domingo, 19 de maio de 2013

Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano



Jouissance! Mesmo que pouco se tenha lido de Lacan, ou de seus interpretes, é o que fica na cabeça: gozo (ou “gozai”, como imperativo)[1]. Menos ousado e abstraindo menos, qual o pseudo-indivíduo, hoje, que não quer realizar todas suas fantasias mais perversas? Talvez não consiga, e talvez nem saiba exatamente quais elas são. Mas, consegue exteriorizar de alguma forma, imediatamente, sua perversão conforme a perversão social indica, ordena, e “conceda” espaço para tanto: a sociedade naturalizada desses dias é aquela que libera o indivíduo para agir da forma que bem entender. No entanto, será que esse “bem entender” é autônomo? O movimento naturalizado e hipostasiado da sociedade faz com que os “movimentos” do indivíduo sejam em torno de si mesmo, como uma galinha semimorta (com o pescoço quebrado e ainda “viva” – quem teve a oportunidade de ver isso, talvez tenha ficado atônito com a cena), sejam “movimentos” repletos de uma aparência de autonomia e legitimação: em uma palavra, reificação. A equalização entre o que “está dentro” e a abstração naturalizada do capital – mais ou menos, chamada de dessublimação repressiva –, é, talvez, a fase última de desenvolvimento do capital: permite tudo ao bloquear tudo. Goze! Mas, o quê? O que deve ser gozado? Não importa: o indivíduo autônomo dessa sociedade, esse existente específico, sabe muito bem o quê e como. É-lhe dada a capacidade inata e insuspeita de decidir e agir, imediatamente, para a efetivação de sua felicidade. Quaisquer designações em contrário são rechaçadas como opressivas e repressivas.
Nesse imbróglio o “outro” – um outro indivíduo, uma “plateia”, espectadores da ação etc. –, são, em uma só monta, interferência radical e intermédio para a realização plena da ação. Interferência na medida em que o outro é um empecilho para a ação, devendo ser eliminado espiritual e, quiçá, fisicamente. Contudo, é fundamental sua participação na ação: esse “outro” qualquer é o que faz a ação ser ela mesma, efetivar-se plenamente, é necessário que ele exista e, sem ele, não há ação nem indivíduo. Ora, em exemplo simples, ninguém “age” na medida do imediato por si só, para si só, na intimidade; só o faz ao tornar o espaço público o lugar privilegiado de sua ação “privada” e de sua efetivação enquanto indivíduo da jouissance. Por outro lado, por engraçado que seja, há o “poder do bando”: o indivíduo somente consegue ser selvagem (no sentido da dessublimação repressiva e, também, no sentido hobbesiano) quando está “protegido” e “espectado” por seu bando ou, de outra forma, quando precisa mostrar seus “poderes” para seu “bando menor” (o seu mesmo), ou o “bando-outro” (as pessoas de entorno). Sua ação do goze! só se dá na, reiterando, injunção das observação e eliminação (como subjugação ou como morte mesmo) do outro. Este é reduzido ao complemento básico do si... Enfim. Entretanto, tanto o si quanto o outro já entram na jogada como complementos, como coisas daquilo que já está hipostasiado. A sociedade (em abstrato mesmo) determina que assim seja. Pelo contrário, o indivíduo que não o faz, enquanto tenta retirar-se para qualquer outro canto, é o patológico.
Não é possível, em nossa época, falar em ética, em relação com o outro que não seja firmemente baseada pela expressão última: morte! O outro é aquele que deve perecer para que a ação do indivíduo, do si, seja efetivada plenamente – assim como o si já morto e perenizado sob o movimento abstrato dessa sociedade quase-total. Essa “dialética” esquisita, da morte, é o que há de mais sensível: qualquer outro deve ser subsumido ao si, à ação insuspeita e legitimada pelo abstrato. E, do mesmo modo, decreta-se a morte de todas as mediações sociais. Melhor: a subsunção delas ao plano do indivíduo da jouissance reificado. Como pensar uma Öffentlichkeit, uma esfera pública do debate ético-político, nesses termos? Como pensar uma relação que aceite o outro enquanto instância autônoma? Como pensar qualquer coisa que envolva o coletivo, a sociedade, quando, estes mesmos, se reduzem ao plano do si reificado (e coisificado na medida em que esse mesmo “si” é, num movimento de retorno, jogado para debaixo do tapete sujo da abstração social-capitalista)? Só é possível discursar sobre ética, política etc., quando há indivíduos sociais (ou quase isso) razoáveis (ao menos).
O imperativo do gozo não causa somente dor individual, subjetiva: ele elimina qualquer vínculo social ao se apresentar como violência. E das mais brutais! É óbvio que a paixão pelo imediato, pelo gozo sublime e abstrato (e como um fetiche concreto), somente pode desembocar em atos de violência. E não é a violência isolada como querem os mais entusiastas. É uma violência estrutural: da estrutura complexa e coisificada do indivíduo atomizado e subsumido, à estrutura violenta da sociedade que impera com seus “feitores abstratos” comandados por uma coisa vazia – capital. E a pergunta que fica não é o que nos espera no futuro; mas como digerir nosso passado e reelaborar nosso presente trágico.




[1] Fique claro: este texto não tende a interpretar Lacan – quem me dera! –, tão pouco qualquer pensador. A intensão, menos ousada, é tentar refletir sobre o cotidiano por meio da filosofia e do pensamento contemporâneo, a partir de um ponto qualquer desse cotidiano. 

Subsolo!

sábado, 11 de maio de 2013

O Crack em SP e a “grande jogada” do Estado


         Não é de hoje que o tema “droga” é um problema nos grandes centros urbanos. Remontando ao passado recente, tem-se a “injeção” de “drogas” nas periferias como “estratégia”, por um lado; também se tem, por outro lado, a grande discussão sobre “o que é droga?”, já que o fato simples do ilícito não determina nada e, ainda, ideologicamente se separa em campos distintos o que é, o que não é, o que nem é definido como etc.. Enfim, é um tema difícil de ser abordado, ainda que se possa se livrar da ideologia pela negação dos discursos moralmente cristalizados, mesmo que seja um trabalho árduo.
Ainda assim, o que chama a atenção é o tratamento classista burguês dado pelo Estado – e pela ideologia oficial – ao tema. Primeiro, droga só deve ser tratada enquanto tal – no trato policialesco – na periferia e para o lumpenproletariado. Não é muito difícil ver, nos bairros burgueses e pequeno-burgueses, junto às grandes universidades etc., a “droga”, mesmo a ilícita, como coisa corriqueira, aceitável e, até certo ponto, venerável. É muito simples tratar os meninos pretinhos das margens como “drogados”, nóias e tudo mais; ao passo que o lutador profissional – mercadoria de um grande especulador – ou o jogador profissional, o ator (assim como outros “profissionais”), como o “inspirado”: é o cara que usa a paradinha para ter mais inspiração, para “compreender” melhor os movimentos, as nuanças etc.; é o “experimentador” e o “alternativo”. É claro, o “rebelde” burguês e o rebelde das classes baixas são, mesmo que ambos “rebeldes” de causas próprias, distintos pelo trato dado pelo Estado e pela ideologia oficial.
No entanto, ainda não é somente isso que espanta. Como “deu merda” a parada da internação compulsória dos lumpens na Cracolândia em SP, já que gerou debates – interessantes até certo ponto – e viu que a prática só não era mais higienista por falta de discurso apropriado por parte do Estado, a onda virou fazer PPP (parceria público-privado) com cara de bom mocismo reacionário. O que se quer, no fim, é limpar as ruas, encher os bolsos, desviar. A jogada do Estado é insuflar dinheiro público em mãos privadas, fazendo a velha limpeza da região central – que, depois que supostamente “acabaram” com a Cracôlandia, os lumpens se espalharam pelo centro todo: “deu merda” o jogo da direita reaça –, além de dar uma resposta “positiva” à “sociedade” de parasitas. Um texto na Revista Época[1] diz que o tal Cartão Recomeço terá uma “bolsa” de R$ 1.350 que, entretanto, “será repassada a clínicas de reabilitação conveniadas”, e “O valor deverá ser repassado diretamente às clínicas de reabilitação conveniadas.” Opa! Peraí! Diretamente às clínicas? Isso não cheira, fede. É o “modelo social de reabilitação”, dizem os “entendidos”. Diz a Revista:
'O dinheiro do auxílio mensal só poderá ser usado, exclusivamente, para o pagamento de serviços prestados por clínicas de reabilitação conveniadas para recuperação dos pacientes. Não é para comprar roupa, alimentos, etc.', afirma Laranjeira. Existem vários tipos e graus de dependência. Ele diz que 'nem sempre a internação é adequada para determinado paciente, nem é o tratamento final. É necessário todo um processo de recuperação, até mesmo pelo fato de as recaídas serem comuns', afirma. 'Esse dinheiro vai tornar possível que as famílias dos viciados proporcionem, sob supervisão médica, o tratamento necessário para seu parente'.  
[...]
Para o psiquiatra José Moura Neves Filho, especialista na gestão de saúde mental e que não esteve envolvido na idealização do programa, R$ 1.350 é um valor baixo para custear o tratamento nas clínicas de reabilitação, de acordo com o que foi divulgado até o momento sobre o programa. 'Só a diária em uma clínica mediana de reabilitação costuma girar em torno de R$200. Fora todos os custos, já que é um tratamento demorado e custoso', diz. 'Se o auxílio fosse destinado a outras necessidades, como alimentação e moradia para o período pós-internação para os usuários sem-teto, por exemplo, o cartão seria mais útil.' O secretário Rodrigo Garcia defende que, com o valor do auxílio, é possível, sim, custear esse tipo de tratamento.  
[...]
Os idealizadores do Cartão Recomeço afirmam que o programa deverá incentivar indiretamente a criação de novos centros especializados e a modernização dos já existentes, uma vez que o repasse da verba só poderá ser usado em instituições credenciadas. 

O que está em jogo? É claro: debate (ou o falso debate) sobre sociedade, saúde pública, higienismo, educação pública, combate às drogas (ou melhor: aos “drogados”, àqueles que são eleitos enquanto tal), enfim, políticas sociais e políticas públicas num âmbito generalizado. Não se pode tratar de vício como crime. Tão pouco criminalizar ou tratar como incompetente o sujeito que não se adapta à sociedade da concorrência. Isso é tão necessário e intrínseco ao capitalismo que chega a ser bizarro pensar as contradições sociais vistas do ponto no qual se encontra a ideologia oficial. É um discurso, dizia Marx, “sem história”. O Cartão Recomeço deveria se chamar Cartão Capital, pois é o movimento do capital, suas vicissitudes, que estão entrando com os dois pés no peito. Esta sociedade cria suas infâmias e as resolve, a sua maneira, é claro. E as maneiras são, em um ponto, criadoras e escoadoras de in-gentes, seres inumanos, e criadoras de valor pela via oblíqua e cordial. É ridículo, pois não há projeto, não há nada pensado para além do dado. Mas não pode haver tratamento humano numa sociedade que perdeu seu status, perdeu sua humanidade por completo. Não pode, ainda, haver humanidade numa sociedade na qual “a coisa” é o que importa, é quem comanda. É absurdo – e real – pensar que a malfadada Cracôlandia foi esvaziada (ou melhor: está sendo higienizada) por conta da especulação capitalista de todas as ordens. Os debates visam, são visados e ordenados, pela “coisa” que se move por si só e leva junto seus autômatos. As in-gentes são levadas por essa maré. O termo “lumpen” não é mais um privilégio de alguns: só há lumpens por aí. A problemática é que alguns mandam, e nenhum vive. E, por fim, escoa-se, mais uma vez, para a sarjeta social todo o lixo inumano: todos.  


Subsolo!

sábado, 4 de maio de 2013

Crítica: “Por que tudo custa tão caro no Brasil”[1]

 [por que ideologia, meu amigo, aparece inclusive na crítica]


       Um artigo “crítico” aos custos em relação ao consumo no Brasil, publicado na Revista Superinteressante do mês de abril deste ano, chamou a atenção pela “lógica do absurdo” que se vivencia por aqui – mas não só isso.
     Pois bem. O artigo inicia sua explanação pelo curto período histórico brasileiro no processo de “crescimento dos emergentes” (da década de 1990 a 2008, antes da “crise” mundial e, claro, passando sorrateiro por ela). Mostra, ainda, uma comparação com os custos de consumo em relação a outros países (especialmente os países da Europa e os EUA, isto é, países, capitalistamente falando, “desenvolvidos”). Até aí, sem problemas. Ou quase isso. O que já se percebe, desde o início, é a ligação não tão explícita entre o “problema” inflacionário o qual, por ora, o Brasil vive e, além, a paranoia do “estado de pânico” que se instala por conta de “descobertas científicas” dessa monta.

    No entanto, a problemática mal desenvolvida do artigo começa quando se alia o crescimento do PIB ao do consumo (e, claro, a suposta transição ascendente de classe social – no estilo tipicamente positivista), e, ainda, esses “crescimentos” ao aumento vertiginoso dos preços e do custo de vida. Isso, diz o artigo, ocorre por mãos “individuais”: indivíduo A ganha uma grana, compra uma rede comerciária; indivíduo B, gerente dessa rede, compra um carro; indivíduo C, dono da concessionária, “investe” em algo (comércio, no geral); e assim o “capital” gira sem uma estrutura social por detrás: “Só isso já começa a explicar o boom dos imóveis. Agora o gerente da pizzaria, o dono da concessionária e a equipe da SUPER não dependiam mais do Baú da Felicidade para tentar o sonho da casa própria. Sentiram que dava e foram atrás de apartamento.” Bem, é claro que, ainda, se alia o “montante” ao nexo “oferta-procura”.

     O Artigo continua, fala sobre a carga tributária exuberante como as matas do Brasil (nem dá para acreditar que ainda existam!), expõe, ao seu modo, a burocracia de causar inveja a qualquer weberiano fanático... Enfim. É prolixo em exemplos para mostrar o Brasil segundo sua (da Revista, dos autores etc.) visão. Tudo isso é “chover no molhado”. Em outras palavras, diz o que é visto, ouvido, lido nas redes sócio-virtuais a rodo, comentado, explanado (pelo senso comum, é claro) e etc.. Porém, a máxima do século XXI é criar “micro estados de exceção”, como algo “fora do normal”, ainda que dentro do normal e nada de exceção, já que é a regra básica e cotidiana. Assim, a tática atual para criar o pânico de modo “cômico” e trivial é quase idêntica ao modelo parasitário e sensacionalista dos programas da TV aberta (Datena, Ratinho e toda essa facção de exímios senhores).

      Entretanto, o que aqui se quer destacar são questões pontuais que aparecem do meio ao fim do texto. Em primeiro lugar, o que o artigo chama de “má vontade”, no sentido político – isto é, dizendo que o Brasil não tem investimento em produção, em questões sociais etc. –, não é analisado enquanto tal. Uma breve digressão história, da colônia ao século XX, já daria outra conotação ao problema. O não aprofundamento – já que se trata de um artigo de revista e, por isso mesmo, os autores se dão ao luxo de “jogar verdades” aos quatro ventos sem, ao menos, as embasar – é, de fato, o grande causador da dicotomia e do “pânico” sensacionalista. Historicamente nunca houve incentivo ou incremento da produção (num sentido amplo), menos ainda no que tange a questões sociais. Somente se investe, isso vindo do Estado, em questões sociais quando não se tem mais como negá-las explicitamente. Em relação à produção, o Brasil investe muito bem, muito pelo contrário do que diz o artigo. Para uma burguesia dependente e parasitária, os investimentos se dão não como incremento do capital – a não ser em casos tanto no período militar quanto no que diz respeito à década de 1990 em diante, com transnacionais e multinacionais aqui instaladas. Os investimentos ocorrem, majoritariamente, no fomento e manutenção do baixo custo do trabalho – criador de valor e que faz girar o capital –, na isenção de taxas e nas obscuras transações oligarcas, que são, nada mais nada menos, que resquícios vivos do período colonial. Sem falar, é claro, no movimento do capital abstratamente financeiro que enxerta a produção de insumos de primeira monta: matéria-prima barata e abundante (até parece que estamos no séc. XVI ou XVII). Não faz sentido falar de má vontade política quando se resume a própria política aos profissionais burocratas do Estado. Não faz sentido, tão pouco, dizer que falta investimento em produção quando, pelo contrário, o Brasil produz o que tem de produzir enquanto país dependente e, ainda, o que deve produzir enquanto “celeiro mundial”.

    Ainda há a contradição, de um típico proudhonianismo infantil, de dizer que o investimento em produção baixa os custos (para o último consumidor, isto é, para o “povão”): “Investir em mais meios de produção é ótimo porque baixa os custos lá na frente. É um PIB que gera mais PIB. A argamassa não fica valendo ouro porque o país passa a produzir mais e melhor argamassa (ou placas pré-fabricadas). [...]. Os preços não partem para a irracionalidade. Não dá.” Gerar mais PIB não significa engendrar melhores condições de vida. Aliás, nunca significou. A comparação que o artigo faz é com a China dos anos 2000 em diante. O que será que é ocultado? É muito evidente para qualquer um que acompanhe um pouco mais de perto (nem precisa ser especialista) o “desenvolvimento” da China capitalista: superexploração do trabalho com baixíssimo custo da mão-de-obra (em todos os sentidos); muita gente, ou seja, muita mão-de-obra ultra-barata; compra de matéria-prima a preço de banana (do Brasil, diga-se). Por outro lado se dá a comparação com países desenvolvidos, os chamados de “primeiro mundo”: ora, comparar com, por exemplo, EUA, que se beneficiaram da ordem ascética protestante, da escravidão, das grandes guerras, da dizimação de povos inteiros, da dependência de seu povo e de outros povos à sua burguesia e ao seu Estado, é quase uma afronta ao raciocínio! Comparar, por outro lado, com o Japão fica mais fácil: um país que foi dizimado por uma “bombinha” e que, em seguida, se tornou extremamente dependente; país no qual, entre muitas outras coisas, a exploração da mão-de-obra lembra de perto o taylorismo, com 16h de trabalho diário, sem leis trabalhistas amplas; país, em fim, que faz seus trabalhadores terem dormitórios, não casas: cubículos no qual passam as horas de descanso – e não é de lá, também, que vem o toyotismo e todas suas vicissitudes? O que se tem, no artigo, é o absurdo da comparação deixa de lado todo seu fundamento por uma “impressão” mal feita. É mais ou menos a discussão de duas crianças que se debatem para provar que as estrelas que veem no céu têm cinco pontas. Mal sabem elas do que estão falando.

*    *    *

 “Nossos juros altos, nossa energia cara e nossa logística do século 19 (sic!) são grandes freios para o PIB. E aceleradores dos preços altos.
Mas claro! Os juros e o encarecimento de coisas tão fundamentais são uma afronta para o crescimento do PIB! Ora! Mas, e aí, só isso tem a dizer, amigo? Os preços altos não estão relacionados aos juros, pelo menos não em primeira instância. Vamos lá: existem taxas que os produtores devem pagar, não pagam. E onde elas aparecem? No produto final, é claro, para o comprador final. Os altos índices de lucro estão ligados ao mais-valor, na superexploração contínua do trabalho, e os altos custos que o produtor capitalista deixa de pagar e repassa, sem mais nem menos, para o consumidor final. No entanto, isso ainda é chover no molhado. Os juros não são inimigos da burguesia num capitalismo dependente. Basta ver que não é o Estado por si só que comanda toda a parafernália. Os bancos, que são os que mais enriquecem na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, na riqueza e... Enfim, os bancos coordenam, por um lado, as taxações. Por outro, os órgãos internacionais controlam como, quando, onde e por que será investido o capital. Nossa logística é atrasada não por acaso. Têm-se vias férreas, ainda que não suficiente. Mas, quantas funcionam? Qual a “vontade” que se tem quanto a isso funcionar? Não se trata de má vontade ou mau planejamento. Pensemos: o país começa a fazer o escoamento interno por vias férreas e fluviais (um com custo quase pela metade do transporte rodoviário, ou quase que um quarto – 25% – aquele custo). Ótimo! Não fosse o lobby e a dependência. Quem não permitirá? O Grande Capital: as transnacionais dominam o mercado (a produção) de caminhões, pneus, asfalto (por isso o asfalto por aqui é tão vadio!) etc.. Isso faz o capital girar, faz o movimento da produção, da maquinaria, de produtos “essenciais”, de dinheiro. Por exemplo: o país precisa prestar contas a “alguém” – chamemos de “Grande Irmão” – e o Grande Irmão empresta uns trocados, ou mesmo “comercia” conosco, ou deixa que “comerciemos” com outros. O Grande Irmão é o pai reacionário que não dá “liberdades” ao filho. Bem, investir em educação, saúde etc.? Não! Pelo menos não como quisermos. Pode-se “investir” em questões sociais, mas só o tanto que o Grande Irmão deixa e impõe. Bem, por aqui, sem estender muito, já dá para perceber que, se por um lado não se trata de “vontade” simplesmente, por outro, o país está indo de vento em popa, pois permanece em grande parte no século XIX, e, à reboque, com tudo que o século XIX teve de “melhor”... 

                                                                *    *    *          
Parece necessário reler o “capítulo do dinheiro” – e a “Introdução” –, nos Grundrisse do “Véio Barbudo” e tentar entender como o consumo (a distribuição, circulação, troca etc..) não tem autonomia frente à produção. E, ainda, como a especulação, em todas as frentes, é algo intrínseco ao movimento capitalista, ao movimento de capital-dinheiro (ainda que abstrato), e como os preços altos não estão somente relacionados a juros etc..
Pois bem, no fim do “grande e eloquente” texto, pode-se ler:
 Talvez o problema esteja mesmo na “realidade do mercado”. Nessa realidade, pagar R$ 100 mil em carro passou a ser uma despesa aceitável, mesmo que isso comprometa uma fatia gorda do salário. A verdade é que preços altos têm uma força magnética no País. Gostamos de gastar, de ostentar. É status. A ponto de lojas de preços acessíveis na Europa, como a espanhola Zara e a inglesa Topshop, virarem grife aqui. A regra no Brasil é consumir muito e poupar pouco. Segundo o instituto de pesquisas Nielsen, os brasileiros guardam 27% do que ganham – contra uma média de 39% no resto da América Latina. No ano passado, consumimos quase 10% a mais que em 2011, em especial nas concessionárias (30,3%) e nos supermercados (28,8%). Isso não é ruim na essência – no Japão, gastam pouco e poupam muito, e a economia deles está estagnada. Mas se a produção não acompanha o consumo, não tem jeito: os preços sobem. Outro problema é que nos endividamos muito. Uma pesquisa recente do Ibope diz que 41% dos brasileiros têm dívidas. Entre os alemães, por exemplo, são 10% (e isso é um recorde histórico lá).
Nunca tivemos tanto crédito e, por falta de educação financeira, o pensamento é: ‘Estão me dando dinheiro, vou gastar’”, diz o economista Samy Dana, da Fundação Getúlio Vargas. Para Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, “as pessoas não estão acostumadas a lidar com isso. Doce é bom, mas demais lambuza”. Temos uma boa desculpa, até. Não faz tanto tempo, em 1993, a inflação medida pelo governo alcançou estratosféricos 2.477%. Todo dia 5, os brasileiros corriam ao supermercado para abastecer a despensa de arroz e feijão e o freezer de carne. Porque, no dia 6, os preços já teriam sido remarcados. Como pensar em poupar em um cenário desses? O negócio era gastar, antes que o dinheiro – ou seus zeros à direita – desaparecesse.
A verdade é que temos muito a aprender sobre como lidar com dinheiro. “Agora chega”, diz a economista Virene Roxo Matesco, da FGV. “A inflação foi debelada em 1994. Já temos uma geração de consumidores que não sabe o que é isso”, diz. “As pessoas não têm ideia do custo-benefício de poupar”. Pois é. Uma hora a gente aprende. Mas, se o governo e as empresas não colaborarem, investindo mais em produção e cortando tributos excessivos, não vai adiantar grande coisa. E vamos continuar enxergando os preços justos como uma atração turística do exterior. (grifo meu).
A “culpa” de endividamentos, custo alto de “vida” (entenda-se o que quiser por vida!) e etc., é por conta do “status”. Isto quer dizer a “culpabilidade de Robinson Crusoé”, ou seja, do indivíduo isolado, por isso autônomo, e “burro”, já que não tem “educação financeira”. Não faz muito tempo o Fantástico, “grande e honesto” jornalístico dominical – que sua trilha sonora de fechamento indica o depressivo e derradeiro suspiro do final de semana –, tinha um “economista” (pode-se chamar assim qualquer um que use uma HP e faça cálculos primários) que “tentava educar” as pessoas a economizar etc.. Todo o problema do capital e da mistificação da realidade se dá por causa do “indivíduo incompetente” e em busca de “status”. Como se necessidade falsificada e supérflua nascesse naturalmente no indivíduo, assim como a fotossíntese ocorre nas plantas. A propaganda, há muito tempo, não é considerada por qualquer sujeito astuto como “gasto” ou mesmo um apêndice do capital: ela mesma é capital, já que ela mesma é produção por si só. Quando se fala de produção, vem à mente produção de coisas empíricas, materiais. Mas desde que a burguesia começa seu trajeto, antes mesmo das revoluções burguesas, a produção da necessidade (não produção do humanamente necessário) é o primeiro quesito a ser pensado. E, além do mais, o status custa, é óbvio, mais caro que um produto qualquer. Fulano não compra em Miami porque é mais “barato”. Isso ele pode fazer no Brás, com bugigangas de todos os tipos produzidos a preço de trabalho escravo. Compra em Miami, pois dá status, é importado. É muito fácil falar que “brasileiro adora gastar”, coisa e tal. O difícil é pensar como a produção, em um estado cordial e cínico, é altamente corrosiva. Empréstimo, crédito, é, em uma palavra, produção: é investimento e superexploração por agiotagem de banqueiro. O crédito capitalista nada tem a ver com “bondade” ou “aquecimento do mercado”, com “consumo” ou coisas mais.
Por outro lado, insistir que “consumo” e “produção” tem que crescer juntos, invertendo os polos – “Mas se a produção não acompanha o consumo, não tem jeito: os preços sobem” – é uma afronta e uma aceitação passiva do capital como natureza primeira. Os meandros e contradições da estrutura do capital não são questionados, tão pouco levados em conta. A produção é produção de distribuição, troca, consumo. Capitalismo não produz coisas. Produz abstrações, modelos que são “comprados” antes das coisas. O próprio movimento do capital, em todas as suas etapas (se é que se pode desmembrar), cria o tipo específico de consumo e o consumidor alienado que nada tem a fazer de modo isolado. O consumo deve ser repensado por meio da produção. Pois mesmo o consumo “consciente” (se é que isso existe sob o Capitalismo) ainda é consumo de coisas supérfluas, ainda é “consumo capitalista”. Assim, levar a crer que o indivíduo “robinsoniano” é o “idiota” da vez, pois ele que fomenta o capital e suas contradições, é fazer o discurso do próprio capital e aceitar seu ultimato. E não é que está na moda fazer tais discursos? Se assim se aceita, não há problemas em tirar a culpa da burguesia, do Estado, da luta de classes, enfim, da própria historicidade do capitalismo e jogá-la em cima dos Robinson Crusóes! Aceitando isso, estamos certos em aceitar a culpabilidade dos indivíduos fragmentados e quase que completamente sem autonomia: joguem os meninos pretinhos na cadeia; curem os gays; não aceitem cotas (já que é esmola) etc.. O indivíduo no seio do capitalismo é filho legítimo de uma má gestação: é açoitado pelo capital abstrato em todas as frentes. Dizer que ele pode “poupar” (e a pergunta: para quê?), é dizer que ele pode, assim, acumular capital para o próprio capital.
Por fim (ufa!), um artigo de revista que expõe “verdades” não problematizadas, estanques e incontestáveis – omite com o intuito de vender –, não “conscientiza”, tampouco faz crítica: antes, produz a pseudoconsciência necessária para que o ritmo do sujeito abstrato não cesse. Produz capital ao produzir – aqui no sentido de expor – ideologia.
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[1] Por Alexandre Versignassi e Felipe van Deursen. Matéria da Revista Superinteressante, Edição 317 – Abril/2013. Pode ser lido na íntegra aqui:  Por que tudo custa tão caro no Brasil 


Subsolo!