Pequeno
contexto
Na pequena vila de Dom
Henrique Fernandes, situada a oeste da grande cidade, fechada em si mesma,
vivia aquele menino que, perdendo-se inteiramente nos livros, não sabia se
perder nas pessoas.
***
Não sabendo que era triste, tornou-se
arrogante.
“Não
se pode, nem se deve, confiar nas pessoas, sejam elas quem forem. A grande
lição da vida, e digo da vida coletiva, é aquela que os livros ensinam. A letra
viva destes é mais que o elixir por onde se deve guiar o espírito. Toda cidade,
toda pessoa de bom grado, deveria saber disto.” “–
Mas você não pode se isolar, querido. Não pode pensar que não há nada que salve
nas pessoas. Filho! Talvez se abrisse mão dessas ideias que cria poderia
enxergar melhor”. “– A paciência do conceito! A Paciência. Paciência, senhora.”
***
Dizia consigo mesmo o homem, que
dantes havia sido aquele menino mal resolvido, inculcado com um mundo, que as
pessoas não atingiriam, nem de resvalo, o clímax daquela Ópera chamada vida. Paciência:
Eis seu grande mistério! Resolveu tornar-se bom exteriormente. Aliás, bom já o
era desde criança, bom em demasia. Mudemos a palavra: resolveu tornar-se
humano. Rebaixou-se dos céus e veio ter com a ralé que, no entanto, agora seriam
seus pobres-diabos, talvez de fato, seus convivas de mais alta cotidianidade. Tratava-os,
no passar do tempo, com toda compreensão disponível no universo. Não deixava de
ouvi-los um minuto sequer. Atento a tudo e todos, ouvia mais que falava. E com
isso desfrutava de bons momentos. Seu grupo mais íntimo, aqueles que sempre lhe
estavam ao redor, admirava-no fielmente. Homem sóbrio, inteligente e bondoso,
era referência viva e humana para os demais, mesmo quando dizia coisas
escapulidas incompreensíveis. Sua paciência se dava naturalmente aos outros.
Quando muito, questionava-os de forma delicada e amigável. Nunca os destratava.
Pelo contrário, tratava-os como mereciam – tudo ao nível e ao gosto do outro –,
sem o pedantismo moral dos grandes – ao qual, como firmemente se sabe pelo que
sobrou de seu Livro Pessoal de notas
esparsas, pertencia no mais alto escalão. Sempre disposto a sondar, sem
rudeza, o espírito de seus interlocutores, nunca os fazia sentir o incômodo da
palavra dura e necessária, tampouco deixava transparecer qualquer coisa que
não fosse aquilo que, de fato, aparecia aos demais: sua letra e espírito
coincidiam. Paciência! Sua grande virtude era esta, mãe da humildade e da
tolerância. Homem de bem, cidadão exemplar e amigo até daqueles que não
conhecia mais ou menos profundamente, nunca se deixava abalar pelas palavras
mortas e sem critério dos menos letrados. Paciência! Sua grande virtude era
somente sua, um para-si intocável.
***
Em seus diários tentava,
depois de adulto, retratar sua exímia e peculiar infância. Com acurada escrita,
descrevia até os detalhes de eventos praticamente irrelevantes para a maioria
dos mortais. Tanto é que, apesar da descrição detalhista, nunca datava e nem
havia ordem nas folhas: abria seu livro e a página que estivesse em branco
recebia a tinta, estivesse onde estivesse. “Nem
mamãe, nem papai. Ninguém escapa.” ... “Toda a solidez do mundo se dá a partir
da solidez das ideias. Não há nada no homem que seja sólido se não participa da
eternidade, das ideias. Tal como Aquiles, é preferível a morte na guerra ao
ficar fora da eternidade, longe das letras.” ... “O ranço que sentem por quem é
grande, muito maior que eles, é incrível! Fruto de suas frustrações
parasitárias. São desprezíveis em um nível profundo.” ... “Conviver com tais
indivíduos é medíocre, é morte em estado puro! Nunca chegarão aos pés dos
grandes.” ... “Ainda que ninguém saiba, há um plano maior e mais poderoso do
qual somente participarão aqueles libertos, conceituados e relevantes. Somente aqueles
nascidos com o dom poderão participar. Aqui neste lugar não há nada. Nada para
um grande. ‘Poderosos os que são invencíveis; invencíveis os que são grandiosos.
Medíocres aqueles que são inferiores por natureza’.[1]”
***
No diário, além das ideias e
criações que beiravam ao bizarro, havia notas mais realistas e concretas sobre
suas perdas. Todavia, não as retratava como perdas propriamente ditas. Antes,
acumulava como experiência do espírito e cultura superior. Os relatos, mesmo
que esparsos, diziam respeitos aos castigos e a uma espécie de ódio que sentia
por seus pais por estes não compreenderem sua grandeza e o punirem em infância.
Havia, ainda, mágoas reiteradamente escritas em várias passagens sobre a falta
de aproveitamento próprio pela dependência que tinha em relação aos seus pais.
Justificava-as elucubrando sobre a necessidade da linha torta para o caminho
dos superiores. Dizia que eles não compreendiam suas altas destrezas e não o
levaram a sério, fazendo com que ficasse preso ao “mediocrisismo” – neologismo
do próprio diário – do comum e daquela vila de Dom Henrique. Dizia, ainda – e
aqui colocamos literalmente: “Somente os
caipiras apreciam a vileza de tal estância!”. Embora tenha dito isto, e
parecesse se assegurar muito das palavras, vivia feliz quando de sua guinada ao
convívio. Talvez seja explicável por conta de sua guinada ter sido
relativamente, levando em conta as condições medíocres dadas – segundo ele
mesmo –, favorável por assumir a posição daquele que era amado por todos – mas sem
reciprocidade alguma, vale ressaltar.
***
Ao que tudo indica, visto seu
trágico fim ainda em vida, todo seu percurso estava marcado por um hedonismo
narcisista irreparável. Suas fixações, na infância, por ideias de gente grande –
anal, diria aquele austríaco –,
frustraram suas pretensões. Sua vida adulta, marcada à ferro em brasa por
fragmentos de infância não superados, girava em torno – tal como na infância –
de um teoria das menos mirabolantes, ainda que pensasse firmemente ter sido
das melhores já que copiava pobre e descaradamente O
Príncipe e Ricardo III sem nunca admitir. Um tanto quanto simplista. Consistia no
seguinte, e aqui colocamos o escrito do autor ipsis litteris:
“Há
duas categorias de pessoas: aquelas que nasceram grandes e destinadas a serem
servidas e os demais, destinados a tudo menos reinar. No primeiro caso, existem
poucos – e aqui neste pedaço do todo não há mais ninguém. O mundo é um todo completo
e não muito complexo. Os que servem precisam dos grandes espíritos; os grandes,
no entanto, devem sempre desprezar os pequenos, pois são desprezíveis, e fazer
uso deles mais simbólico-espiritual que prático. O tratamento paciente e de
aparência humilde para com os pequenos é para que, por um lado, achem que sairão
vencedores em algum momento. Os grandes, em uso legítimo de seus dons e funções
naturais, devem parecer amigos para que sejam venerados, deixando assim que os
pequenos descubram, ainda que indiretamente, que possuem um dos destinados a
reinar no meio deles. Não há remédio para a plebe. E como não há remédio, devem
fazer uso de todas suas forças, ainda que medíocres e fracos, para impressionar
O grande. O reconhecimento do Grande é a maior virtude popular; o Grande, por
si mesmo, acresce a si toda a veneração fazendo-se maior. Não há devolutiva. Os
pequenos não mudam de tamanho, são por natureza assim. Portanto, não há que
agradá-los, ao menos que seja em aparência para que insuflem cada vez mais o
grande e seu reinado sobre tudo.”
Ao largo da contradição da
teoria, uma afronta ao “grande” o pôs por terra, e seu fim inescapável, criado
por si mesmo desde muito, não teve remédio.
Pequeno
desfecho
Não sabendo de fato sobre as
pulsações do convívio, um estrangeiro deu o golpe, ainda que involuntariamente,
que o desgraçaria para todo sempre. Estrangeiro, não sabedor das coisas, tal como
Wilhelm Tell, não se curvou, e isto bastou para que todo trauma ancorado no
espírito desde sempre viesse à tona sem rodeios. Bradou por todos os cantos das
coisas que o angustiava, rogou praga para todos após colocar a culpa neles.
Debateu-se consigo, interiorizou-se. Acabou-se em vida, para o resto dos dias. Descobriu-se
e negou a si mesmo. E, sem saber que era gente, chafurdou na tristeza.