domingo, 19 de maio de 2013

Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano



Jouissance! Mesmo que pouco se tenha lido de Lacan, ou de seus interpretes, é o que fica na cabeça: gozo (ou “gozai”, como imperativo)[1]. Menos ousado e abstraindo menos, qual o pseudo-indivíduo, hoje, que não quer realizar todas suas fantasias mais perversas? Talvez não consiga, e talvez nem saiba exatamente quais elas são. Mas, consegue exteriorizar de alguma forma, imediatamente, sua perversão conforme a perversão social indica, ordena, e “conceda” espaço para tanto: a sociedade naturalizada desses dias é aquela que libera o indivíduo para agir da forma que bem entender. No entanto, será que esse “bem entender” é autônomo? O movimento naturalizado e hipostasiado da sociedade faz com que os “movimentos” do indivíduo sejam em torno de si mesmo, como uma galinha semimorta (com o pescoço quebrado e ainda “viva” – quem teve a oportunidade de ver isso, talvez tenha ficado atônito com a cena), sejam “movimentos” repletos de uma aparência de autonomia e legitimação: em uma palavra, reificação. A equalização entre o que “está dentro” e a abstração naturalizada do capital – mais ou menos, chamada de dessublimação repressiva –, é, talvez, a fase última de desenvolvimento do capital: permite tudo ao bloquear tudo. Goze! Mas, o quê? O que deve ser gozado? Não importa: o indivíduo autônomo dessa sociedade, esse existente específico, sabe muito bem o quê e como. É-lhe dada a capacidade inata e insuspeita de decidir e agir, imediatamente, para a efetivação de sua felicidade. Quaisquer designações em contrário são rechaçadas como opressivas e repressivas.
Nesse imbróglio o “outro” – um outro indivíduo, uma “plateia”, espectadores da ação etc. –, são, em uma só monta, interferência radical e intermédio para a realização plena da ação. Interferência na medida em que o outro é um empecilho para a ação, devendo ser eliminado espiritual e, quiçá, fisicamente. Contudo, é fundamental sua participação na ação: esse “outro” qualquer é o que faz a ação ser ela mesma, efetivar-se plenamente, é necessário que ele exista e, sem ele, não há ação nem indivíduo. Ora, em exemplo simples, ninguém “age” na medida do imediato por si só, para si só, na intimidade; só o faz ao tornar o espaço público o lugar privilegiado de sua ação “privada” e de sua efetivação enquanto indivíduo da jouissance. Por outro lado, por engraçado que seja, há o “poder do bando”: o indivíduo somente consegue ser selvagem (no sentido da dessublimação repressiva e, também, no sentido hobbesiano) quando está “protegido” e “espectado” por seu bando ou, de outra forma, quando precisa mostrar seus “poderes” para seu “bando menor” (o seu mesmo), ou o “bando-outro” (as pessoas de entorno). Sua ação do goze! só se dá na, reiterando, injunção das observação e eliminação (como subjugação ou como morte mesmo) do outro. Este é reduzido ao complemento básico do si... Enfim. Entretanto, tanto o si quanto o outro já entram na jogada como complementos, como coisas daquilo que já está hipostasiado. A sociedade (em abstrato mesmo) determina que assim seja. Pelo contrário, o indivíduo que não o faz, enquanto tenta retirar-se para qualquer outro canto, é o patológico.
Não é possível, em nossa época, falar em ética, em relação com o outro que não seja firmemente baseada pela expressão última: morte! O outro é aquele que deve perecer para que a ação do indivíduo, do si, seja efetivada plenamente – assim como o si já morto e perenizado sob o movimento abstrato dessa sociedade quase-total. Essa “dialética” esquisita, da morte, é o que há de mais sensível: qualquer outro deve ser subsumido ao si, à ação insuspeita e legitimada pelo abstrato. E, do mesmo modo, decreta-se a morte de todas as mediações sociais. Melhor: a subsunção delas ao plano do indivíduo da jouissance reificado. Como pensar uma Öffentlichkeit, uma esfera pública do debate ético-político, nesses termos? Como pensar uma relação que aceite o outro enquanto instância autônoma? Como pensar qualquer coisa que envolva o coletivo, a sociedade, quando, estes mesmos, se reduzem ao plano do si reificado (e coisificado na medida em que esse mesmo “si” é, num movimento de retorno, jogado para debaixo do tapete sujo da abstração social-capitalista)? Só é possível discursar sobre ética, política etc., quando há indivíduos sociais (ou quase isso) razoáveis (ao menos).
O imperativo do gozo não causa somente dor individual, subjetiva: ele elimina qualquer vínculo social ao se apresentar como violência. E das mais brutais! É óbvio que a paixão pelo imediato, pelo gozo sublime e abstrato (e como um fetiche concreto), somente pode desembocar em atos de violência. E não é a violência isolada como querem os mais entusiastas. É uma violência estrutural: da estrutura complexa e coisificada do indivíduo atomizado e subsumido, à estrutura violenta da sociedade que impera com seus “feitores abstratos” comandados por uma coisa vazia – capital. E a pergunta que fica não é o que nos espera no futuro; mas como digerir nosso passado e reelaborar nosso presente trágico.




[1] Fique claro: este texto não tende a interpretar Lacan – quem me dera! –, tão pouco qualquer pensador. A intensão, menos ousada, é tentar refletir sobre o cotidiano por meio da filosofia e do pensamento contemporâneo, a partir de um ponto qualquer desse cotidiano. 

Subsolo!

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