Meu avô,
analfabeto de tudo – assim como minha avó, diarista –, graniteiro (profissão que hoje nem existe mais), paraibano, comprou
um terreno pequeno, na periferia, em fins da década de 1950. Num lugar, até a
década de 1970, ermo, sem asfalto, sem luz na rua (iluminação pública), sem
rede de esgoto, onde se abriam poços nos quintais para ter água. E isso ocorreu
em e para muitas e muitas famílias até a década de 1980 (com algumas
alterações). Lembro, ainda pequeno, nos fins da década de 1980 e início da
seguinte, que os poços começaram a ser fechados: jogava-se tudo dentro dos
buracos para tentar fechar; quanto mais jogava, mais cedia. Não, não estou
falando do sertão da Paraíba ou de algum lugar longínquo: é São Paulo, capital.
Exatamente, a periferia distante do centro – agora, por conta de variados
aspectos, nem tão distante. Isso tudo para quê? Para que dizer tudo isso?
A criação
histórica das periferias, das favelas etc., é – grosso modo – fruto de um
processo de marginalização dos “indesejados”: pobres, pretos, nordestinos e
nortistas retirantes... Naquele período, por vários motivos, era, até certo
ponto, “fácil” adquirir um terreno e construir um cômodo ou dois que não
ocupava nem um quarto do terreno. Mas era o que dava. Só no decorrer do tempo a
casa ia aumentando, por conta da necessidade prática (família que crescia,
agregados, casamentos dos filhos, “puxadinho”, economias de anos para ampliar certo
tipo de conforto etc.). – Em tempo: os cômodos mais antigos aqui, os dois dos
fundos, são feitos, por completo, de “barro”: tijolos de barro superpostos e “colados”
com uma mistura de barro e argila, coisa comum “antigamente”. Os conjuntos habitacionais
também proporcionaram moradia para essas pessoas. É claro que dependeu de luta
por parte de movimentos sociais por habitação etc..
A “cultura dos
puxadinhos” se deu por uma necessidade prática, não somente, ou não exatamente,
por conta da ampliação das rendas. Com o raio
estrondoso da globalização (ou do “globalitarismo”) atingindo as periferias
transmutado em consumo massivo, as necessidades (ou falsas necessidades;
necessidades impostas), crescem vertiginosamente. Uma ânsia por modernização
atinge o coração das pessoas mais simples. Era necessário que se fomentasse
algum tipo de inserção das periferias no mundo, de forma plena (ainda que
coisificada). Isso é visto, a partir dos anos 1970, por conta do acesso direto
ao centro por “ampliação” do transporte público urbano (que ainda é uma
ampliação de fachada e mal feita). Além disso, essa inserção também se dá no
plano espiritual: fazia-se imprescindível que o consumo de tudo, a cultura do
acesso, a vida como um todo, se assemelhasse àquela vista e implantada no
inconsciente pela grande mídia. Toda a falsa necessidade do capital leva em sua
torrente revolta toda a simplicidade da vida anterior e, por extensão, cria um
padrão ideal a ser seguido e, quiçá, alcançado. Toda a “modernização” que, na
década de 1990 e nas seguintes, fazia coisas brotarem do chão (supermercados,
lojas de todos os tipos, todo tipo de comércio formal e “ambulante” etc.) –
acarretando, entre outras coisas, o fim dos terrenos baldios que serviam de
campinho e outros, e também o fim dos campos de futebol de várzea, as áreas de “lazer”,
que não passavam dos mesmos terrenos baldios e etc. –, fez o tal do “custo de
vida” subir vertiginosamente. Aquelas famílias que chegaram aqui entre 1950 e
1980, que, como era costume, possuíam filhos à rodo (de dois à quatorze ou mais), só podiam – ou o espaço só
comportava – um “puxadinho” para o que primeiro casasse ou para o mais velho.
Em alguns casos, os puxadinhos fizeram os terrenos e casas de outrora virarem
cortiços familiares, no qual se comportavam várias famílias (geralmente de
mesma matriz matriarcal ou patriarcal) num mesmo quintal. Casebres de um cômodo
ou dois amontoados num espaço pequeno.
A “modernização”,
a inserção das periferias ao mundo globalizado (“capitalizado”), fez, ainda,
com que a especulação de todos os tipos, principalmente a imobiliária, se
estendesse e se instalasse com toda força por aqui. Aqueles que nasceram na
década de 1980, principalmente, não tiveram (e não têm; e não terão) espaço no
mesmo terreno de seus pais: ou porque seus pais já se situavam num puxadinho de
seus próprios pais, ou porque já haviam cedido espaço para os outros filhos
etc.. Teriam, com toda força do acaso, que fazer
suas vidas sozinhos. Os resultados foram a criação de outras periferias
ainda mais distantes do centro. O problema é que toda essa “expansão” da cidade
não se deu como outrora, como se os que foram mais para o fundo fossem
bandeirantes: eram excluídos e, além do mais, duplamente excluídos na medida em
que o desenvolvimento do capital, do assalariamento – os empregos em massa – continuava
concentrado no centro da cidade. O que os geógrafos chamam de “cidades
dormitórios” ou “bairros dormitórios”, pode ser visto sem muito esforço.
Aqueles que no período anterior eram assim (bairros dormitórios), agora se
tornaram – e continuam com vento em popa! – bairros de classe média. Os
trabalhadores (mesmo aqueles “qualificados”) ou se enforcam numa dívida eterna
(sem superlativos!), ou, por outro lado, fogem sem escolha para margens ainda
mais distantes. E estas extrapolam as margens geográficas da cidade, em muito.
Essa “modernização”
das periferias é algo, por si só, contraditório: faz o local o mais habitável possível
e, ao mesmo tempo, expulsa seus antigos habitantes. Ora, a chegada do metrô em
muitos bairros é algo esperado por muitos há mais de 30 ou 40 anos. Agora que chega,
essas pessoas devem sair, pois não conseguem arcar com as “consequências” e
mazelas desse desenvolvimento. Agora que teriam garantido acesso rápido ao
centro e tudo mais, o mesmo espaço é tomado pela nova classe média, ou pela
antiga classe média decadente. Além, as empreiteiras – sanguessugas especulativas
do capital – e os especuladores imobiliários, aproveitam-se da “oportunidade”
criada e saem desvairados pelas ruas das periferias comprando casas antigas,
com terrenos com, em média, 10X25, derrubam tudo e constroem, no mesmo local, “becos” – 3 ou 4 – que chamam de casa,
geminadas, e vendem cada uma por um preço superior ao que foi pago no terreno e
casa que compraram. Mais ainda, os edifícios construídos (chamam de “condomínio”),
são cada vez menores, não o edifício em si, mas os apartamentos. Apartamentos
que chegam a medir 40m², vendidos à preço de ouro, chegando a custar, à vista, mais
de 180 mil. Nas prestações a perder de vista, no mínimo o dobro. Apartamentos
maiores (aqueles que chegam a caber, apertado, um sofá de 3 lugares) são “luxuosos”:
ou se desembolsa meio milhão em prestações, ou nada feito.
Enfim, duas
conclusões (ou algo desse tipo) são possíveis e se interligam. O
desenvolvimento do capital é contraditório por si só e consigo mesmo. Isso
acarreta uma morte lenta e sofrida para alguns, uma morte instantânea para
todos. Por outro lado, se é doutrinado para que não se revolte com a situação
insuportável engendrada em altas doses na veia que, se por um lado mata, por
outro alivia de algum modo esquisito, atordoante e inconcebível. E inconcebível
pensar que ainda se mantém sem uma convulsão prática profunda. Perdeu-se a
capacidade de sonhar para além do que é exigido: ganhou-se uma outra capacidade de sonhar. A proliferação das igrejas e dos
botecos, entre outras coisas, tem relação direta com isso: é necessário algum
tipo de alento imediato que aja em dois âmbitos: na aceitação desse estado de
coisas insuportável por si só, e na busca ilusória para se inserir nesse mesmo
estado de coisas insuportável. Não há explicação plausível e não contraditória
dessa situação. Se Marx dizia que o trabalhador assalariado “ganhava” o “suficiente”
para se manter (ter casa – mesmo que alugada –, comida, roupa e que conseguisse
reproduzir), ele não tinha noção do que a segunda metade do século XX iria
criar. E se a situação mais escabrosa poderia criar algum tipo de “consciência
revolucionária”, de fato, ela criou algum tipo de “consciência”: a do medo, que
engendra a fuga, que é fomentada pela ideia de fracasso individual, que faz
retornar com mais força e sede de inserção. E isso conseguirá permanecer
insustentável por mais quanto tempo?
Subsolo (pois só o subsolo restará!)!