quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Inabalável Pureza

A linguagem trai seu melhor. Ela sufoca tudo aquilo que deveria dizer, dizendo. A cópula impõe a subversão: a copulação de dois traiçoeiros. Mesmo o mais bem intencionado dá um golpe fatal em si quando transa as palavras. O amigo mais íntimo do sentido imediato – o adjetivo – aponta arma invertida para trás, em direção àquele que o colocou na jogada. Sua mãe-mestra, a adjetivação, sorri. Sabem a si mesmos imprescindíveis. E por isso traem. Seu jeito atraente não se desvencilha de um sorriso sarcástico. Adjetivar é matar o melhor; não fazê-lo é impossível.
O pensar, mais simples que seja, exige o adjetivo. Começa-se no sujeito – o tolo que acha ser seu melhor amigo. Ele clama pela adjetivação para fazer sua vida plena de sentido. O adjetivo, por sua vez, sempre bem recebido e quisto, nunca falha em seu desígnio, exceto pelo fato que sempre coloca tudo como numa câmara escura – de cabeça para baixo. Este, com seu jeito inocente, dá sentido de ida, que agrada o sujeito mais descontextualizado. O sujeito sente-se feliz e, risonho, agradece aquele pelas belas definições. Não percebe, porém, que a traição é a vida do adjetivo, que copula à revelia do sujeito, deixando a este as migalhas com as quais se lambuza. Talvez nada faça sentido. Isso nada mais é que a ação perfectiva da adjetivação: ela trai o melhor. Mesmo o sujeito mais lúcido, mais atento e contextualizado, enreda-se na lábia do outro. Perde-se na vingança perfeita de seu suposto amigo. Mas adjetivo, caro amigo, não mata. Sua intenção é o vexame público, o definhamento do sujeito. Mesmo no âmbito particular, privado, o adjetivo sai ileso. Ele não tem culpa, é inocente em seu crime primoroso, já que se acopla ao sujeito, pela cópula, e nele se dilui, some – ainda que ali esteja com todas suas letras.
Todavia, para que tudo isso? Para que dizer se se pode calar? Não, caro amigo, não se deve nem se pode calar. Não dizer não é calar: o pensamento, por mais insensato que seja, não permite pausas. O sujeito, sozinho, não é ninguém. Adjetivado, copulado com seu melhor – e traiçoeiro – amigo, é tudo. O apaixonado imaculado e parvo – o sujeito – é tudo o que se tem, mesmo na mais ampla e alta adjetivação. Entretanto, não nos esqueçamos: o sujeito não é ponto de partida, mas ponto de inflexão. Ele é mediação, pois é mediado. O adjetivo, inocente e sem maiores intenções secundárias, é, antes de tudo, produtor do sujeito. Ele é o mundo. E como mundo fabrica o sujeito a seu bel-prazer – e depõe contra ele! O sujeito, objeto da adjetivação, é também o sujeito da adjetivação: é produto de si mesmo. O crime perfeito do adjetivo – se é que me entendem, meus caros – é sua capacidade de nunca se pôr no centro, sair sempre ileso. Enquanto trai o melhor, retira-se inocentado.
O adjetivo é o mestre dos disfarces. Sua mestra faz com que a cada uso se transmute, como se fosse sempre um novo. O sujeito, casto, não se dá conta das mutações do sempre-mesmo. Faz sonatas apaixonadas e cegas, todas as noites, em sua exímia e inabalável pureza, debaixo da janela do adjetivo. Sua força apaixonada é sua fraqueza mais terrível. Seu amor é incestuoso e esquizofrênico. Quanto mais sujeito o adjetivo se torna, menos sujeito o é. Quanto mais se perde – o sujeito de fato, o tolo concreto – na multiplicidade da adjetivação – quanto mais amor dá ao outro, seu amante – mais envolto na perdição. Submergido até o âmago, ele não se sabe no centro do joguete da situação. Sua loucura, imediata, é o desenrolar do seu processo de amante do adjetivo em suas múltiplas faces ao mesmo tempo. Mais a mais se envolve, mais a mais não perdoa a si próprio. Seu alvo, linear ou perpendicular, é o reflexo de si mesmo, de sua paixão e de seus maiores medos. O adjetivo não se importa para onde vai: apenas vai – e, variando, sorri sarcástico. Enquanto o grande mestre dos disfarces se transmuta, ele, o malfadado amigo, é sempre o mesmo. Ainda que o inseparável e ingrato aliado não se transforme em outro – e isto é quase uma aberração, pois seu grande defeito é não conseguir se manter estável em sua figura, mesmo que possa sustentar seu humor –, é sempre o sujeito que se apresenta em sua aparência indefectível. Na cópula o adjetivo se perde no sujeito, embora esteja lá, presente, e faça falsete do grande estardalhaço. Mesmo sozinho – ora! e quando apareceria sozinho?! –, ele traz consigo seu “amigo” que doente não se dispôs a sair de casa. É este, o tolo, que recebe todas as graças. O adjetivo não se dói por isso. A adjetivação sorri, com seus lábios cáusticos, por sua não-presença que tudo habita e destrói. Amante i-mediado de si mesmo, o sujeito é o único que existe. Para si, o adjetivo é seu amigo; na verdade, ele é. Substantivo e verbo são os únicos que existem. O adjetivo é predicado do sujeito, seu íntimo exposto – é adjetivo duas vezes sem ser nenhuma. Ele não existe senão em função do sujeito – é o que este pensa. 
O sujeito é o achincalhado dos séculos que tudo aceita, pois nada sabe; que se vê envolto por completo na culpa – e não se safa, nunca! – mesmo fazendo as honrarias mais elevadas ao julgamento. Aqui, sem perceber, seu amante muda de lado e imediatamente o destrói em sua reputação. Seu amor é sua morte (vio)lenta. A traição e sua paixão desenfreada são gêmeas.
A autonomia do adjetivo – para não dizer que não dei explicações! – é plena. Ele não se liga a nenhum sujeito. Seu ser é exatamente este. Quanto mais amor recebe, menos necessita de esforço para se desvencilhar. Quanto mais do sujeito é, menos pertence. A natureza plena da adjetivação é servir a qualquer sujeito como a um amo. Desgarrado, seu serviço é puro, porém sempre bem cobrado. O adjetivo cobra caro por suas rondas pelo mundo. Quanto mais ecoa, mais e mais valioso seu ofício insubstituível. Chega mesmo a formar frases quase sozinho – como se formasse cartéis, quadrilhas! –, em múltiplas formas, nas quais não varia, invariavelmente, o humor. Mesmo o masoquismo inconsciente do sujeito depende duplamente do adjetivo. Primeiro para ser masoquista; segundo por ser masoquista. Aquele e sua mestra se riem em largo. O intento do sujeito é sua imediata frustração: quanto mais ama, mais o ódio – seu mesmo, mediado por seu ilustre e insubstituível amigo – o escarnece.
A inabalável pureza, que deveria ser creditada ao sujeito, é de seu amigo-algoz. Ele, sujeito, na conjugação do si, acha ser puro. Contudo, somente ele: o sujeito, não um único sujeito. O sujeito... O artigo é definido, o sujeito não. Qualquer rebento, pouco importa, ocupa papel principal na construção da realidade. Adjetivar, julgar, qualificar: eis seu grande intento. No infinitivo o adjetivo é um atributo intrínseco ao sujeito: sem cópula, a transa de ambos se torna fusão. O adjetivo, em sua nobre esperteza, funde-se inseparavelmente ao sujeito. Sua composição é sujeito – ainda que seja arranjo falso.
Inconscientemente atônito, o sujeito julga. Imprescindível, portanto, é o adjetivo. A castidade do sujeito só se dá na imediatez – e somente para si mesmo. Disse-se: a linguagem trai o seu melhor. O adjetivo se volta ao seu amigo mais fiel, mas não de imediato, tampouco i-mediado. O julgamento possui, sem que se saiba, três vias. O sujeito só sabe de uma. Porém sua inconsciência não o isenta. A segunda é o envolvimento erótico do sujeito com seu alvo – com mais paixão, até, do que aquela que o sujeito dispensa ao seu predicado amancebado. O outro, por sua vez, é, antes de tudo, o si mesmo: a mediação se completa. Mal sabe o sujeito que sua paixão odiosa, que tudo julga com grande afinco, em detrimento, é seu inextricável complemento. Sua bela alma, de casta moralidade, não vê a terceira via – tal como não viu a segunda: ele é o outro; o outro é... E aqui, caro amigo, não importa a adjetivação: é a cópula que sobressai. A candidez do sujeito não se exime. Seu complemento, o julgado, é seu lado simétrico, sua fonte permanente de existência, sua produção espiritual mais rematada e perfeita. O adjetivo, sorridente consigo mesmo, cumpre sua função: nega todas as outras possibilidades ao se aferrar, como convidado de honra do sujeito, em designações perturbadoras. A válvula de escape deste é o prazer de se isentar vazando toda sua culpa inconsciente. Entre sujeito e seu complemento não há só a cópula: há cópula. Existe um mundo imenso, todo, que vincula o sujeito a si mesmo ao fazer a ponte que o engendra com todo o resto. Mas sua verdade, imediata, parece fazer jus ao seu âmago: nada deve, pois tudo teme. Seu julgamento moral imediato é produto de sua angústia frente ao mundo criado – e criador! -, descontrolado e sóbrio em sua justeza. Não é mais imediato, nem nunca foi. A linguagem, como se disse, trai seu melhor. Ela, composta primordialmente não pelo sujeito, mas pela adjetivação – agora protagonista –, transforma a pureza em seu outro, diametralmente oposto. Todavia, a pureza, inabalável em si mesma, mantém-se firme em seu posto. Debochadora de sua própria decadência, ela isenta o sujeito ao bloquear as outras duas vias do predicado. Deixa de perceber, no entanto, que sua imediatez também não é de sua posse, assim como nem os adjetivos o são. O traidor, no fim das contas, somente revela a real face do sujeito. No fim das contas, o adjetivo é o contraditório portador da verdade tímida, que nunca mostra sua face por completo, tampouco de imediato.
Certa vez alguém disse que a linguagem não pode expressar o que quer. Sua falta de sorte se alia a sua carência de percepção. Com o tempo ela se desvincula da imediatez do sujeito – ele não se vê mais criador. Agora, alienado, é criado pela linguagem. Esta, e todos seus desígnios – inclusive a adjetivação e a subjetividade –, torna-se natureza. Sendo natureza – algo divina –, pode deixar que se processem tudo e todos na imediatez. O sujeito não se vê mais como sujeito, ainda que reivindique subjetividade. Seu predicado é sua alma gêmea. Como alma, produto de outro mundo. A imediatez do sujeito, caro amigo, somente se completa quando não se percebe ser de linguagem. Agora, sem o saber, é ser – se é que é de fato serda linguagem, sua proprietária. E a linguagem é mais que conjunto de palavras e expressões, ainda que mal feitas. Ela é o mundo, totalidade. A produção de mão dupla da linguagem e de seu mundo – o mundo! –, é obra perfectiva do sujeito de linguagem: História. Dentro do mundo, mediado, pensa-se isolado em sua imediatez. Somente assim pode adjetivar sem escrúpulos e manter sua pureza inabalada, entronizada em si mesma. Quanto mais julga, mais e mais se isenta; quanto mais produz, menos a menos se sente parte do produzido – e menos a menos se sente como produzido, de si mesmo e de seu mundo.
Contextualizado à revelia de si mesmo, objeto entre objetos que se move sem se produzir autonomamente, o sujeito é um mundo: um mundo, não sua parte. Ele revela em si todas as proezas e discórdias do mundo; todas as perversões de fundo; toda sandice e toda neurose. Ele, particular, é o portador do universal. Ele, universal exemplar em uma particularidade, é tudo, é o mundo, e sua destreza nada mais revela que isto: sua mea-culpa. –– Não cabe, caros amigos que desde o início adjetivaram este pequeno excurso sem a mínima gravidade na consciência, a pergunta de quem viria primeiro – aquela que os mais tolos fazem frente à galinha. Se ainda não percebeu que não há espaço para esta singela questão aqui, retorne ao início. Quanto a nós, propomos terminar este breve excurso e retornar ao nosso assunto cardeal. –– Adjetivador imediato do mundo, o sujeito é exatamente o adjetivado: seus julgamentos nada mais revelam que sua impureza, ao mesmo tempo sua face mórbida. Mediado: adjetivador de si, mesmo sem se colocar no predicado – ou nas ou 3ª pessoas. O adjetivo trai quando revela que um e outro – sujeito e sujeito, neste caso – são siameses, frutos de um mesmo ventre que se esforçam constantemente para produzir e manter – alguns, no entanto, em plena inconsciência de seus feitos. É do ventre que vem também toda a gama de disfarces dos adjetivos. No final das contas, o adjetivo é sujeito por ser sua parte mais essencial, ser sua vida e movimento vivo de seu ser mais íntimo. A adjetivação é filha daquele ventre que o sujeito fez para nascer, ele mesmo, sujeito. A contradição encontra sua reconciliação na força destrutiva do sujeito. Quanto mais ele ama, apaixonadamente como sujeito que se exime de culpa, mais lambuzado em sua própria fonte de prazer e satisfação, de traição e tortura. Quanto mais natural, mais puro e inocente; mais isolado e acima de si mesmo – fora de si. Sujeito: mediado. Adjetivo: seu complemento mais próprio, sua realidade para além de si mesmo.  
Não obstante, na moral tudo deve ser imediato. Rompida a imediatez – ou concebida a verdade do adjetivo e de sua mestra –, ela, a moral, desvanece. Quando não, reina absoluta com sua destreza, aliciando aos olhos do apaixonado sujeito – falsamente – a adjetivação como se fosse sua serva mais dócil. Sujeito e adjetivo são duas faces da mesma história, completam-se e se afundam juntos, um mediado pelo outro; ambos mediados pelo todo. O sujeito, mediado, julga a si próprio, sua exímia decadência, sua elegante tortura prazerosa. Masoquista de aparência, sádico

Subsolo!

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Febre do rato

Distopia: personagens semivivos, semimortos, caminham pela República. Atrás de um-são. Não se encontra; não se encontram. Perdem-se a cada vez mais que se buscam no local desumanizado. Veem através de um reflexo de si mesmos, na sujeira, iluminação. Parca iluminação! Concebem salvação onde existe morte. – Febre do rato! Alucina mais que mata. Mata pelas beiradas, pela alucinação. A salvação é sua própria imagem reflexa; parece invertida, contudo, é produção sua, de si mesmo. A distopia prevê antes a morte de tudo – como salvação de um certo mundo – do que saída por uma terceira via. Só há ida e volta. Não há opções. A liberdade, mediada pela febre que ataca, é prisão insensata, vida abismada, morte apaixonada – ainda que a paixão seja medo.
Semivida, liberdade, medo e caos: os vivos não estão mais neste estado: precisam enterrar seus mortos, largar suas vísceras já esfaceladas e correr, correr. Não pela única estrada, de mão única, que concebem mediados pela cegueira. Ao contrário, abrindo mata, fazendo da velha estrada algo risível e deslocada da realidade. Liberdade se faz arte. Arte da vida. Sem fechar feridas: escancarando-as! O medo mata. O caos habita a pele suicida dos rinocerontes abafados pela febre. Semivida não é vida, é caos! E caos é o estado permanente da ordem. O desordenamento do mundo é a vida profunda que rompe a paixão do medo. Desordem não é caos, é liberdade efetivada, superada na angústia. Semivida é morte. E morte é o que não se quer, ainda que já se esteja atolado nela. Liberdade é ruptura e suicídio da morte. Morte morre. Escorre sangue à dentro. “Os ratos não sabem morrer na calçada”. Já estão mortos; ou, por outra, são a própria morte!
Afazia: a memória falha. Os órgãos falham. A vida falha. O esquecimento é o princípio. Não princípio degenerativo. Mas o princípio positivo: nada se perde, pois nada se tem na memória. Consciência e culpa se misturam. A febre distópica que afaga personas semivivas-semimortas é processo de culpa incubado; é vida que escorre pelo ralo. É halo sobre terra firme movediça. O inferno é reflexo direto, sem mediações. O mesmo que aponta aberrações alimenta-as desde o início. Mudança é peso que não se pode carregar, pois culpa pesa mais de mil toneladas. Morte à consciência!
Papel encenado já é outro e o Personagem morto: quem se diz vivo, numa situação que só aceita os vivos, é morto. Quem morre para essa situação revive sobre o caos, esmagando-o. Encenar a mesma cena é reduplicar a fantasia – fantasia no sentido da ilusão; é lutar contra a afazia; é manter tudo como está, ainda que com ares de persistência revelacionária. Revelacionária: o papel cumprido, na grande peça extática, pelo personagem que, antes de tudo, revela A Verdade. E esta, em sua exímia sapiência divina, mostra-se como o espírito do tempo da morte do personagem. Uma fantástica fábrica de mortos. A vida dos outros – se é que existe – é revelada como falsa, aos urros, pelo secundário que se entende protagonista. Romper “A verdade” é morrer para essa vida que se faz morte – e somente morte; é incendiar a corte, que se quer nobre; é deixar de ser personagem – que vive uma vida podre! – e incendiar o teatro. Quem busca ordem, clama por morte. A veneração pelos ratos, a exigência de sua febre, a distopia catastrófica e inerte, a morte revelada e a culpa assumida, não me servem! Aqui, o papel já é outro e o personagem, morto! O medo dos semivivos é que a morte por completa os pegue. A morte completa é anima dos semivivos.

Subsolo!

sábado, 26 de setembro de 2015

Definição do tempo histórico: entre a distorção e a loucura


Tudo caótico! A vida se passa em um momento louco. Os mais medrosos defendem os interesses dos outros – e dizem ser mesmo deles. Os mais espertos defendem os interesses aparentes dos outros – mas são, na verdade, seus mesmos. Os outros, por sua vez, sequer sabem que estão sendo debatidos, jogados aos dois lados. Os lados, cada qual em seu canto, somente se resumem em dois: nem quadrado, nem nada. Todo imobilizado. Não formam figura. Tudo imediato: a verdade do processo é tomada de assalto, esquartejada. E isto exatamente por quem mais diz defendê-la. A proeza, que vem da ex-querda, revolve-se nas tumbas. É isto! Ela morreu – aquele lado – e quer se dizer viva. Seja como for, sobra apenas o reflexo distorcido do que foi um dia. Nostalgia? Nem! O processo da história engole tudo, inclusive aqueles que dizem apontar seu norte. Mas que nada! O medo é poder coeso, expresso de modo inverso, parece guerreiro mas é cachorro acuado, rabo entre as pernas. Ou, de outra forma, é capacho de Casa-Grande: defende o interesse do senhor, limpa seus pés – e sua barra – como se fosse seu serviço mais nobre. Sua autonomia reside – e morre! – na porta de entrada: recebe bem enquanto é enlameado.

A totalidade – outrora levada em consideração pelos jacobinos – agora é sumamente ignorada. Nada mais lhe diz respeito. A totalidade – a outra, a falsa, o fetiche, a reificada – vence. E vence com pompa de natureza: sem ser notada, se impõe; naturalizada, nem se esforça. O desespero, amigo do medo, nem mais bate à porta: entra sorrateiro ao mesmo tempo sorridente e toma tudo com grande armada. Sua sacada: não se esforçar. É sempre bem recebido por aqueles que deixaram a utopia de lado e se voltaram ao caos: evitam a distopia a perfazendo do centro às beiradas; das beiradas ao centro. Cão espumento que morde menos, ainda é cão. Ainda transmite raiva. Ainda é cilada.

De dois lados não se faz nada. Ou são paralelas, ou têm histórias cruzadas, e se confundem. Enquanto se enroscam uma na outra, o papel é o mesmo e define os limites das linhas – que se querem lado mesmo que sejam somente retas tortas oblíquas e dissimuladas –, ainda que pareça seu amigo natural. O papel não aparece, nem para aqueles, nem a estes. Mas são aqueles que se beneficiam. São eles os verdadeiros amigos da limitação do papel. O benefício? Bem, é somente de quem produz a celulose. Não são estes, certeza.
É muita boca para falar aos quatro ventos. É muita boca passando fome sem querer comer, cedendo seu prato ao gordo do outro lado, que mal sabe o que é a fome; que não para, só come. A nobreza e o altruísmo do faminto, pobre, é sua morte, podre. Sua defesa apaixonada é com a pá que cava. Sete palmos em sete anos. Quatorze anos é o dobro.

Enquanto a totalidade não é tocada – o papel ainda o mesmo e o personagem morto – a vida escorre – nem vive, nem desenvolve. Nada se resolve. Tudo caótico. O medo é tópico, é distópico. A morte é viva. A menina, o outro, a faminta e o lobo. Todos se acham com razão imediata. Enquanto a Coisa – sim, o capital, a totalidade, para não dizer que fiquei na abstração – segue seu curso ininterrupto. No fim, fomos covardes e pilantras, ao mesmo tempo. A covardia nos tornou pilantras. A pilantragem nos fez coveiro. A cova virou calvário. E o calvário se tornou o medo da perda. Perda de quê? Pois bem, eis o que não se tem. Nada não se perde, todavia somente a ilusão quando se rompe.

Subsolo!