No caso do
goleiro do Santos, Aranha, uma coisa é sintomática: o preto que não age como
“pai Tomás” é rechaçado e, numa inversão, transformado em agressor. Aranha
agora está sendo visto, mesmo que não tão descaradamente, como o “ponta de
lança” da situação: ao não “desculpar” a vítima, ele se torna pessoa cruel,
insensível, intolerante, não compreende a situação e, por isso, é
desacreditado, sendo culpado por sua não-reciprocidade. Há duas questões
importantes nisso: 1º) o racismo no Brasil é tão velado que quando surge, surge
como aberração, como patologia e, por isso, o diálogo – à moda deles – deve ser
aceito e o acordo que envolve a aceitação da desculpa por parte do agredido
deve ser ratificado (caso contrário, ele se inverte e o agredido perde seus
créditos morais. Imagine um caso simples: alguém é, digamos, estuprado; o
estuprador pede desculpas e quando o agredido não aceita é visto como culpado
da consequência da situação, sendo que poderia ter acabado com o problema caso
tivesse aceito as desculpas do agressor. No fim, aceitando o pedido de
desculpas, o agressor sai, pelo menos em relação à sua “honra” e sua
consciência, satisfeito e imune); 2º) o racismo é sempre um caso
individual – o agressor age por impulso e o agredido deve agir racionalmente –
isto é, não há um contexto, uma estrutura social e histórica por detrás da
agressão; há apenas duas pessoas (nesse caso) que se agridem (mutuamente,
segundo o raciocínio dos “apaziguadores”).
Existe um
racismo estrutural: ele acompanha a história social de constituição da sociedade
brasileira. Por isso, ele está em todos os lugares sem estar em nenhum local
definido. Um tipo “espiritual” que compõem as mentes das pessoas antes mesmo de
elas virem ao mundo, antes de nascerem. Não é o branco que é racista: ele, sem
dúvida, é um dos polos irradiadores mais fortes e visíveis; mas o racismo é tão
impregnado na constituição da sociedade e da individualidade que ele “desaparece”
quanto mais forte fica. A moça que, sem querer, “deu a cara à tapa”, além de
não ser um caso isolado, talvez não seja mais racista que o Pelé, por exemplo.
É claro que existe uma diferença: o Pelé tem a pele preta, mas para por aí. Ser
preto, no Ocidente (para não limitar ao Brasil), vai além da cor da pele. Ser
preto é constituir uma vontade “negativa”: ter a pele preta é contingente, não
se escolhe a cor com que se vai nascer e viver para sempre. Ao contrário, ser
Preto é uma questão de escolha: é a escolha de criar uma identidade que se
identifica, de pronto, com a resistência que é viver a cada dia tendo que
defender algo que se construiu à duras penas. A identidade do Preto é a todo o
momento atacada – temos que defender nosso cabelo, nossas escolhas, tanto as
escolhas simples quanto as mais complexas, defender nosso corpo e etc. – e,
sendo atacada essa identidade, ser Preto se torna questão de resistir tentando assegurar
quem se é sem sucumbir, o que é difícil em demasia. E a resistência é a negação
da harmonia pré-estabelecida na estrutural social que beneficia quem sobrevive à
custa da violência do racismo (e de outras). Isto é: resistir é ser posto, por
quem manda, na posição de agressor da harmonia do todo, da boa convivência, da
cordialidade. E sendo agressor da cordialidade, não deve ser digno de respeito.
Quando, ao contrário, o sujeito com a pele preta nega a existência do racismo,
ele se torna um agressor por excelência: quem vai discordar de um preto que não
se vê rebaixado pelo racismo e nega a existência dele? Ele é o discursador
perfeito para o caso. No entanto, ele pode ser preto, mas não é Preto.
Pelo fato de ser
estrutural, o sujeito racista não se vê como racista. Ele age, consciente ou
não, de acordo com o que é orquestrado. O Preto, que assim se designa, e não
consegue enxergar para além da condição do racismo direto (aquele no qual o
racista tem uma face definida), sucumbe ao racismo. As causas do racismo vão para
além do ato pronto e acabado: se o racista “não existe” ou não aparece, não
significa que não exista o racismo. Em outras palavras, ser contra o racismo
mas ser de direita, por exemplo, apoiar o sistema social opressor, é,
contraditoriamente, ser racista sem o saber (ou sabendo e fingindo não saber,
que talvez seja pior). Estruturalmente, os pretos foram usados na Colônia para
gerar riqueza, ao mesmo tempo em que eram inferiorizados; na passagem para o
sistema social capitalista, o preto é usado para... gerar riquezas, e é
inferiorizado servindo como “bode expiatório” da situação vigente: ele é culpado
até mesmo quando é vítima (aliás, grosso modo, a situação da mulher e do
homossexual não é muito diferente, neste caso).
Punir o sujeito
concreto que cometeu um ato racista não acaba com o racismo. É exemplar; o
sujeito deve ser punido pois cometeu um crime. Mas não altera a situação “abstrata”
da estrutura racista. Contudo, não o punir é ratificar o racismo abstrato (este
estrutural) e o concreto (cometido por pessoas nos mais variados modos). Mas a
punição não deve extrapolar a legalidade: o racista deve pagar pelo crime de
racismo e não com pena de morte e etc., não deve pagar com a vida, com sua
existência individual e de sua família, sua pessoa e etc.. Caso pensemos assim,
estamos dando um tiro no pé: ratificamos a vingança sob o pseudônimo de “justiça”,
da mesma forma que a estrutura racista quer reduzir maioridade penal para se vingar
do seu reflexo no espelho, o seu outro que é sua sombra perversa; todavia, como uma
bela sombra, é a imagem desfigurada de si mesmo. O caso da punição deve ser
educativo, não vingativo. Ainda assim, é necessário que ela aconteça, que a lei
seja cumprida, que a punição seja dada. Ela, reiterando, por si só não é
educativa. Deve vir acompanhada de um processo estrutural de modificação da
situação racista. E é necessário que ela aconteça para que a vítima não seja
transformada – como já está sendo – em agressor. E não seja tratada como vítima
no sentido do “coitadismo”: ser vítima não deve rebaixar o indivíduo ao plano
inferior de “vítima em todos os casos”. Da mesma forma ser agressor não deve,
por um lado, colocar a veste do diabo na pessoa e, por outro, tentar tirá-lo de
sua culpa: se assim fosse, o agressor ganharia as graças do público, seria
visto como aquele que merece cuidados e atenção. Isso não deve ser aceito em
nenhuma hipótese e por ninguém que queira receber o adjetivo “humano”.
Subsolo!
Vocês reclamam de racismo, não sabem o que é a homofobia. Ser gay hoje é como ser negro há 200 anos atrás. Eu tenho um namorado negro eu percebo o racismo principalmente dos policiais (só de ver um homem negro em um carro bonito já metem a lanterna na cara). Mas me sinto extremamente discriminado, tanto quanto os judeus talvez tenham se sentido durante a segunda guerra. E se você quer um exemplo perfeito de "vitimização do agressor", observe o comportamento de alguns pastores como Silas Malafaia. Aposto que havia muitas pessoas como ele durante a abolição, No candomblé também observamos o ultraje histórico que foi forçar os africanos a esbranquiçarem suas divindades para não serem perseguidos pelos cristãos. É triste ver a humanidade. Sinceramente, só confio hoje em poder financeiro, nenhum outro realmente liberta o ser humano.
ResponderExcluirComo assim "vocês reclamam do racismo, não sabem o que é a homofobia"? Como alguém, anonimamente, pode taxar outro alguém de "desconhecimento de algo"? E outra: o texto é pontual. Não tange outras formas de opressão, ainda que possa ser levado, em seu núcleo conceitual, à reflexão da opressão como um todo. Não cabe imputar "menos vitimização" de uns para se autovitimizar. A ideia do texto é exatamente o contrário disso. É importante, ainda, pensar que a crítica que parte de um ponto particular tende a abranger o universal: a opressão e a agressão física, psicológica e etc., cabe diretamente à questão do negro neste texto e, indiretamente, à opressão e agressão em si mesmas.
ExcluirDa próxima vez, por favor, não escreva anonimamente.