadores.
Enfim, o sistema de fábrica introduz determinantes que lhe são inerentes, não importando que esse sistema se desenvolva num ambiente capitalista ou em outro qualquer, pois ele traz em seu bojo todas as implicações relacionadas à hierarquia, disciplina e controle do processo de trabalho, ao mesmo tempo em que se dá uma separação crucial: a produção de saberes técnicos totalmente alheia àquele que participa do processo de trabalho. (DECCA, 1984, p. 38)
Ora, assim sendo, quais as reais diferenças entre a formação social capitalista e o socialismo realmente existente? A teoria do marxismo tradicional, como sustenta Moishe Postone (1993), está pautada em um equívoco de interpretação da teoria marxiana. Tal interpretação – redimindo as variações entre os vários marxistas – possui um ponto fundamental e inquestionável que é, nada menos,  a categoria trabalho entendida como transhistórica.
No centro de todas as formas de marxismo tradicional encontra-se uma concepção transhistórica de trabalho. A categoria trabalho analisada por Marx é entendida em termos de uma atividade social com objetivo definido que efetiva a mediação entre os homens e a natureza, criando produtos específicos a fim de satisfazer determinadas necessidades humanas. O trabalho, assim entendido, é considerado como sendo central a toda a vida em sociedade: constitui o mundo social e é a fonte de toda a riqueza social. Esta abordagem atribui transhistoricamente ao trabalho social àquilo que Marx analisou como características historicamente específicas do trabalho no capitalismo. (POSTONE, 1993, p. 7-8).
O trabalho, entendido como força de produção das necessidades vitais humanas, foi compreendido como possuindo uma espécie de essência perdida com a fragmentação do mesmo pelo sistema capitalista. Essa interpretação, além disso, refletiu diretamente naquilo que se habituou chamar de ‘revoluções socialistas’ no século XX. Essas ‘revoluções’ possuem o equívoco histórico de dominarem o processo burguês de produção sem superá-lo, modificando apenas a forma de distribuição. O processo de mecanização do trabalho, a evolução técnica dominando o trabalho humano, que deveria necessariamente ser superada para a suprassunção da formação capitalista, foi mantida: a necessidade não foi superada para um estado de libertação do trabalho pelo ser humano enquanto técnica dominadora do sujeito no processo de sua própria constituição. A transição do capitalismo para uma forma de organização superior necessita da superação do modo de produção engendrado por essa sociedade.
Dessa forma, retornando ao equívoco interpretativo em relação à Marx, há dois pontos fundamentais aos quais se basearam todas as teorias da superação do capitalismo durante todo o decorrer do século XX. São eles: 1) que a burguesia deveria ser suprimida, suprimindo, assim, a propriedade privada; e, 2) o capitalismo possui, em potência, toda a configuração que engendraria e possibilitaria o socialismo. Marx argumenta, tanto nos Grundrisse, quanto n’ O capital, que a superação do capitalismo deveria se pautar na superação do modo como o trabalho é organizado nessa sociedade. O trabalho, entendido como historicamente específico, deve ser suprassumido, isto é, toda a técnica de produção, as relações sociais organizadas em torno do mundo do trabalho deveriam ser superadas com a superação do trabalho fragmentado criador de valor e capital. A tecnologia deveria estar a serviço não da classe operária, já que está também seria subsumida, mas do homem enquanto liberto do fardo histórico e conquistaria, por fim, como indivíduo social, a liberdade.
Neste sentido, o socialismo realmente existente pauta-se pelas mesmas bases do capitalismo: o que era apropriação privada torna-se apropriação pelo Estado; a contraposição entre classe trabalhadora e burguesia dá lugar a outra contraposição, a do proletariado frente ao Estado; o trabalho proletário, entendido como trabalho fragmentado e castrador da criatividade e liberdade humanas, permanece sendo tal qual; a organização do trabalho, assim como frisa Decca, portanto, continua a mesma. Dessa forma, importa salientar que, ao contrário de Decca, não foi o sistema de fábricas que percorreu as formações sociais mantendo-se inalterado; foi, antes, a formação social que, nas bases fundamentais, não se alterou.
Ainda assim, Edgar de Decca confunde em seu texto técnica e tecnologia. Fica patente que há uma distinção entre ambos os conceitos. Mas, qual? O sistema de fábricas, como enfatiza o autor, não é gerado historicamente pela introdução das máquinas. Antes, foi apenas uma organização do trabalho diferenciada do período anterior. Isto indica, inequivocamente, que uma nova técnica de organização do trabalho social foi introduzida, modificando toda a estrutura de valores sociais e modos de vida. Entretanto, o autor confunde técnica e tecnologia: a técnica, segundo ele, estava nas mãos dos trabalhadores e estes apenas foram introduzidos em uma nova forma de relações de poder e organização, hierarquizada e autoritária. Mas, há uma contradição nos termos: a técnica não podia estar no domínio do trabalhador já que com a introdução de uma nova forma de organização, o trabalho e o trabalhador são fragmentados e, ainda, subsume aquele trabalhador anterior que dominava todo o processo de seu trabalho. Esta técnica anterior já não está mais em jogo. Com a introdução de outra forma de organização do trabalho, desaparece aquele trabalhador e sua técnica. Surge, então, uma técnica alheia a ele. Independente se esta técnica venha constituída de tecnologia com a introdução das máquinas, independente se a máquina, neste momento, é um apêndice da fábrica e não o seu ‘primeiro motor’, aquela nova organização social do trabalho se impõe sobre o trabalhador e o domina; e ele, por sua vez, não possui esta técnica nova. É esta, portanto, que engendra a nova formação social e difere da tecnologia.
·        A dominação social no capitalismo
O dispêndio de tempo de trabalho humano direto engendra valor de uso na relação do sujeito com o objeto, no qual este é transformado por uma necessidade vital do ser humano. O trabalho, como necessidade natural humana, trabalho útil, como valor de uso, “é indispensável à existência do homem, – quaisquer que sejam as formas de sociedade, – é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana.” (MARX, 1971, p. 50). Entretanto, há outro aspecto do trabalho que compete somente ao capitalismo que é a criação de valor, isto é, valor de troca. É no valor que reside a especificidade do trabalho como categoria histórica. Ele é a condição de criação de riqueza social no capitalismo, pelo tempo de trabalho humano despendido na produção. “O valor é uma forma social que expressa o, e está baseada no, dispêndio de tempo de trabalho direto.” (POSTONE, 1993, p. 25). Logo, o que determina a grandeza do valor é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso qualquer (MARX, 1971, p. 46).
Assim, este trabalho que cria valor no processo de produção engendra também, intrínseco a este processo, fetiche. Tanto o fetiche da mercadoria, como o fetiche do capital são formas criadas pelo trabalho no capitalismo e, além disso, transcendem ao próprio domínio do trabalhador, e também do burguês. Desse modo, transformando o trabalho supérfluo em necessário no intuito da criação de valor e capital (MARX, 1993, p. 706), o capital, enquanto tal, autônomo e desvinculado da vontade humana, desempenha o papel de dominar e determinar o processo histórico e as relações sociais fundamentais dessa sociedade.
Portanto, o fetiche do valor e do capital transforma-se em fetiche de produção: ele domina o processo histórico e as relações humanas nas suas formas materiais e espirituais. Neste sentido, “(...) a dominação social no capitalismo, em seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação de pessoas por estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas” (POSTONE, 1993, p. 30). É desse modo que na produção da vida material no capitalismo que se cria o supérfluo como necessário e, nesse processo, também valor e capital que se tornam autônomo e abstrato – perante a coisificação do humano e a personificação da produção – dominando todas as relações existentes nessa formação social.

Considerações finais
O processo de nascimento do sistema de fábricas é o mesmo que dá vida ao capitalismo. É nessa nova forma de organização do trabalho, com o trabalho e o trabalhador altamente fragmentado, introduzidos em uma nova técnica e, consequentemente, em um novo mundo de relações, que se dá a forma característica dessa formação social. O modo de trabalho – criador de mercadorias, valor e capital, e sendo, ele mesmo, capital – é que dá bases para um novo modo de dominação, superando as dominações pessoais diretas ou de grupos e classes. Desse modo, a categoria trabalho e todas as relações que se criam em torno dela são específicas do capitalismo, não sendo, então, compatíveis com uma organização social diferenciada ou que supere esta de fato. Portanto, a fábrica, configurada da forma como descreve Edgar de Decca, é específica do capitalismo e, consequentemente, a superação do sistema capitalista deve se dar partindo da superação da organização daquilo que nosso autor descreve como sendo o sistema de fábricas, isto é, a transformação dessa sociedade para uma organização superior, não pautada mais sobre a produção do supérfluo enquanto necessidade para o capital, deve superar a técnica e se apropriar da tecnologia, superar o trabalho proletário fragmentado e libertar o homem do domínio do capital superando, por fim, a produção do supérfluo e do valor e capital enquanto fetiche.

Referências bibliográficas
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. revista e ampliada. São Paulo: Cortez, 2006.
DECCA, E. S.. O Nascimento das fábricas. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979.
MARX, Karl. “A produção da consciência”. In: IANNI, Octavio (org.) Karl Marx: sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 10. 8. ed. São Paulo: Ática, p. 145-58, 1996.
___. Grundrisse: foundations of the Critique of Political Economy. Tradução e prefácio de Martin Nicolaus. Londres: Penguin Books, 1993.
NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”. In: ___. O que há de político na política? Relações de medida em política. 15 propostas sobre a capacidade de discernimento. Trad. João Azenha Júnior; colaboração Karola Zimber. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, pp. 103-34, 1999. 
POSTONE, Moishe. “Necessity, Labor, and Time: A Reinterpretation of the Marxian Critique of Capitalism”. In: Social Research, Vol. 45, nº 4, winter 1978, p.739-788.
___. Time, labor and social domination: A reinterpretation of Marx’s critical theory. New York: Cambridge University Press, 1993.

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