[por que ideologia, meu amigo, aparece
inclusive na crítica]
Um artigo “crítico” aos custos em relação ao consumo
no Brasil, publicado na Revista Superinteressante
do mês de abril deste ano, chamou a atenção pela “lógica do absurdo” que se vivencia por aqui – mas não só isso.
Pois bem. O artigo inicia sua explanação pelo curto
período histórico brasileiro no processo de “crescimento dos emergentes” (da
década de 1990 a 2008, antes da “crise” mundial e, claro, passando sorrateiro
por ela). Mostra, ainda, uma comparação com os custos de consumo em relação a
outros países (especialmente os países da Europa e os EUA, isto é, países,
capitalistamente falando, “desenvolvidos”). Até aí, sem problemas. Ou quase
isso. O que já se percebe, desde o início, é a ligação não tão explícita entre
o “problema” inflacionário o qual, por ora, o Brasil vive e, além, a paranoia
do “estado de pânico” que se instala por conta de “descobertas científicas”
dessa monta.
No entanto, a problemática mal desenvolvida do
artigo começa quando se alia o crescimento do PIB ao do consumo (e, claro, a
suposta transição ascendente de classe social – no estilo tipicamente
positivista), e, ainda, esses “crescimentos” ao aumento vertiginoso dos preços
e do custo de vida. Isso, diz o artigo, ocorre por mãos “individuais”:
indivíduo A ganha uma grana, compra uma rede comerciária; indivíduo B, gerente
dessa rede, compra um carro; indivíduo C, dono da concessionária, “investe” em
algo (comércio, no geral); e assim o “capital” gira sem uma estrutura social
por detrás: “Só isso
já começa a explicar o boom dos imóveis. Agora o gerente da pizzaria, o dono da
concessionária e a equipe da SUPER não dependiam mais do Baú da Felicidade para
tentar o sonho da casa própria. Sentiram que dava e foram atrás de apartamento.” Bem, é claro que,
ainda, se alia o “montante” ao nexo “oferta-procura”.
O Artigo continua, fala sobre a
carga tributária exuberante como as matas do Brasil (nem dá para acreditar que
ainda existam!), expõe, ao seu modo, a burocracia de causar inveja a qualquer
weberiano fanático... Enfim. É prolixo em exemplos para mostrar o Brasil
segundo sua (da Revista, dos autores
etc.) visão. Tudo isso é “chover no molhado”. Em outras palavras, diz o que é
visto, ouvido, lido nas redes sócio-virtuais a rodo, comentado, explanado (pelo
senso comum, é claro) e etc.. Porém, a máxima do século XXI é criar “micro
estados de exceção”, como algo “fora do normal”, ainda que dentro do normal e
nada de exceção, já que é a regra básica e cotidiana. Assim, a tática atual
para criar o pânico de modo “cômico” e trivial é quase idêntica ao modelo
parasitário e sensacionalista dos programas da TV aberta (Datena, Ratinho e
toda essa facção de exímios senhores).
Entretanto, o que aqui se quer
destacar são questões pontuais que aparecem do meio ao fim do texto. Em
primeiro lugar, o que o artigo chama de “má
vontade”, no sentido político – isto é, dizendo que o Brasil não tem
investimento em produção, em questões sociais etc. –, não é analisado enquanto
tal. Uma breve digressão história, da colônia ao século XX, já daria outra
conotação ao problema. O não aprofundamento – já que se trata de um artigo de
revista e, por isso mesmo, os autores se dão ao luxo de “jogar verdades” aos
quatro ventos sem, ao menos, as embasar – é, de fato, o grande causador da
dicotomia e do “pânico” sensacionalista. Historicamente nunca houve incentivo
ou incremento da produção (num sentido amplo), menos ainda no que tange a
questões sociais. Somente se investe, isso vindo do Estado, em questões sociais
quando não se tem mais como negá-las explicitamente. Em relação à produção, o
Brasil investe muito bem, muito pelo contrário do que diz o artigo. Para uma
burguesia dependente e parasitária, os investimentos se dão não como incremento
do capital – a não ser em casos tanto no período militar quanto no que diz
respeito à década de 1990 em diante, com transnacionais e multinacionais aqui
instaladas. Os investimentos ocorrem, majoritariamente, no fomento e manutenção
do baixo custo do trabalho – criador de valor e que faz girar o capital –, na
isenção de taxas e nas obscuras transações oligarcas, que são, nada mais nada
menos, que resquícios vivos do período colonial. Sem falar, é claro, no
movimento do capital abstratamente financeiro que enxerta a produção de insumos
de primeira monta: matéria-prima barata e abundante (até parece que estamos no
séc. XVI ou XVII). Não faz sentido falar de má vontade política quando se
resume a própria política aos profissionais burocratas do Estado. Não faz
sentido, tão pouco, dizer que falta investimento em produção quando, pelo
contrário, o Brasil produz o que tem de produzir enquanto país dependente e,
ainda, o que deve produzir enquanto “celeiro mundial”.
Ainda há a contradição, de um
típico proudhonianismo infantil, de dizer que o investimento em produção baixa
os custos (para o último consumidor, isto é, para o “povão”): “Investir em mais meios de produção é ótimo
porque baixa os custos lá na frente. É um PIB que gera mais PIB. A argamassa
não fica valendo ouro porque o país passa a produzir mais e melhor argamassa
(ou placas pré-fabricadas). [...]. Os preços não partem para a irracionalidade.
Não dá.” Gerar mais PIB não significa engendrar melhores condições de vida.
Aliás, nunca significou. A comparação que o artigo faz é com a China dos anos
2000 em diante. O que será que é ocultado? É muito evidente para qualquer um
que acompanhe um pouco mais de perto (nem precisa ser especialista) o “desenvolvimento”
da China capitalista: superexploração do trabalho com baixíssimo custo da
mão-de-obra (em todos os sentidos); muita gente, ou seja, muita mão-de-obra
ultra-barata; compra de matéria-prima a preço de banana (do Brasil, diga-se).
Por outro lado se dá a comparação com países desenvolvidos, os chamados de “primeiro
mundo”: ora, comparar com, por exemplo, EUA, que se beneficiaram da ordem
ascética protestante, da escravidão, das grandes guerras, da dizimação de povos
inteiros, da dependência de seu povo e de outros povos à sua burguesia e ao seu
Estado, é quase uma afronta ao raciocínio! Comparar, por outro lado, com o
Japão fica mais fácil: um país que foi dizimado por uma “bombinha” e que, em
seguida, se tornou extremamente dependente; país no qual, entre muitas outras
coisas, a exploração da mão-de-obra lembra de perto o taylorismo, com 16h de
trabalho diário, sem leis trabalhistas amplas; país, em fim, que faz seus
trabalhadores terem dormitórios, não casas: cubículos no qual passam as horas
de descanso – e não é de lá, também, que vem o toyotismo e todas suas
vicissitudes? O que se tem, no artigo, é o absurdo da comparação deixa de lado
todo seu fundamento por uma “impressão” mal feita. É mais ou menos a discussão
de duas crianças que se debatem para provar que as estrelas que veem no céu têm
cinco pontas. Mal sabem elas do que estão falando.
* * *
“Nossos
juros altos, nossa energia cara e nossa logística do século 19 (sic!) são
grandes freios para o PIB. E aceleradores dos preços altos.”
Mas claro! Os
juros e o encarecimento de coisas tão fundamentais são uma afronta para o
crescimento do PIB! Ora! Mas, e aí, só isso tem a dizer, amigo? Os preços altos
não estão relacionados aos juros, pelo menos não em primeira instância. Vamos
lá: existem taxas que os produtores devem pagar, não pagam. E onde elas
aparecem? No produto final, é claro, para o comprador final. Os altos índices de
lucro estão ligados ao mais-valor, na superexploração contínua do trabalho, e
os altos custos que o produtor capitalista deixa de pagar e repassa, sem mais
nem menos, para o consumidor final. No entanto, isso ainda é chover no molhado.
Os juros não são inimigos da burguesia num capitalismo dependente. Basta ver
que não é o Estado por si só que comanda toda a parafernália. Os bancos, que
são os que mais enriquecem na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, na
riqueza e... Enfim, os bancos coordenam, por um lado, as taxações. Por outro, os
órgãos internacionais controlam como, quando, onde e por que será investido o
capital. Nossa logística é atrasada não por acaso. Têm-se vias férreas, ainda
que não suficiente. Mas, quantas funcionam? Qual a “vontade” que se tem quanto
a isso funcionar? Não se trata de má vontade ou mau planejamento. Pensemos: o
país começa a fazer o escoamento interno por vias férreas e fluviais (um com
custo quase pela metade do transporte rodoviário, ou quase que um quarto – 25% –
aquele custo). Ótimo! Não fosse o lobby
e a dependência. Quem não permitirá? O Grande Capital: as transnacionais
dominam o mercado (a produção) de caminhões, pneus, asfalto (por isso o asfalto
por aqui é tão vadio!) etc.. Isso faz o capital girar, faz o movimento da
produção, da maquinaria, de produtos “essenciais”, de dinheiro. Por exemplo: o
país precisa prestar contas a “alguém” – chamemos de “Grande Irmão” – e o
Grande Irmão empresta uns trocados, ou mesmo “comercia” conosco, ou deixa que “comerciemos”
com outros. O Grande Irmão é o pai reacionário que não dá “liberdades” ao
filho. Bem, investir em educação, saúde etc.? Não! Pelo menos não como
quisermos. Pode-se “investir” em questões sociais, mas só o tanto que o Grande
Irmão deixa e impõe. Bem, por aqui, sem estender muito, já dá para perceber
que, se por um lado não se trata de “vontade” simplesmente, por outro, o país
está indo de vento em popa, pois permanece em grande parte no século XIX, e, à
reboque, com tudo que o século XIX teve de “melhor”...
* * *
Parece
necessário reler o “capítulo do dinheiro” – e a “Introdução” –, nos Grundrisse do “Véio Barbudo” e tentar
entender como o consumo (a distribuição, circulação, troca etc..) não tem
autonomia frente à produção. E, ainda, como a especulação, em todas as frentes,
é algo intrínseco ao movimento capitalista, ao movimento de capital-dinheiro
(ainda que abstrato), e como os preços altos não estão somente relacionados a
juros etc..
Pois bem,
no fim do “grande e eloquente” texto, pode-se ler:
Talvez o problema esteja mesmo na “realidade do mercado”. Nessa
realidade, pagar R$ 100 mil em carro passou a ser uma despesa aceitável, mesmo
que isso comprometa uma fatia gorda do salário. A verdade é que preços altos
têm uma força magnética no País. Gostamos
de gastar, de ostentar. É status. A ponto de lojas de preços acessíveis na
Europa, como a espanhola Zara e a inglesa Topshop, virarem grife aqui. A regra no Brasil é consumir muito e poupar
pouco. Segundo o instituto de pesquisas Nielsen, os brasileiros guardam 27%
do que ganham – contra uma média de 39% no resto da América Latina. No ano
passado, consumimos quase 10% a mais que em 2011, em especial nas concessionárias
(30,3%) e nos supermercados (28,8%). Isso não é ruim na essência – no Japão,
gastam pouco e poupam muito, e a economia deles está estagnada. Mas se a produção não acompanha o consumo,
não tem jeito: os preços sobem. Outro problema é que nos endividamos muito.
Uma pesquisa recente do Ibope diz que 41% dos brasileiros têm dívidas. Entre os
alemães, por exemplo, são 10% (e isso é um recorde histórico lá).
“Nunca
tivemos tanto crédito e, por falta de educação financeira, o pensamento é:
‘Estão me dando dinheiro, vou gastar’”, diz o economista Samy Dana, da Fundação Getúlio Vargas. Para Gustavo
Loyola, ex-presidente do Banco Central, “as pessoas não estão acostumadas a
lidar com isso. Doce é bom, mas demais lambuza”. Temos uma boa desculpa, até.
Não faz tanto tempo, em 1993, a inflação medida pelo governo alcançou
estratosféricos 2.477%. Todo dia 5, os brasileiros corriam ao supermercado para
abastecer a despensa de arroz e feijão e o freezer de carne. Porque, no dia 6,
os preços já teriam sido remarcados. Como pensar em poupar em um cenário
desses? O negócio era gastar, antes que o dinheiro – ou seus zeros à direita –
desaparecesse.
A verdade é
que temos muito a aprender sobre como lidar com dinheiro. “Agora chega”, diz a economista Virene Roxo Matesco, da FGV.
“A inflação foi debelada em 1994. Já temos uma geração de consumidores que não
sabe o que é isso”, diz. “As pessoas não têm ideia do custo-benefício de
poupar”. Pois é. Uma hora a gente aprende. Mas, se o governo e as empresas não
colaborarem, investindo mais em produção e cortando tributos excessivos, não
vai adiantar grande coisa. E vamos continuar enxergando os preços justos como
uma atração turística do exterior. (grifo meu).
A
“culpa” de endividamentos, custo alto de “vida” (entenda-se o que quiser por
vida!) e etc., é por conta do “status”. Isto quer dizer a “culpabilidade de Robinson Crusoé”, ou seja, do indivíduo isolado, por
isso autônomo, e “burro”, já que não tem “educação financeira”. Não faz muito
tempo o Fantástico, “grande e honesto” jornalístico dominical – que sua trilha
sonora de fechamento indica o depressivo e derradeiro suspiro do final de
semana –, tinha um “economista” (pode-se chamar assim qualquer um que use uma
HP e faça cálculos primários) que “tentava educar” as pessoas a economizar
etc.. Todo o problema do capital e da mistificação da realidade se dá por causa
do “indivíduo incompetente” e em busca de “status”. Como se necessidade
falsificada e supérflua nascesse naturalmente no indivíduo, assim como a
fotossíntese ocorre nas plantas. A propaganda, há muito tempo, não é
considerada por qualquer sujeito astuto como “gasto” ou mesmo um apêndice do
capital: ela mesma é capital, já que ela mesma é produção por si só. Quando se
fala de produção, vem à mente produção de coisas empíricas, materiais. Mas
desde que a burguesia começa seu trajeto, antes mesmo das revoluções burguesas,
a produção da necessidade (não produção do humanamente necessário) é o primeiro quesito a ser pensado. E, além do mais,
o status custa, é óbvio, mais caro que um produto qualquer. Fulano não compra
em Miami porque é mais “barato”. Isso ele pode fazer no Brás, com bugigangas de
todos os tipos produzidos a preço de trabalho escravo. Compra em Miami, pois dá
status, é importado. É muito fácil falar que “brasileiro adora gastar”, coisa e
tal. O difícil é pensar como a produção, em um estado cordial e cínico, é
altamente corrosiva. Empréstimo, crédito, é, em uma palavra, produção: é
investimento e superexploração por agiotagem de banqueiro. O crédito
capitalista nada tem a ver com “bondade” ou “aquecimento do mercado”, com “consumo”
ou coisas mais.
Por outro lado, insistir que “consumo” e “produção” tem que
crescer juntos, invertendo os polos – “Mas se a
produção não acompanha o consumo, não tem jeito: os preços sobem” – é uma afronta e uma
aceitação passiva do capital como natureza primeira. Os meandros e contradições
da estrutura do capital não são questionados, tão pouco levados em conta. A
produção é produção de distribuição, troca, consumo. Capitalismo não produz coisas. Produz abstrações,
modelos que são “comprados” antes das coisas. O próprio movimento do capital,
em todas as suas etapas (se é que se pode desmembrar), cria o tipo específico de consumo e o consumidor alienado que
nada tem a fazer de modo isolado. O consumo deve ser repensado por meio da
produção. Pois mesmo o consumo “consciente” (se é que isso existe sob o
Capitalismo) ainda é consumo de coisas supérfluas, ainda é “consumo capitalista”.
Assim, levar a crer que o indivíduo “robinsoniano” é o “idiota” da vez, pois
ele que fomenta o capital e suas contradições, é fazer o discurso do próprio
capital e aceitar seu ultimato. E não é que está na moda fazer tais discursos?
Se assim se aceita, não há problemas em tirar a culpa da burguesia, do Estado,
da luta de classes, enfim, da própria historicidade do capitalismo e jogá-la em
cima dos Robinson Crusóes! Aceitando isso, estamos certos em aceitar a
culpabilidade dos indivíduos fragmentados e quase que completamente sem
autonomia: joguem os meninos pretinhos na cadeia; curem os gays; não aceitem
cotas (já que é esmola) etc.. O indivíduo no seio do capitalismo é filho legítimo
de uma má gestação: é açoitado pelo capital abstrato em todas as frentes. Dizer
que ele pode “poupar” (e a pergunta: para quê?), é dizer que ele pode, assim,
acumular capital para o próprio capital.
Por
fim (ufa!), um artigo de revista que expõe “verdades” não problematizadas,
estanques e incontestáveis – omite com o intuito de vender –, não “conscientiza”,
tampouco faz crítica: antes, produz a
pseudoconsciência necessária para que o ritmo do sujeito abstrato não cesse. Produz capital ao produzir – aqui no
sentido de expor – ideologia.
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