quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Trabalho total e o Trabalhador total: O FETICHE DO CAPITAL

            O objetivo da presente dissertação é discutir um ponto específico da teoria de Proudhon, contida no texto “Sistema das contradições econômicas: filosofia da miséria”, no qual o autor apresenta sua concepção de trabalhador total. Para tanto, valer-nos-emos da discussão de Marx sobre a constituição do valor (de troca) e da concepção de trabalhador total e trabalho total contidas nos “Grundrisse” e em “O Capital”, e, também, do texto de Oskar Negt e Alexander Kluge “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”. Discutindo, portanto, como Proudhon não concebe o valor como específico do movimento do capital, enquanto criado independentemente da vontade dos indivíduos, nem, tão pouco, pelo processo de distribuição e troca ou dos preços e salários (enquanto ‘retorno’ ao trabalhador) em geral, chegaremos a sua concepção do trabalho total feito por um trabalhador coletivo-social total. Neste sentido, mostraremos como o trabalho total e o trabalhador total é criado pelo capital, como fetiche próprio do seu movimento intrínseco, que, mesmo com poder de realidade, é falso.

Contudo, não faremos uma discussão detalhada – por conta, inclusive, das dimensões dessa dissertação –, apenas apontaremos, em linhas gerais, como se dá a crítica de Marx à Proudhon.
Neste sentido, partiremos da seguinte afirmação de Proudhon:
O homem, então, único entre os animais, trabalha, dá existência às coisas que a natureza não produz, que Deus é incapaz de criar porque as faculdades lhe faltam, assim como o homem, pela especialidade de suas faculdades, não pode fazer nada do que o poder divino realiza. Rival de Deus, o homem trabalha tanto quanto Ele, embora de uma forma diferente: fala, canta, escreve, conta, calcula, faz planos e os executa, pinta e esculpe imagens, celebra os atos memoráveis de sua existência, institui aniversários, se estimula pela guerra, excita seu pensamento pela religião, a filosofia e a arte. Para subsistir, coloca em movimento toda a natureza, apropria-se dela e a assimila. Em tudo o que faz, coloca sua intenção, sua consciência e seu gosto. Mas o que é mais maravilhoso ainda, é que, pela divisão do trabalho e pela troca, a humanidade inteira age como um só homem e que, entretanto, cada indivíduo, nessa comunidade de ação, se encontra livre e independente. Enfim, pela reciprocidade das obrigações, o homem converteu seu instinto de sociabilidade em justiça e como garantia de sua palavra se impõe sanções. Todas essas coisas, que distinguem exclusivamente o homem, são as formas, os atributos e as leis do trabalho, e podem ser consideradas como emissão de nossa vida, emanação de nossa alma. (PROUDHON, 1986, p. 197 – grifo nosso).
 1. Marx argumenta[1] que o trabalho na sociedade capitalista, enquanto criador de mercadorias é, inexoravelmente, produtor de valor de troca. O valor se apresenta como conseqüência inexorável do processo de produção capitalista. Este processo cria mercadorias; estas aparecem como fetiche: as qualidades humanas e sociais do trabalho nelas injetado apresentam-se como qualidades naturais das próprias coisas; o fetiche das mercadorias revela-se como personificação das coisas e coisificação das pessoas. Esse fetiche não é criado por um modo de distribuição inerente ao capitalismo, nem apenas como a forma de apropriação, pelo capitalista, dos meios de produção e do excedente dos trabalhos. Ele é engendrado no processo de produção: é imanente à configuração do trabalho na formação social capitalista. É, assim, condição de criação de riqueza social pelo tempo de trabalho humano estranhado despendido na produção. O que determina a grandeza do valor, portanto, é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso qualquer (MARX, 1971, p. 46).
Proudhon pauta, em linhas gerais, que o simples fato de os trabalhadores se apropriarem da riqueza criada por eles fazendo com que, no âmbito da troca, toda essa riqueza se expresse em suas mãos, enquanto troca justa dos trabalhos, já personifica o trabalhador social total. A mais-valia, nesse processo, não se configuraria e, portanto, o valor de troca não seria condição de apropriação alheia da riqueza. Trocando seus produtos de maneira igualitária, os trabalhadores se apropriariam totalmente dos valores de troca desses produtos, sendo que o imediato de suas produções corresponde tanto aos custos de produção, quanto aos salários: “o trabalho de qualquer homem pode comprar o valor que encerra” (PROUDHON apud MARX, 1991, p. 53). Desse modo, segundo Proudhon, o salário é inteiramente o valor dos produtos criado por cada trabalhador.
Contudo, Marx dirá em A miséria da filosofia que Proudhon vê a sociedade do futuro, a superação do capitalismo com as fórmulas dessa forma social. A sua interpretação do valor – visto como mero atributo da distribuição, da concorrência, dos preços, das disposições dos objetos na natureza, dos salários e etc. – não chega ao cerne do problema da não liberdade que é, segundo Marx, a produção enquanto produção de capital (MARX, 1991). Não obstante, o valor de troca é, em si, desvinculado da autonomia do trabalhador por conta das relações sociais capitalistas e, desta forma, não pode ser apropriado pelos trabalhadores e ponto central da sociedade do futuro.

2. Neste sentido que em seus textos posteriores (MARX, 1971; MARX, 1993) Marx chegará ao fetiche do capital. O fetiche da mercadoria esconde um outro tipo de personificação que é o fetiche do capital. Criado pelo mesmo processo de produção, o capital desapropria o trabalhador de seu poder produtivo. A relação social dos objetos que subjaz a relação social dos indivíduos, “à medida que o capital subtrai da força de trabalho socialmente produtiva uma das sínteses que partem dele (a relação social), institui uma combinação, com poder de realidade, da força de trabalho social.” (NEGT; KLUGE, 1999, p. 104). Assim, “o capital não incorpora apenas o trabalho social, portanto, mas também as combinações sociais da força de trabalho, que se acumulam diante do trabalhador individual sob a forma de poderes sociais.” (NEGT; KLUGE, 1999, p. 104-5).
O trabalhador total e o trabalho total, entendidos como essência de todas as atividades produtivas, no interior de uma sociedade, que é expressão racional da vida em comunidade contêm, não obstante, uma espécie de síntese daquelas atividades de que uma sociedade não pode abstrair sem perder sua base de existência. É dessa maneira que Proudhon entende o trabalho: “Mas o que é mais maravilhoso ainda, é que, pela divisão do trabalho e pela troca, a humanidade inteira age como um só homem e que, entretanto, cada indivíduo, nessa comunidade de ação, se encontra livre e independente.” (PROUDHON, 1986, p. 197). O que Proudhon não vê, contudo, é que a divisão social do trabalho e a troca enquanto constituída pelo valor de troca dos objetos, institui, na produção de si, o fetiche do capital. Dessa forma, Negt e Kluge afirmam que
Embora possamos constatar esse protesto do trabalhador total em quase todas as utopias de Estado, de sorte que é perfeitamente possível encontrar nessas projeções de uma nova sociedade o par categorial produtivo/improdutivo como elemento determinante, verificamos que, com esses conceitos, todas as sociedades tradicionais (com relações de poder pessoais, com classes meramente consumidoras) podem ser criticadas, mas eles não se aplicam, ou não são suficientes, para  criticar a ordem social capitalista. (NEGT; KLUGE, 1999, p. 104). 
Esse trabalhador total pautado por Proudhon é, na analise marxiana, instituído pelo capital enquanto ser abstrato personificado, autônomo e possuidor de uma aparência objetiva independente, criado no processo de produção, intrinsecamente, e deixando o trabalho social como aparentemente controlado pelo trabalhador total. Entrementes, mesmo o trabalho direto sendo a fonte de mais-valia, do valor e da riqueza em geral, seu poder social fica desprovido de realidade. De tal modo, fora do contexto capitalista, o poder social desses produtores é impotente, sua capacidade autônoma de produção é rompida. Mesmo sendo a base substancial da sociedade enquanto constituinte do capital, ele aparece “subjetiva e objetivamente desprovido de realidade, impotente, como mera função do capital, que representa o verdadeiro sujeito da síntese e da produtividade.” (NEGT; KLUGE, 1999, p. 106).
Portanto, aquela concepção de Proudhon, na qual “(...) cada indivíduo, nessa comunidade de ação, se encontra livre e independente”, torna-se falsa, pois, esse indivíduo que aparentemente se apropria do capital, do trabalho total produzido socialmente, enquanto trabalhador total é desprovido de realidade. O capital, no seu movimento autônomo, coordena esse processo como dominador; como dominação pelo fetiche, a produção, no âmbito da criação de valores de troca e de capital, jamais poderá ser apropriada pelo indivíduo “livre e independente” já que, não obstante, esse indivíduo social é dominado pelo seu próprio processo de produção. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MARX, Karl. Grundrisse: foundations of the Critique of Political Economy. Tradução e Prefácio de Martin Nicolaus. Londres: Penguin Books, 1993.
___. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do Sr. Proudhon. Trad. Zeferino Coelho. Lisboa: Avante, 1991. 
___. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I, Volume I. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. “O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso”. In: ___. O que há de político na política? Relações de medida em política. 15 propostas sobre a capacidade de discernimento. Trad. João Azenha Júnior; colaboração Karola Zimber. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, pp. 103-34, 1999. 
PROUDHON, Pierre-Joseph. “Demografia: relação entre trabalho e procriação”. In. RESENDE, Paulo-Edgar A.; PASSETI, Edson (Orgs.). Proudhon: coleção grandes cientistas sociais. Trad. Célia Gambini. São Paulo: Ática, pp.194-204, 1986.
 

[1] Esse argumento aparece na Miséria da Filosofia, e, posteriormente, mais aprofundado e detalhado, nos Grundrisse e n’ O Capital.

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