A
linguagem trai seu melhor. Ela sufoca tudo aquilo que deveria
dizer, dizendo. A cópula impõe a subversão: a copulação de dois traiçoeiros.
Mesmo o mais bem intencionado dá um golpe fatal em si quando transa as palavras. O amigo mais íntimo
do sentido imediato – o adjetivo –
aponta arma invertida para trás, em direção àquele que o colocou na jogada. Sua
mãe-mestra, a adjetivação, sorri.
Sabem a si mesmos imprescindíveis. E por isso traem. Seu jeito atraente não se
desvencilha de um sorriso sarcástico. Adjetivar é matar o melhor; não fazê-lo é
impossível.
O pensar, mais simples que
seja, exige o adjetivo. Começa-se no sujeito – o tolo que acha ser seu melhor amigo. Ele clama pela adjetivação para
fazer sua vida plena de sentido. O adjetivo, por sua vez, sempre bem recebido e
quisto, nunca falha em seu desígnio, exceto pelo fato que sempre coloca tudo
como numa câmara escura – de cabeça para baixo. Este, com seu jeito inocente,
dá sentido de ida, que agrada o sujeito
mais descontextualizado. O sujeito sente-se feliz e, risonho, agradece aquele
pelas belas definições. Não percebe, porém, que a traição é a vida do adjetivo,
que copula à revelia do sujeito, deixando a este as migalhas com as quais se
lambuza. Talvez nada faça sentido. Isso nada mais é que a ação perfectiva da
adjetivação: ela trai o melhor. Mesmo o sujeito mais lúcido, mais atento e
contextualizado, enreda-se na lábia do outro.
Perde-se na vingança perfeita de seu suposto amigo. Mas adjetivo, caro amigo,
não mata. Sua intenção é o vexame público, o definhamento do sujeito. Mesmo no
âmbito particular, privado, o adjetivo sai ileso. Ele não tem culpa, é inocente
em seu crime primoroso, já que se acopla ao sujeito, pela cópula, e nele se
dilui, some – ainda que ali esteja com todas suas letras.
Todavia, para que tudo isso?
Para que dizer se se pode calar? Não, caro amigo, não se deve nem se pode
calar. Não dizer não é calar: o pensamento, por mais insensato que seja, não
permite pausas. O sujeito, sozinho, não é ninguém. Adjetivado, copulado com seu
melhor – e traiçoeiro – amigo, é tudo. O apaixonado imaculado e parvo – o
sujeito – é tudo o que se tem, mesmo na mais ampla e alta adjetivação. Entretanto,
não nos esqueçamos: o sujeito não é ponto de partida, mas ponto de inflexão. Ele é mediação, pois é mediado. O adjetivo,
inocente e sem maiores intenções secundárias, é, antes de tudo, produtor do sujeito. Ele é o mundo. E como mundo fabrica o sujeito a
seu bel-prazer – e depõe contra ele!
O sujeito, objeto da adjetivação, é também o sujeito da adjetivação: é produto
de si mesmo. O crime perfeito do adjetivo – se é que me entendem, meus caros –
é sua capacidade de nunca se pôr no
centro, sair sempre ileso. Enquanto trai o melhor, retira-se inocentado.
O adjetivo é o mestre dos
disfarces. Sua mestra faz com que a cada uso se transmute, como se fosse sempre
um novo. O sujeito, casto, não se dá conta das mutações do sempre-mesmo. Faz sonatas apaixonadas e cegas, todas as noites, em
sua exímia e inabalável pureza,
debaixo da janela do adjetivo. Sua força apaixonada é sua fraqueza mais
terrível. Seu amor é incestuoso e esquizofrênico. Quanto mais sujeito
o adjetivo se torna, menos sujeito o
é. Quanto mais se perde – o sujeito
de fato, o tolo concreto – na multiplicidade da adjetivação – quanto mais amor dá
ao outro, seu amante – mais envolto
na perdição. Submergido até o âmago, ele não se sabe no centro do joguete da
situação. Sua loucura, imediata, é o
desenrolar do seu processo de amante do adjetivo em suas múltiplas faces ao
mesmo tempo. Mais a mais se envolve, mais a mais não perdoa a si próprio. Seu
alvo, linear ou perpendicular, é o reflexo de si mesmo, de sua paixão e de seus
maiores medos. O adjetivo não se importa para onde vai: apenas vai – e, variando, sorri sarcástico. Enquanto o grande
mestre dos disfarces se transmuta, ele, o malfadado amigo, é sempre o mesmo.
Ainda que o inseparável e ingrato aliado não se transforme em outro – e isto é
quase uma aberração, pois seu grande defeito é não conseguir se manter estável
em sua figura, mesmo que possa sustentar seu humor –, é sempre o sujeito que se
apresenta em sua aparência indefectível. Na cópula o adjetivo se perde no sujeito, embora esteja lá,
presente, e faça falsete do grande estardalhaço. Mesmo sozinho – ora! e quando apareceria sozinho?! –,
ele traz consigo seu “amigo” que doente não se dispôs a sair de casa. É este, o
tolo, que recebe todas as graças. O
adjetivo não se dói por isso. A adjetivação sorri, com seus lábios cáusticos,
por sua não-presença que tudo habita
e destrói. Amante i-mediado de si
mesmo, o sujeito é o único que existe. Para si, o adjetivo é seu amigo; na verdade, ele é. Substantivo e verbo são os únicos que existem. O adjetivo é
predicado do sujeito, seu íntimo
exposto – é adjetivo duas vezes sem
ser nenhuma. Ele não existe senão em função do sujeito – é o que este
pensa.
O sujeito é o achincalhado dos
séculos que tudo aceita, pois nada sabe; que se vê envolto por completo na
culpa – e não se safa, nunca! – mesmo fazendo as honrarias mais elevadas ao julgamento. Aqui, sem perceber, seu
amante muda de lado e imediatamente o
destrói em sua reputação. Seu amor é sua morte
(vio)lenta. A traição e sua
paixão desenfreada são gêmeas.
A autonomia do adjetivo – para não dizer que não dei explicações!
– é plena. Ele não se liga a nenhum sujeito. Seu ser é exatamente este. Quanto mais amor recebe, menos necessita de
esforço para se desvencilhar. Quanto mais do sujeito é, menos pertence. A natureza plena da adjetivação é servir a
qualquer sujeito como a um amo. Desgarrado, seu serviço é puro, porém sempre
bem cobrado. O adjetivo cobra caro por suas rondas pelo mundo. Quanto mais
ecoa, mais e mais valioso seu ofício insubstituível. Chega mesmo a formar
frases quase sozinho – como se formasse cartéis, quadrilhas! –, em múltiplas
formas, nas quais não varia, invariavelmente, o humor. Mesmo o masoquismo inconsciente do sujeito
depende duplamente do adjetivo. Primeiro para
ser masoquista; segundo por ser
masoquista. Aquele e sua mestra se riem em largo. O intento do sujeito é sua
imediata frustração: quanto mais ama, mais o ódio – seu mesmo, mediado por seu
ilustre e insubstituível amigo – o escarnece.
A inabalável pureza, que deveria ser creditada ao sujeito, é de seu
amigo-algoz. Ele, sujeito, na conjugação do si,
acha ser puro. Contudo, somente ele: o
sujeito, não um único sujeito. O sujeito... O artigo é definido, o sujeito
não. Qualquer rebento, pouco importa, ocupa papel principal na construção da
realidade. Adjetivar, julgar, qualificar: eis seu grande intento. No infinitivo
o adjetivo é um atributo intrínseco ao sujeito: sem cópula, a transa de ambos se torna fusão. O adjetivo, em sua nobre
esperteza, funde-se inseparavelmente ao sujeito. Sua composição é sujeito – ainda que seja arranjo
falso.
Inconscientemente atônito, o
sujeito julga. Imprescindível,
portanto, é o adjetivo. A castidade do sujeito só se dá na imediatez – e
somente para si mesmo. Disse-se: a
linguagem trai o seu melhor. O adjetivo se volta ao seu amigo mais fiel,
mas não de imediato, tampouco i-mediado.
O julgamento possui, sem que se saiba, três
vias. O sujeito só sabe de uma. Porém sua inconsciência não o isenta. A segunda
é o envolvimento erótico do sujeito
com seu alvo – com mais paixão, até, do que aquela que o sujeito dispensa ao
seu predicado amancebado. O outro,
por sua vez, é, antes de tudo, o si
mesmo: a mediação se completa. Mal sabe o sujeito que sua paixão odiosa,
que tudo julga com grande afinco, em detrimento, é seu inextricável
complemento. Sua bela alma, de casta
moralidade, não vê a terceira via – tal como não viu a segunda: ele é o outro; o outro é... E aqui, caro amigo, não importa a adjetivação: é a cópula que
sobressai. A candidez do sujeito não se exime. Seu complemento, o julgado, é seu lado simétrico, sua fonte
permanente de existência, sua produção espiritual mais rematada e perfeita. O
adjetivo, sorridente consigo mesmo, cumpre sua função: nega todas as outras possibilidades ao se aferrar,
como convidado de honra do sujeito, em designações perturbadoras. A válvula de
escape deste é o prazer de se isentar vazando toda sua culpa inconsciente.
Entre sujeito e seu complemento não há só a cópula: há cópula. Existe um mundo imenso, todo, que vincula o sujeito a si mesmo ao fazer a ponte que o
engendra com todo o resto. Mas sua verdade,
imediata, parece fazer jus ao seu âmago: nada deve, pois tudo teme. Seu
julgamento moral imediato é produto de sua angústia frente ao mundo criado – e criador! -, descontrolado e sóbrio em
sua justeza. Não é mais imediato, nem
nunca foi. A linguagem, como se disse, trai seu melhor. Ela, composta
primordialmente não pelo sujeito, mas pela adjetivação – agora protagonista –,
transforma a pureza em seu outro,
diametralmente oposto. Todavia, a pureza, inabalável
em si mesma, mantém-se firme em seu posto. Debochadora de sua própria
decadência, ela isenta o sujeito ao bloquear as outras duas vias do predicado. Deixa
de perceber, no entanto, que sua imediatez também não é de sua posse, assim
como nem os adjetivos o são. O traidor,
no fim das contas, somente revela a real face do sujeito. No fim das contas, o
adjetivo é o contraditório portador
da verdade tímida, que nunca mostra
sua face por completo, tampouco de imediato.
Certa vez alguém disse que a
linguagem não pode expressar o que quer. Sua falta de sorte se alia a sua carência
de percepção. Com o tempo ela se desvincula da imediatez do sujeito – ele não
se vê mais criador. Agora, alienado,
é criado pela linguagem. Esta, e todos seus desígnios – inclusive a adjetivação
e a subjetividade –, torna-se natureza. Sendo
natureza – algo divina –, pode deixar que se processem tudo e todos na imediatez. O sujeito não se vê mais como
sujeito, ainda que reivindique subjetividade. Seu predicado é sua alma gêmea.
Como alma, produto de outro mundo. A imediatez do sujeito,
caro amigo, somente se completa quando não se percebe ser de linguagem. Agora, sem o saber, é ser – se é que é de fato ser – da linguagem, sua proprietária. E a linguagem é mais que conjunto
de palavras e expressões, ainda que mal feitas. Ela é o mundo, totalidade. A produção de mão dupla da linguagem e
de seu mundo – o mundo! –, é obra
perfectiva do sujeito de linguagem: História. Dentro do mundo, mediado, pensa-se isolado em sua imediatez. Somente assim pode adjetivar sem
escrúpulos e manter sua pureza inabalada, entronizada em si mesma. Quanto mais
julga, mais e mais se isenta; quanto mais produz,
menos a menos se sente parte do produzido – e menos a menos se sente como produzido, de si mesmo e de seu mundo.
Contextualizado à revelia de
si mesmo, objeto entre objetos que se move sem se produzir autonomamente, o
sujeito é um mundo: um mundo, não sua
parte. Ele revela em si todas as proezas e discórdias do mundo; todas as perversões de fundo; toda sandice e toda
neurose. Ele, particular, é o portador do universal. Ele, universal exemplar em
uma particularidade, é tudo, é o
mundo, e sua destreza nada mais revela que isto: sua mea-culpa. –– Não cabe, caros
amigos que desde o início adjetivaram este pequeno excurso sem a mínima
gravidade na consciência, a pergunta de quem viria primeiro – aquela que os
mais tolos fazem frente à galinha. Se ainda não percebeu que não há espaço para esta singela questão aqui, retorne ao início. Quanto a nós,
propomos terminar este breve excurso e retornar ao nosso assunto cardeal.
–– Adjetivador imediato do mundo, o sujeito é exatamente o adjetivado: seus
julgamentos nada mais revelam que sua impureza,
ao mesmo tempo sua face mórbida. Mediado:
adjetivador de si, mesmo sem se colocar no predicado – ou nas 2ª ou 3ª pessoas. O adjetivo trai quando revela que um e outro – sujeito e
sujeito, neste caso – são siameses, frutos de um mesmo ventre que se esforçam constantemente
para produzir e manter – alguns, no
entanto, em plena inconsciência de
seus feitos. É do ventre que vem também toda a gama de disfarces dos adjetivos.
No final das contas, o adjetivo é sujeito
por ser sua parte mais essencial, ser sua vida e movimento vivo de seu ser mais
íntimo. A adjetivação é filha daquele ventre que o sujeito fez para nascer, ele mesmo, sujeito.
A contradição encontra sua reconciliação na força destrutiva do sujeito. Quanto
mais ele ama, apaixonadamente como sujeito que se exime de culpa, mais lambuzado
em sua própria fonte de prazer e satisfação, de traição e tortura. Quanto mais natural, mais puro e inocente; mais
isolado e acima de si mesmo – fora de si. Sujeito: mediado. Adjetivo:
seu complemento mais próprio, sua realidade para além de si mesmo.
Não obstante, na moral tudo deve ser imediato. Rompida a
imediatez – ou concebida a verdade do
adjetivo e de sua mestra –, ela, a moral, desvanece. Quando não, reina absoluta
com sua destreza, aliciando aos olhos do apaixonado
sujeito – falsamente – a adjetivação como se fosse sua serva mais dócil. Sujeito
e adjetivo são duas faces da mesma história,
completam-se e se afundam juntos, um mediado pelo outro; ambos mediados pelo todo. O sujeito, mediado, julga a si próprio, sua exímia decadência, sua elegante
tortura prazerosa. Masoquista de aparência, sádico.
Subsolo!