Introdução
O objetivo do presente texto é comentar criticamente a noção de ação instrumental habermasiana. Para tanto, no primeiro momento demonstrar-se-á, a partir da teoria madura de Marx e da teoria crítica social de Herbert Marcuse, como a ciência e a técnica são apropriadas e fomentadas de maneira específica pela formação social capitalista. Em seguida, visa-se expor como tais categorias apresentam-se como dominadoras das relações sociais e, não obstante, como ideológicas. Por fim, far-se-á a crítica à Habermas partindo da crítica ideológica que o autor faz à Marcuse e ao materialismo histórico como um todo, seguida das considerações finais.
Partindo disso, será utilizado o texto de Habermas intitulado Técnica e ciência como ‘ideologia’ que compõe a coletânea de mesmo nome. Nele, o autor expressa sua noção que chama por ação instrumental ou ação racional teleológica (trabalho): é “ação instrumental ou a escolha racional ou, então, uma combinação das duas”, orientadas por regras técnicas que se apóiam no saber empírico (HABERMAS, 2001, p. 57). Nesta esfera, o gênero humano teria levado a cabo sua mais elevada capacidade, sua aspiração e satisfação das necessidades. Portanto tal esfera, para Habermas, está isenta de críticas por não representar o campo no qual os homens carecem de emancipação contendo, tão somente, o domínio no qual se satisfazem necessidades. Contudo, na esfera da comunicação, aquela na qual o gênero humano deve buscar emancipação, há interferência do domínio técnico da ação instrumental, que impede tal libertação. Por ação comunicativa, o filósofo entende “uma interação simbolicamente mediada”, orientada por “normas de vigência obrigatória que definem expectativas recíprocas de comportamento e que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por dois sujeitos agentes.” (HABERMAS, 2001, p. 57). A ação comunicativa sofre coação e coerção do plano no qual opera a ação instrumental que impede que a interação logre êxito: é isso, para Habermas, que deve ser criticado.
Como se verá, o âmbito no qual Habermas posta sua crítica é ideológico por se tratar de uma particularidade da totalidade social que, não obstante, é determinada pela esfera do trabalho, que para ele é isenta. É neste sentido, o de demonstrar a primazia da manifestação do trabalho no capitalismo para a constituição e determinação da totalidade, que se assentará a crítica do presente texto.
A especificidade da Ciência e da Técnica no capitalismo
O capitalismo introduz uma novidade histórica na produção social: a fragmentação do trabalho. Se antes o que se observava era uma produção não fomentada pelo tempo e pela produtividade como primeiro motor da totalidade social, vemos, agora, trabalho estranhado, castrador e limitador das potencialidades humanas. Na fase que precede o capitalismo, a produção da vida material era, grosso modo, regulada pelo valor de uso das coisas. Com o advento da fragmentação do trabalho através da nova organização – pautada pela produção de valores de troca, de trabalho excedente, mais-valia e etc. –, a fábrica, local por excelência de efetivação desse novo modo de produção, coloca o saber científico a seu serviço.
Em dois textos da década de 1860, Marx[1] expressa o modo específico com o qual o capitalismo trata a ciência, apropriando-se dela de modo único, e, além disso, impondo uma nova técnica ao processo de trabalho:
O modo capitalista de produção é o primeiro a colocar as ciências naturais a serviço direto do processo de produção, quando o desenvolvimento da produção proporciona, diferentemente, os instrumentos para a conquista teórica da natureza. A ciência logra o reconhecimento de ser um meio para produzir riqueza, um meio de enriquecimento.
Deste modo, os processos produtivos se apresentam pela primeira vez como problemas práticos, que só se podem resolver cientificamente. A experiência e a observação (e as necessidades do processo produtivo) alcançam, assim, pela primeira vez, um nível que permite e torna indispensável o emprego da ciência. (MARX, 2009, s/ página).
Aliado ao processo de apropriação da ciência pela classe dos capitalistas, consequentemente pelo capital, uma nova técnica surge com a introdução do modo de produção moderno. Assim como salienta Edgar de Decca em seu texto O nascimento das Fábricas (1984), a “fábrica, ao mesmo tempo em que confirmava a potencialidade criadora do trabalho, anunciava a dimensão ilimitada da produtividade humana através da maquinaria. (...) a presença da máquina definiu de uma vez por todas a fábrica como o lugar da superação das barreiras da própria condição humana.” (DECCA, 1984, p.8-9). Marx, da mesma maneira, deixa patente que “a máquina aparece aqui como elemento intrínseco ao modo de produção capitalista, como uma revolução no interior do modo de produção em geral.” (2008, s/ página).
Dessa forma, o que está em jogo é o modo de organização da produção, especificamente aquele por meio do qual se efetiva a relação entre os homens e entre eles e a natureza: o trabalho. No capitalismo, a categoria trabalho está baseada no dispêndio de tempo e na criação de valor. A produção de valor e capital se dá não pelo trabalho em geral, como relação pura e simples do ser genérico com a natureza; antes, o que vigora em tal momento histórico da produção da vida material é trabalho estranhado. Este, sim, é que engendra, com sua fragmentação e limitação intrínseca, o modo por meio do qual a ciência é apropriada pela produção e pelo capital – contraditoriamente ao mesmo tempo em que a produção capitalista põe a oportunidade histórica de libertação do homem do fardo imposto pela necessidade, coloca como potência (no sentido aristotélico) a possibilidade de superação de tal fardo histórico; libera todas as potencialidades ilimitadas de criação humana como possíveis de efetivação. Como a forma na qual tal modo de organização do trabalho ocorre no sistema capitalista gera valor, consequentemente, com a fragmentação e castração do trabalhador individual, ocorre aquilo que Marx chamará de fetiche: a abstração, objetivação e humanização da produção desvinculada – criando autonomia no desligamento – do trabalhador enquanto produtor e suposto controlador dela. Tal fragmentação impede que o trabalhador estranhado se aproprie da síntese resultante do processo que ele mesmo cria: a síntese é apropriada (ou expropriada) pelo capital enquanto abstração tornada autônoma no processo. Oskar Negt e Alexander Kluge colocam que, em seu movimento autônomo, “o capital subtrai da força de trabalho socialmente produtiva uma das sínteses que partem dele (a relação social), institui uma combinação, com poder de realidade, da força de trabalho social.” (NEGT; KLUGE, 1999, p. 104).
O capital, enquanto entidade abstrata e autônoma, se apropria da síntese que deveria ser o retorno da produção das coisas para a produção humana, como momento da reconciliação do produtor consigo mesmo. De tal modo, o capital subtrai para si tudo que é produção humana. Neste sentido, ele toma para si e controla a ciência em seu próprio benefício: “o capital não cria a ciência e sim a explora apropriando-se dela no processo produtivo. Com isto se produz, simultaneamente, a separação entre a ciência, enquanto ciência aplicada à produção e o trabalho direto, enquanto nas fases anteriores da produção a experiência e o intercâmbio limitado de conhecimentos estavam ligados diretamente ao próprio trabalho” (MARX, 2009, s/ página). O capital, segundo Marx, além de apropriar para si as ciências, fomenta-a, dando-lhe os meios materiais para sua progressão:
o desenvolvimento das ciências naturais (que formam, aliás, a base de qualquer conhecimento), como de qualquer noção (que se refira ao processo produtivo) ocorre novamente sobre a base da produção capitalista que pela primeira vez lhes proporciona em grande medida - às ciências - os meios materiais de investigação, observação, experimentação. Já que as ciências são utilizadas pelo capital como meio de enriquecimento e se convertem, portanto, em meios de enriquecimento para os homens que se ocupam do desenvolvimento das ciências, os homens de ciência competem entre si no intento de encontrar uma aplicação prática da ciência. De outro lado, a invenção se converte em uma espécie de artesanato. Por isso, junto com a produção capitalista se desenvolve, pela primeira vez de maneira consciente, o fator científico em certo nível, se emprega e se constitui em dimensões que não se poderiam conceber em épocas anteriores (...) (MARX, 2009, s/ página).
Neste âmbito, em A responsabilidade da ciência (2009), Marcuse ressalta que a responsabilidade pertinente à ciência perante a sociedade é “ditada pela estrutura interna e o telos da ciência, e pelo lugar e função da ciência na realidade social.” (MARCUSE, 2009, p. 159). Na sociedade industrial avançada, diz o filósofo, a aplicação técnica e científica da tecnologia transformou e desmistificou a ideologia de tal sociedade, e a instituiu no âmbito próprio da produção: a ideologia não está mais, tão somente, no discurso da classe dominante; antes, está na utilização e no movimento concreto da tecnologia enquanto dominação e movimento abstrato do capital: “na medida em que a ciência é parte da base da sociedade ela se torna um poder material, uma força política e econômica, e todo cientista individual é uma parte desse poder.” (MARCUSE, 2009, p. 163). Não é só, portanto, a capacidade da ciência que é apropriada pela sociedade industrial; é, também, a capacidade criadora e supostamente autônoma daqueles que criam individualmente tal poder. O cientista, de tal forma, não está isento da aplicação que se dá para ciência, mesmo que ele também seja determinado pelo movimento do capital enquanto dominador e determinante fundamental da totalidade social e, assim, do próprio rumo que tal sociedade toma. Além disso, ainda segundo Herbert Marcuse,
a ciência moderna em seus começos (...) foi destrutiva do dogmatismo e da superstição medievais, destrutiva da aliança sagrada entre filosofia e autoridade irracional, destrutiva da justificação teológica da desigualdade e da exploração. A ciência moderna desenvolveu-se em conflito com os poderes que se opunham à liberdade de pensamento; hoje a própria ciência encontra-se em aliança com os poderes que ameaçam a autonomia humana e frustram a tentativa de realizar uma existência livre e racional. (MARCUSE, 2009, p. 162).
A técnica e a forma sob a qual a ciência é aplicada na modernidade são determinadas, em última instância, pela produção material desta sociedade: o uso que a classe de capitalistas faz da tecnologia, por via destas técnica e ciência modernas, dá-se em vistas da perpetuação de tal condição social e, não obstante, a manutenção da produção de capital chegou em um ponto que não se pode abrir mão de sua utilização sem prejuízos para o modo de produção.
Técnica e Ciência como dominação e ideologia
A partir do trabalho estranhado e, unido a ele, da especificidade da utilização tecnológica, enquanto emprego técnico da ciência e do homem tornado apêndice técnico de tal uso, o capital, em sua aplicação ideológica concreta da tecnologia, institui formas novas, “mais eficazes e mais agradáveis de controle social e coesão social.” (MARCUSE, 1979, p. 18). Além disso, ressalta Marcuse, “a sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que incluiu a utilização técnica do homem – em outras palavras, a luta pela existência e a exploração do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais.” (MARCUSE, 1979, p. 144). De tal maneira, não é mais o domínio social direto que mantém o sistema de dominação permanentemente coeso, sobreposto sobre si e sobre as pessoas; mas, antes, é o domínio dessa racionalidade – em uma palavra, fetiche da produção – que engendra e perpetua tal condição. O movimento abstrato do capital determina a situação histórica em sua totalidade. A especificidade inerente ao capitalismo faz com que a ciência e a técnica essenciais à formação social mantenham-se intactas. Assim,
a sociedade que projeta e empreende a transformação tecnológica da natureza altera a base da dominação pela substituição gradativa da dependência pessoal (o escravo, do senhor; o servo, do senhor da herdade; o senhor do doador do feudo etc.) pela dependência da ‘ordem objetiva das coisas’ (das leis econômicas, do mercado etc.). Sem dúvida, a ‘ordem objetiva das coisas’ é, ela própria, o resultado da dominação, mas é, não obstante, verdade que a dominação agora gera mais elevada racionalidade – a de uma sociedade que mantém sua estrutura hierárquica enquanto explora com eficiência cada vez maior os recursos naturais e mentais e distribui os benefícios dessa exploração em escala cada vez maior. Os limites dessa racionalidade e sua força sinistra aparecem na escravização progressiva do homem por um aparato produtor que perpetua a luta pela existência, estendendo-o a uma luta total internacional que arruína a vida dos que constroem e usam esse aparato. (MARCUSE, 1979, p. 142).
Esta idéia é reiterada por Moishe Postone: “(...) a dominação social no capitalismo, em seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação de pessoas por estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas” (POSTONE, 1993, p. 30). Tal dominação, como já esboçamos acima, nada mais é que o fetiche da produção de capital que em seu movimento tornado autônomo domina as relações sociais ao subtrair para si uma das sínteses do movimento do trabalho estranhado e coisificado. Não obstante, este fetiche atrela o homem à máquina como subalterno, determinado e dominado por ela. A separação do trabalhador estranhado da apropriação das forças espirituais engendradas pelo processo produtivo da vida material realoca-o abaixo de tais forças, agora tecnicamente abstraídas.
Neste processo, ocorre a subtração das capacidades humanas e a humanização da mercadoria – em sentido lato – produzida. Em longo trecho – que decidimos colocar abaixo – Marx, no texto Maquinaria e Trabalho vivo, explicita como se dá o processo de manutenção da mais-valia pelo movimento de inversão fetichista da produção. Diz Marx:
Nesta forma aparecem como decisivas — portanto como resultado das forças produtivas sociais do trabalho e do trabalho mesmo tomado enquanto condições sociais de trabalho — estas forças não apenas enquanto estranhas ao trabalhador e pertencentes ao capital, mas como supressoras de cada trabalhador singular, forças hostis que oprimem e julgam em favor do interesse do capitalista. Vimos ao mesmo tempo em que o modo de produção capitalista não se modifica formalmente apenas, mas revoluciona a totalidade das condições sociais e tecnológicas do processo de trabalho, e também como o capital não aparece agora somente como aquelas condições materiais do trabalho não pertencentes ao trabalhador — matéria-prima e meios de trabalho —, mas como ele se apresenta como a essência das formas e potências sociais do trabalho em geral, contrapostas a cada trabalhador tomado isoladamente.
Aqui o trabalho passado também se apresenta — tanto na maquinaria automatizada quanto naquela posta em movimento por ele — visivelmente como independente do trabalho enquanto auto-atividade: ao invés de ser subordinado por este último, o trabalho passado é que o subordina a si. Trata-se do homem de ferro contra o homem de carne e osso. A subsunção de seu trabalho ao capital — a absorção de seu trabalho pelo capital —, que está no cerne da produção capitalista, surge aqui como um fator tecnológico. A pedra fundamental está posta: o trabalho morto no movimento dotado de inteligência e o vivo existindo apenas como um de seus órgãos conscientes. A conexão viva do corpo da oficina não se funda mais na cooperação, mas sim no sistema de máquinas que forma agora, a partir do movimento de um motor primário e do abarcamento da totalidade das oficinas, a unidade ampla à qual estas últimas, ao continuarem sendo compostas por trabalhadores, mantêm-se subordinadas. A unidade da maquinaria alcança assim, evidentemente, forma independente e plena autonomia com relação aos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se coloca em oposição a eles.
A oficina que se apóia na maquinaria expulsa continuamente o trabalhador enquanto elemento necessário, ao mesmo tempo em que realoca estes trabalhadores repelidos em funções da própria maquinaria. (MARX, 2008, s/ página).
Sendo assim, o trabalho objetivado (morto; passado) se sobrepõe ao trabalho vivo (direto). O trabalho humano injetado na produção tecnológica, aquela que deveria auxiliar e suprimir o fardo histórico dos homens, faz com que esta se autonomize, pelo mesmo motivo da fragmentação do trabalho. O estranhamento do homem em relação aos seus produtos faz com que aquilo que se produz efetive-se como dominador de tal relação, já que o reconhecimento e o domínio humano sobre a produção é subtraído pelo capital. A maquinaria, a tecnologia em geral, abstraída, domina os trabalhadores e, como reitera Marx, o realoca abaixo, submisso à produção.
Esta a tendência da maquinaria: por um lado, a constante expulsão de trabalhadores, seja do interior daquela oficina já mecanizada, seja do interior dos ofícios; por outro, sua constante reintegração, posto que a partir de um grau determinado de desenvolvimento da força produtiva, o aumento da mais-valia só se coloca com a elevação simultânea do número de trabalhadores ocupados. Esse movimento de atração e expulsão é característico e representa o constante oscilar da existência do trabalhador. (MARX, 2008, s/ página).
É na conjugação de trabalho objetivado e trabalho direto que permanece e aumenta a produção de mais-valia. A máquina, ou o processo mecanizado, por si só não produz valor, tão pouco mais-valia. Entretanto, deve-se lembrar que o trabalho árduo e estafante não é poupado, nem eliminado ou retraído com a introdução da tecnologia em grande escala no processo do capital. Pelo contrário, os trabalhadores, diz Marx (2008), são expulsos da produção, isto é, são retirados de seu próprio domínio e, na inversão fetichista da produção, são recolocados como apêndices da tecnologia. Cabe ressaltar que não são – os trabalhadores – realocados para fazer os trabalhos restantes, aqueles que as máquinas não produzem ou na operação delas; são eles colocados ao lado – em contraposição ou submissos – delas, com a criação de formas novas de trabalho estafante. A tecnologia, sob o capitalismo, não poupa trabalho humano direto, tão pouco suprime o fardo: ela submete o trabalhador ao seu movimento dominante. Logo, como diz Marcuse: “o que está errado é a forma pela qual os homens organizam seu trabalho social.” (MARCUSE, 1979, p. 142).
A progressão levada a cabo pela introdução massiva de tecnologia e pela técnica a ela inerente no sistema capitalista, aprofundando o trabalho estranhado na submissão ao capital, reitera a dominação abstrata posta em marcha pela produção. Tal domínio universaliza-se quando os homens não mais podem se despojar da utilização desse tipo de técnica e de suas conseqüências sem abrir mão de toda configuração social fomentada por essa prática. A universalização técnica da produção material projeta uma totalidade histórica determinada. A dominação do homem se dá, neste sentido, pelo domínio cada vez mais racional e elevado da natureza (MARCUSE, 1979, p. 154). Tal fato perpetua a dominação, mas não com aparência de dominação. Ela aparenta ser a forma racional mais elevada e isenta de críticas por representar, ideologicamente, o avanço da humanidade como um todo. A classe que domina a sociedade garante sua legitimidade não mais somente através do discurso, mas a partir de si mesma, de seu processo de produção: “a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura.” (MARCUSE, 1979, p. 154).
Ora, a esfera da dominação de classes aparentemente some do horizonte. A racionalidade do sistema dita por si só o que é progresso. A dominação não é mais legitimada através da força, tão pouco carece de discurso. Ao elevar, supostamente, o nível de vida e as ‘comodidades’ de cada indivíduo, além do aumento sem precedentes da produtividade humana – mesmo sendo de coisas supérfluas –, ela dita o que é bom, correto, justo e, consequentemente, o que é ascensão e progresso humano: o imperativo categórico da sociedade industrial é ditado pela racionalidade socialmente produzida; o sujeito transcendental é reificado e segue tacitamente o prognóstico abstrato vindo de cima, isto é, da racionalidade tecnológica.
Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da não-liberdade do homem e demonstra a impossibilidade ‘técnica’ de a criatura ser autônoma, de determinar a sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato técnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produtividade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege, assim, em vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade racionalmente totalitária. (MARCUSE, 1979, p. 154).
Assim, é o racional e não o irracional que projeta, estende e perpetua a dominação e a mistificação desta. Os “modos transcendentes de pensar parece transcenderem a própria Razão.” (MARCUSE, 1979, p. 162).
Uma possível modificação nesta estrutura só seria possível de se efetivar como resultado de uma ampla modificação no modo de produção. Somente com a superação da produção de capital poderia ser imaginável outro modo de relacionamento do homem consigo mesmo e com a natureza; apenas com a transformação na organização fragmentária de trabalho estranhado – produtor de valor e capital – e, consequentemente, com a subsunção da mais-valia e do estranhamento – é que seria admissível outro projeto tecno-científico, livre da dominação de uma classe específica e do movimento abstrato de capital. Sendo assim, ressalta Marcuse:
Por certo é verdade que uma mudança poderia ser imaginada apenas como um evento no desenvolvimento da própria ciência, mas tal desenvolvimento científico somente pode ser esperado como resultado de uma ampla mudança social. O necessário é nada menos que uma completa transvalorização dos objetivos e necessidades, a transformação das políticas e instituições repressivas e agressivas. A transformação da ciência é imaginável apenas em um ambiente transformado; uma nova ciência exigirá um novo clima, em que novos experimentos e projetos serão sugeridos ao intelecto por novas necessidades sociais. Em seu sentido mais geral, essa transformação implicaria o desaparecimento das necessidades sociais de produção e produtos parasitários e desperdiçadores, de defesa agressiva, de competição por status e conformismo, e exigiria a correspondente liberação das necessidades individuais de paz, alegria e tranqüilidade. (MARCUSE, 2009, p. 162-63).
É a partir daqui que Habermas critica Marcuse. O projeto marcuseano de uma nova ciência e de um ambiente transformado é inconcebível à Habermas, já que os pressupostos deste não chegam próximo à crítica do trabalho estranhado. Ele vê, pelo contrário, que a problemática que circunscreve a modernidade é da comunicação (ou interação, como diz). Entretanto, tal modo de pensar leva a cabo uma crítica ideológica de uma particularidade determinada da totalidade social capitalista. O equívoco habermasiano está em não conceber a estrutura de organização do trabalho sob o capital com fomentadora das manifestações que se dão nas outras esferas sociais. Toda teoria de Jürgen Habermas está, portanto, posta sobre um equívoco de pressuposto.
O equívoco habermasiano e a crítica ideológica à Marcuse
Toda a discussão precedente nos serviu para demonstrar como a estrutura do capitalismo é determinada e dominada pela produção de capital e, sendo assim, todas as esferas que competem a essa sociedade estão submetidas à produção estranhada da vida material.
Habermas não concebe tal fato. Para ele, o plano do trabalho – que chama de ação instrumental ou ação racional quanto aos fins – não é passível de críticas, já que é a partir do trabalho, mera transformação da natureza, que se satisfazem as necessidades humanas. Em esquema de quadro (situado à página 59, da tradução ora utilizada), deixa claro que o trabalho, ou ação instrumental, está pautado sobre “regras técnicas” e, desse modo, algo condicionado pela necessidade. O trabalho fundado sobre a ciência e a técnica modernas – “nossa técnica” –, está, assim, livre de problemas. Por outro lado, aquilo que ele chama de ação comunicativa ou interação é regida por normas sociais, campo no qual pode se efetivar a emancipação e a individuação. Igualmente, segundo o autor, o grande problema relacionado à ideologia do capitalismo tardio – diferente daquela colocada na teoria marxiana –, é que, em linhas gerais, há uma intervenção de dominação e legitimação da esfera técnica de ação instrumental que impossibilita a efetiva emancipação por meio da interação já que, esta, está presa e dominada pelo movimento de ação instrumental que interfere na “extensão da comunicação isenta”. A problemática que ainda circunscreve a modernidade e a limita em seu progresso é a da comunicação. Diz ele: “a subjetividade da natureza, ainda aprisionada, não se poderá libertar antes de a comunicação dos homens entre si não estar livre da dominação. Só quando os homens comunicarem sem coação e cada um puder se reconhecer no outro, poderia o gênero humano reconhecer a natureza como em outro sujeito (...)”. (HABERMAS, 2001, p. 53).
Contudo, a estrutura comunicativa – como já observado – é apenas um elemento secundário da totalidade social e, não obstante, determinada por ela. Ora, a estrutura do capitalismo se efetiva pelo fetiche da produção. O trabalho fragmentado está submetido às vicissitudes do capital. Este, por sua vez, além de determinar a forma aparentemente contingente do trabalho estranhado, determina e submete todas as esferas particulares da totalidade social. Neste sentido, não só há intervenção da organização do trabalho social nas esferas particulares (e isso inclui as normas sociais e, também, a comunicação social), mas, antes e principalmente, uma determinação lógico-concreta. A emancipação de tais esferas particulares só pode advir com a transformação estrutural da sociedade como um todo, isto é, com a suprassunção do modo com se organiza o trabalho na sociedade capitalista. Dessa maneira, toda a teoria e crítica habermasiana está pautada em equívoco de pressuposto. A partir disso que Habermas concebe a ciência e a técnica modernas como a mais elevada e completa evolução do gênero humano. E só assim pode se efetivar sua crítica ideológica ao materialismo histórico e, com extensão, à teoria de Herbert Marcuse.
Em sua crítica à Marcuse, Habermas diz não ser possível abrir mão da ciência e da técnica modernas pelo motivo de estas conterem toda a evolução – retilínea e ahistórica – da humanidade e, além disso, por meio de tal evolução o gênero humano teria levado a cabo toda sua aspiração e capacidade. Em suma, não há como abrir mão da ciência e da técnica modernas por consistirem na teleologia humana efetivada.
Se, pois, se tem presente que a evolução técnica obedece a uma lógica que corresponde à estrutura da ação racional quanto aos fins e controlada pelo êxito – e isto significa: à estrutura do trabalho – então, não se vê como poderíamos renunciar à técnica, isto é, à nossa técnica, substituindo-a por uma qualitativamente distinta, enquanto não se modificar a organização da natureza humana e enquanto houvermos de manter nossa vida por meio do trabalho social e com a ajuda dos meios que substituem o trabalho. (HABERMAS, 2001, p. 52).
A estrutura de trabalho social engendrada pelo capitalismo colocou, de forma inédita, a possibilidade histórica da superação do trabalho humano por meio da introdução da tecnologia como substituta do trabalho direto. É o que Marcuse chama – tanto n’O homem unidimensional, quanto no texto O fim da utopia – de utopia concreta: a possibilidade de outra forma de relacionamento humano liberado do fardo da necessidade. Fica patente que tal realização só poderá se efetivar com a suprassunção do fetiche da produção. Mesmo com a possibilidade histórica colocada, a capacidade de substituição de trabalho vivo pela introdução da máquina é negada pela apropriação do benefício por uma classe determinada, a dos capitalistas. A ciência e a técnica intrínsecas à produção não substituem o trabalho: elas submetem-no ao seu jugo. Portanto, não é a necessidade de manutenção da vida social que está em jogo; antes, é a necessidade da manutenção da produção de capital que circunscreve e mascara de maneira ideológica a conservação da vida.
Sendo assim, Habermas não concebe emancipação no plano do trabalho. Sua idéia de técnica e ciência está circunscrita à sua teoria ideológica. Ele só imagina alterações no plano da interação, e não naqueles correspondentes à especificidade de utilização da ciência e da técnica pela classe de capitalista e, logicamente, pelo movimento do fetiche da produção de capital pelo trabalho estranhado. Neste âmbito, sua a critica à Marcuse se dá via lógica formal. Para ele, a ciência e a técnica não podem ser pensadas como projeto, tão pouco enquanto projeto alternativo. Não há projeto que não abarque a totalidade humana. Diz o autor: “a ciência moderna só se podia conceber como um projeto historicamente sem precedentes se, pelo menos, fosse pensável um projeto alternativo e, além disso, uma nova ciência alternativa deveria incluir a definição de uma nova técnica” (HABERMAS, 2001, p. 51), Habermas conclui, a partir daqui, que “a técnica, se em geral pudesse se reduzir a um projeto histórico, teria evidentemente de conduzir a um ‘projeto’ do gênero humano no seu conjunto, e não a um projeto historicamente superável.” (HABERMAS, 2001, p. 51).
O que o ideólogo não vê é que, tanto para a teoria marxiana, quanto para Marcuse, o que está em jogo é a maneira específica da utilização destas esferas, isto é, o modo como se organiza a produção. O materialismo histórico-dialético pauta-se pela negação determinada. Os problemas na técnica e na ciência, em si, são secundários. O problema está na especificidade de apropriação e uso. Um projeto alternativo – e isso Habermas parece se esquecer – pauta-se pela libertação do trabalho do jugo da produção e pela (re) inversão do fetiche da produção. Dessa forma, é a partir de tal equívoco cometido que o ideólogo dirá o seguinte a respeito da alternativa marcuseana:
Marcuse tem em mente uma atitude alternativa para com a natureza, mas, a partir dela, não se pode obter a idéia de uma nova técnica. Em vez de tratar a natureza como objeto da disposição técnica possível, podemos tomá-la como colocutor de uma possível interação. Em vez da natureza explorada, podemos buscar a natureza fraternal. No nível de uma intersubjetividade ainda incompleta, podemos exigir subjetividade dos animais, das plantas e até mesmo das pedras, e nos comunicar com a natureza, em vez de apenas trabalhá-la sob a interrupção da comunicação (...). Seja como for, os resultados da técnica, que, como tais, são imprescindíveis, não poderiam certamente ser substituídos por uma natureza que abre os olhos. A alternativa à técnica existente, o projeto de uma natureza como colocutor em vez de objeto, diz respeito a uma estrutura alternativa de ação: à interação simbolicamente mediada, diferente da ação racional quanto a fins (...). A idéia de uma nova técnica é tão pouco provável quanto é pensar consequentemente em uma nova ciência uma vez que, em nosso contexto, a ciência deve significar a ciência moderna, a ciência comprometida com a atitude de uma possível disponibilidade técnica: também para sua função, assim como para o progresso técnico-científico em geral, não existe substituto que seja ‘mais humano’. (HABERMAS, 2001, pp. 52-53).
Ainda em sua crítica, Habermas discute com a noção de revolução contida n’O homem unidimensional, de Marcuse:
Em muitas passagens da obra O homem unidimensional, a revolução significa apenas uma mudança do enquadramento institucional, que não afetaria as forças produtivas enquanto tais. Manter-se-ia, pois, a estrutura do progresso científico e técnico, apenas se modificariam os valores regulativos. Os novos valores traduzir-se-iam para tarefas tecnicamente solucionáveis; o novo seria a direção deste progresso, mas o próprio critério de racionalidade permaneceria inalterado. (HABERMAS, 2001, p. 53-54).
No entanto, Marcuse deixa explicito – assim como esboçamos nas primeira e segunda partes do presente texto – que a estrutura técnica e científica só teria uma mudança qualitativa se houvesse uma ampla mudança na estrutura social. Em outras palavras, só com a suprassunção do trabalho estranhado, e das ciência e técnica a ele subjacente, que se poderia pensar em alteração efetiva da utilização de tais esferas. Consequentemente, não seriam somente os “valores regulativos” e o “enquadramento institucional” que se alterariam, e Marcuse deixa isso claro: “a transformação da ciência é imaginável apenas em um ambiente transformado” (MARCUSE, 2009, p. 162-63). A racionalidade, que Habermas diz ser a mesma, seria suprassumida, também, pela mudança estrutural, já que, para Marcuse, a racionalidade contemporânea é racionalidade tecnológica e só pode estar a serviço desse tipo de sociedade e dessa forma de organização social do trabalho.
Considerações finais
A noção de ação instrumental habermasiana está fundamentada no equívoco de não conceber a utilização da ciência e a técnica pertinente a ela de maneira determinada e, não obstante, de não levar em conta a forma específica como são apropriadas e empregadas pela classe de capitalistas e pelo capital. Sua crítica à interrupção da comunicação pela interferência da esfera do trabalho é limitada e não leva em consideração a especificidade histórica do sistema capitalista. A contraposição que faz à teoria marxiana e à Marcuse está fundada, também ela, no equívoco de interpretação da totalidade social que circunscreve a modernidade. Com isso, sem impedimentos, podemos chamar Habermas, neste ponto, de ideólogo: sua teoria não passa de uma leitura equivocada da estrutura social sobre a qual se debruça. A idéia através da qual a emancipação poderia ser atingida por meio de uma liberação da comunicação, sem se preocupar com a libertação do trabalho – já que o problema não se situa aqui –, é ideológica. Tal particularidade da totalidade social – a da comunicação – é determinada por esta, e, exatamente por isso, não pode agir livre de coação sem uma alteração profunda no modo como se engendra a totalidade capitalista, isto é, sem uma transformação qualitativa da formação social, sem a suprassunção do trabalho estranhado.
Referências bibliográficas
DECCA, E. S.. O Nascimento das fábricas. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
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[1] MARX, Karl. Capital e Tecnologia e Maquinaria e Trabalho Vivo. Disponíveis no Arquivo Marxista na internet: http://www.marxists.org/portugues/marx/index.htm.
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