Falar
sobre violência deve ser algo crítico-reflexivo e radical. Deve-se, antes de
tentar elencar os tipos de violência, refletir acerca de sua diluição lá onde
ela parece não existir, domínios que parecem estar distantes do que se entende
comumente por violência. De pronto, é importante alerta que violência: 1) não é
somente física, visível; 2) permeia nossa história como um todo, tanto nossa
história “individual”, que diz respeito ao âmbito subjetivo singular, quanto a
História objetiva, história da formação de um povo (história da formação e
desdobramento da sociedade brasileira desde seus primeiros momentos[1],
por exemplo). Pode-se chamar, de um modo um tanto quanto abrangente, esta
violência que muitas vezes se manifesta como seu contrário, de violência simbólica (ainda que este
termo, reiterando, seja demasiado abstrato).
Se
começarmos de uma possível conclusão – ou seja, do fim ao começo –, a violência
mais poderosa é aquela diluída em determinações que nada parecem com violência:
liberdade, autonomia, reconciliação, entretenimento, educação (tanto educação
“em geral”, aquela que não é delegada – ou não deveria ser – à escola e a
educação escolar propriamente dita), lazer, trabalho e assim por diante. Nestes
domínios, o ato violento per se está contrariamente presente:
diluído de modo a não ser notado e, ao mesmo tempo, concentrado de modo bruto.
Não ser notado no sentido de que qualquer um que seja o mínimo atento, dirá que
aquele que percebe violência ali está
“forçando” ou mesmo abstraindo em demasia. Concentrado pois se manifesta nestes
campos de forma bruta, como “matéria-prima” de toda violência. Isto indica, por
si mesmo, que a violência se dá como forma
mais do que como conteúdo.
A
forma da violência não é somente o “tolher” a liberdade do outro, tanto porque
esta “liberdade” pode ser também um tipo violento. A violência é negativa em
sua positividade: ela nega a formação ao
formar. Nega as potencialidades formativas (a formação do indivíduo como
ser autônomo; formação cultural e etc.) ao impor uma formação dupla: como conformação ao existente; como via de
mão única. Ambas se imbricam. A conformação àquilo que existe (modos de ser, de
se portar, de pensar e etc.) somente pode ser viável na medida em que aparece
como a única via possível a ser satisfeita. (NOTA: até aqui, para aqueles que
conhecem a Dialética do Esclarecimento,
de Adorno e Horkheimer, ou mesmo os outros textos de Adorno, especialmente, nada
de novo).
É
violento, por conseguinte, o ato de banalizar a existência do outro. Em verdade, o outro aparece de imediato como meio para minha satisfação e prazer.
Meio, pois, ao banalizar a existência do outro, ele somente poderá aparecer
dessa forma[2]. Aqui três implicações:
1ª) minha satisfação e prazer também são violentos na medida em que, por um
lado, são coisificados, isto é, são “amoldados” ao padrão existente do que
viria a ser satisfação e prazer, e, por outro, ocorrem na medida da anulação do
outro, de qualquer humanidade, ainda que parca, que este outro poderia ter; 2ª)
a banalização da existência do outro é, no mesmo ato, banalização de si mesmo,
já que sou “outro” daquele outro, e, além disso, a banalização é um universal,
isto é, não importa quem está sendo banalizado: o ato, por si só, atinge os
indivíduos singulares por estes serem indivíduos dentro de uma situação, de uma
dada sociedade, que independe de quem é este indivíduo – qualquer um pode
ocupar o posto do “outro banalizado”; 3ª) o outro como meio para minha satisfação e prazer é fruto de uma coisificação
prévia, ou seja, somente utilizo o outro como coisa, como meio, por ele
já estar coisificado, isto é, porque ele já foi coisificado antes de entrar nessa
“roda viva”. Por exemplo: a morte do outro é algo banalizado. O que morre é um
outro que me dá prazer em ver morrer. É um que deveria morrer, ou, de outra forma, que foi bom ter morrido. Satisfaz a mim que esse outro tenha morrido,
pois sua existência é um nada ou um estorvo não só para mim, mas para todos.
Além disso, mesmo quando quem morre não “merecia” tal fim, sua morte é negativamente prazerosa: “pelo menos não
foi comigo ou com algum ente querido meu”. Ainda, a morte é jogada como rotina
e, por isso, mesmo aquela morte que me “afeta” não me causa tanta estranheza já
que estou “acostumado” com mortes pululando na tela da TV ou do computador a
cada minuto. Mesmo a morte de uma pessoa pública, que afetaria milhares ou
milhões de pessoas, é permeada por um sentimento de luto efêmero, passageiro e,
no mais, uma forma de satisfazer o “rito social” de “sentir pela morte do
outro” (se você não sente, então você é esquisito, não está adaptado ao mundo,
é desumano, um alienígena e etc.); esta morte de um outro “querido” é também,
numa reviravolta, uma forma, mesmo inconsciente, de minha aparição: ainda que inconsciente, eu apareço, ponho a mim mesmo na cena pública, compartilho do
“sentimento” coletivo (ainda que um sentimento vazio), ganho status (ou “likes”) e
me socializo. A morte é forma de autopromoção pelo luto. Não há nada que seja
mais violento, pois toda violência como
forma desponta assim. Pode todo esse relato parecer estranho ou abstrato:
cabe lembrar que, ao contrário, isso acontece todos os dias, em todos os
momentos, e existem programas “jornalísticos”, “policiais”, diários,
especializados exatamente nisso. Por fim, é exatamente por conta do luto ser
banalizado e, por isso mesmo, inexistir, que quando ele deveria ser real (a
morte de uma mãe, um filho etc.), não consegue emergir, não consegue atingir o
status de momento necessário, assim, sobremaneira, ou se torna patologia ou
reverte em mais violência (que não deixa de ser uma patologia). [NOTA: Oskar
Negt tem um texto intitulado “Matar não é
tabu. Tabu é a morte”, no qual consegue, de forma ímpar, relacionar o tabu
da morte com os desdobramentos da atual sociedade “violenta” do capital].
Isto,
por si, demonstra como a violência está diluída no cotidiano desta sociedade
como seus contrários: informação, conhecimento, direitos, justiça e etc.. Isto
indica, além do mais, que a violência é tão-presente, de modo superlativo, que
é praticada sem a menor parcimônia. Ela é.
E por ser e não se apresentar como
tal deve ser ratificada e exercida. Em suma, violento não é (somente) o
apresentador do programa de carnificina que é transmitido na TV aberta todas as
tardes. Violento é (também) aquele que ratifica e dá pleno aval para toda essa
simbologia da violência, para toda a violência (física ou não) perpetrada ao
outro – e consequentemente a si mesmo. Violentos, pois, são momentos,
determinações singulares do universal. Em palavras “inteligíveis”: violentos
são os indivíduos na medida em que são dominados e determinados a pensar e agir
conforme as designações da estrutura social, estrutura esta que impõe um tipo
abstrato (não concreto ou direto) de dominação de todas as instâncias da vida,
desde a intimidade ao espaço público como um todo. E só pode ser assim na
medida em que ela, a violência, aparecer como seu contrário, ou seja, ocultar a
si própria e somente se mostrar com seu sorriso sensual (e sarcástico). A forma
de dominação, violenta já no conceito, em vigor desde, pelo menos, a segunda
metade do séc. XX e potencializada agora é aquela em que mesmo aqueles que
“combatem a violência”, mesmo a “oposição”, são engolidos por sua dança ritual
sensual e hipnótica: a violência e a dominação perfeita aparecem como a
liberdade perfeita. [NOTA: um “desembargo” - dos EUA em relação a Cuba - a esta altura do campeonato não é um
dizer “a dominação fracassou”, mas um
dizer “este tipo de dominação fracassou: usemos um mais potente”. E
este mais potente é impossível fugir: qual escolha se tem?; o que se pode
fazer?. Dominação perfeita é aquela que torna a tendência de via de mão única
em via de mão única efetiva: supera a tendência ao efetivar, ao tornar
realidade fática (e fétida!), ao transformar o “pode ser” em “deve ser”;
transformar o “hipotético” em “imperativo”]. A violência é um processo, ao passo que os atos diretos e
concretos são manifestações imanentes
do processo total.
[1] Sobre este aspecto, indico o artigo de meu amigo Marcelo Tomassini sobre “Sadismo de Mando” em nossa formação como povo brasileiro. Ainda que seja específico a um ponto – “nossa vida colonial” –, é um ponto interessante e que joga luz sobre outros aspectos que devem ser pensados desde este ponto de vista. Veja o Artigo: “O sadismo de mando como liberdade deformada de nossa via colonial”
[2] Escrevi, em momentos diferentes, vários textos que tratam dessa mesma problemática, aqui mesmo no blog: em agosto de 2012, Incursões no mundo cotidiano: notas sobre o “Criança ‘Esperança’”; em outubro de 2012, Sobre algo (e algoz); em dezembro de 2012, Barbárie expressa, não-contida, contemporânea...; em fevereiro de 2013, A Experiência da Morte e outras paradas; em abril de 2013, Lógica inversa: Esclarecimento como contrassenso; Estado Paranoia; e, Afazia dos tempos e um diagnóstico perturbador; em maio de 2013, Panis et circenses: o circo trágico do cotidiano; em junho de 2013, A inumanidade da existência cotidiana: puxadinhos, modernização, especulação, exclusão; e, Todo ato de violência deve ser condenado!; em agosto de 2013, Sobre médicos, doentes e...; em outubro de 2013, Um fantasma ronda a...; em novembro de 2013, O Desespero do mundo ou O Medo como forma de existência; e, Ostentação, Consumismo: Século XXI; em janeiro de 2014, um artigo mais detido sobre violência do Estado e da criminalidade: Mais um ataque: Capitães-do-mato e outsiders na farsa histórica brasileira; em junho, A Esfera Pública do Capital; em setembro, Racismo cínico e Vitimização do agressor; e em novembro, Versando sobre a não-identidade.
Subsolo!
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