terça-feira, 29 de setembro de 2015

Febre do rato

Distopia: personagens semivivos, semimortos, caminham pela República. Atrás de um-são. Não se encontra; não se encontram. Perdem-se a cada vez mais que se buscam no local desumanizado. Veem através de um reflexo de si mesmos, na sujeira, iluminação. Parca iluminação! Concebem salvação onde existe morte. – Febre do rato! Alucina mais que mata. Mata pelas beiradas, pela alucinação. A salvação é sua própria imagem reflexa; parece invertida, contudo, é produção sua, de si mesmo. A distopia prevê antes a morte de tudo – como salvação de um certo mundo – do que saída por uma terceira via. Só há ida e volta. Não há opções. A liberdade, mediada pela febre que ataca, é prisão insensata, vida abismada, morte apaixonada – ainda que a paixão seja medo.
Semivida, liberdade, medo e caos: os vivos não estão mais neste estado: precisam enterrar seus mortos, largar suas vísceras já esfaceladas e correr, correr. Não pela única estrada, de mão única, que concebem mediados pela cegueira. Ao contrário, abrindo mata, fazendo da velha estrada algo risível e deslocada da realidade. Liberdade se faz arte. Arte da vida. Sem fechar feridas: escancarando-as! O medo mata. O caos habita a pele suicida dos rinocerontes abafados pela febre. Semivida não é vida, é caos! E caos é o estado permanente da ordem. O desordenamento do mundo é a vida profunda que rompe a paixão do medo. Desordem não é caos, é liberdade efetivada, superada na angústia. Semivida é morte. E morte é o que não se quer, ainda que já se esteja atolado nela. Liberdade é ruptura e suicídio da morte. Morte morre. Escorre sangue à dentro. “Os ratos não sabem morrer na calçada”. Já estão mortos; ou, por outra, são a própria morte!
Afazia: a memória falha. Os órgãos falham. A vida falha. O esquecimento é o princípio. Não princípio degenerativo. Mas o princípio positivo: nada se perde, pois nada se tem na memória. Consciência e culpa se misturam. A febre distópica que afaga personas semivivas-semimortas é processo de culpa incubado; é vida que escorre pelo ralo. É halo sobre terra firme movediça. O inferno é reflexo direto, sem mediações. O mesmo que aponta aberrações alimenta-as desde o início. Mudança é peso que não se pode carregar, pois culpa pesa mais de mil toneladas. Morte à consciência!
Papel encenado já é outro e o Personagem morto: quem se diz vivo, numa situação que só aceita os vivos, é morto. Quem morre para essa situação revive sobre o caos, esmagando-o. Encenar a mesma cena é reduplicar a fantasia – fantasia no sentido da ilusão; é lutar contra a afazia; é manter tudo como está, ainda que com ares de persistência revelacionária. Revelacionária: o papel cumprido, na grande peça extática, pelo personagem que, antes de tudo, revela A Verdade. E esta, em sua exímia sapiência divina, mostra-se como o espírito do tempo da morte do personagem. Uma fantástica fábrica de mortos. A vida dos outros – se é que existe – é revelada como falsa, aos urros, pelo secundário que se entende protagonista. Romper “A verdade” é morrer para essa vida que se faz morte – e somente morte; é incendiar a corte, que se quer nobre; é deixar de ser personagem – que vive uma vida podre! – e incendiar o teatro. Quem busca ordem, clama por morte. A veneração pelos ratos, a exigência de sua febre, a distopia catastrófica e inerte, a morte revelada e a culpa assumida, não me servem! Aqui, o papel já é outro e o personagem, morto! O medo dos semivivos é que a morte por completa os pegue. A morte completa é anima dos semivivos.

Subsolo!

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