sábado, 11 de maio de 2013

O Crack em SP e a “grande jogada” do Estado


         Não é de hoje que o tema “droga” é um problema nos grandes centros urbanos. Remontando ao passado recente, tem-se a “injeção” de “drogas” nas periferias como “estratégia”, por um lado; também se tem, por outro lado, a grande discussão sobre “o que é droga?”, já que o fato simples do ilícito não determina nada e, ainda, ideologicamente se separa em campos distintos o que é, o que não é, o que nem é definido como etc.. Enfim, é um tema difícil de ser abordado, ainda que se possa se livrar da ideologia pela negação dos discursos moralmente cristalizados, mesmo que seja um trabalho árduo.
Ainda assim, o que chama a atenção é o tratamento classista burguês dado pelo Estado – e pela ideologia oficial – ao tema. Primeiro, droga só deve ser tratada enquanto tal – no trato policialesco – na periferia e para o lumpenproletariado. Não é muito difícil ver, nos bairros burgueses e pequeno-burgueses, junto às grandes universidades etc., a “droga”, mesmo a ilícita, como coisa corriqueira, aceitável e, até certo ponto, venerável. É muito simples tratar os meninos pretinhos das margens como “drogados”, nóias e tudo mais; ao passo que o lutador profissional – mercadoria de um grande especulador – ou o jogador profissional, o ator (assim como outros “profissionais”), como o “inspirado”: é o cara que usa a paradinha para ter mais inspiração, para “compreender” melhor os movimentos, as nuanças etc.; é o “experimentador” e o “alternativo”. É claro, o “rebelde” burguês e o rebelde das classes baixas são, mesmo que ambos “rebeldes” de causas próprias, distintos pelo trato dado pelo Estado e pela ideologia oficial.
No entanto, ainda não é somente isso que espanta. Como “deu merda” a parada da internação compulsória dos lumpens na Cracolândia em SP, já que gerou debates – interessantes até certo ponto – e viu que a prática só não era mais higienista por falta de discurso apropriado por parte do Estado, a onda virou fazer PPP (parceria público-privado) com cara de bom mocismo reacionário. O que se quer, no fim, é limpar as ruas, encher os bolsos, desviar. A jogada do Estado é insuflar dinheiro público em mãos privadas, fazendo a velha limpeza da região central – que, depois que supostamente “acabaram” com a Cracôlandia, os lumpens se espalharam pelo centro todo: “deu merda” o jogo da direita reaça –, além de dar uma resposta “positiva” à “sociedade” de parasitas. Um texto na Revista Época[1] diz que o tal Cartão Recomeço terá uma “bolsa” de R$ 1.350 que, entretanto, “será repassada a clínicas de reabilitação conveniadas”, e “O valor deverá ser repassado diretamente às clínicas de reabilitação conveniadas.” Opa! Peraí! Diretamente às clínicas? Isso não cheira, fede. É o “modelo social de reabilitação”, dizem os “entendidos”. Diz a Revista:
'O dinheiro do auxílio mensal só poderá ser usado, exclusivamente, para o pagamento de serviços prestados por clínicas de reabilitação conveniadas para recuperação dos pacientes. Não é para comprar roupa, alimentos, etc.', afirma Laranjeira. Existem vários tipos e graus de dependência. Ele diz que 'nem sempre a internação é adequada para determinado paciente, nem é o tratamento final. É necessário todo um processo de recuperação, até mesmo pelo fato de as recaídas serem comuns', afirma. 'Esse dinheiro vai tornar possível que as famílias dos viciados proporcionem, sob supervisão médica, o tratamento necessário para seu parente'.  
[...]
Para o psiquiatra José Moura Neves Filho, especialista na gestão de saúde mental e que não esteve envolvido na idealização do programa, R$ 1.350 é um valor baixo para custear o tratamento nas clínicas de reabilitação, de acordo com o que foi divulgado até o momento sobre o programa. 'Só a diária em uma clínica mediana de reabilitação costuma girar em torno de R$200. Fora todos os custos, já que é um tratamento demorado e custoso', diz. 'Se o auxílio fosse destinado a outras necessidades, como alimentação e moradia para o período pós-internação para os usuários sem-teto, por exemplo, o cartão seria mais útil.' O secretário Rodrigo Garcia defende que, com o valor do auxílio, é possível, sim, custear esse tipo de tratamento.  
[...]
Os idealizadores do Cartão Recomeço afirmam que o programa deverá incentivar indiretamente a criação de novos centros especializados e a modernização dos já existentes, uma vez que o repasse da verba só poderá ser usado em instituições credenciadas. 

O que está em jogo? É claro: debate (ou o falso debate) sobre sociedade, saúde pública, higienismo, educação pública, combate às drogas (ou melhor: aos “drogados”, àqueles que são eleitos enquanto tal), enfim, políticas sociais e políticas públicas num âmbito generalizado. Não se pode tratar de vício como crime. Tão pouco criminalizar ou tratar como incompetente o sujeito que não se adapta à sociedade da concorrência. Isso é tão necessário e intrínseco ao capitalismo que chega a ser bizarro pensar as contradições sociais vistas do ponto no qual se encontra a ideologia oficial. É um discurso, dizia Marx, “sem história”. O Cartão Recomeço deveria se chamar Cartão Capital, pois é o movimento do capital, suas vicissitudes, que estão entrando com os dois pés no peito. Esta sociedade cria suas infâmias e as resolve, a sua maneira, é claro. E as maneiras são, em um ponto, criadoras e escoadoras de in-gentes, seres inumanos, e criadoras de valor pela via oblíqua e cordial. É ridículo, pois não há projeto, não há nada pensado para além do dado. Mas não pode haver tratamento humano numa sociedade que perdeu seu status, perdeu sua humanidade por completo. Não pode, ainda, haver humanidade numa sociedade na qual “a coisa” é o que importa, é quem comanda. É absurdo – e real – pensar que a malfadada Cracôlandia foi esvaziada (ou melhor: está sendo higienizada) por conta da especulação capitalista de todas as ordens. Os debates visam, são visados e ordenados, pela “coisa” que se move por si só e leva junto seus autômatos. As in-gentes são levadas por essa maré. O termo “lumpen” não é mais um privilégio de alguns: só há lumpens por aí. A problemática é que alguns mandam, e nenhum vive. E, por fim, escoa-se, mais uma vez, para a sarjeta social todo o lixo inumano: todos.  


Subsolo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

<$BlogArchiveName$>