quarta-feira, 13 de abril de 2016

Traumas de infância


Pequeno contexto
Na pequena vila de Dom Henrique Fernandes, situada a oeste da grande cidade, fechada em si mesma, vivia aquele menino que, perdendo-se inteiramente nos livros, não sabia se perder nas pessoas.

***
Não sabendo que era triste, tornou-se arrogante.

“Não se pode, nem se deve, confiar nas pessoas, sejam elas quem forem. A grande lição da vida, e digo da vida coletiva, é aquela que os livros ensinam. A letra viva destes é mais que o elixir por onde se deve guiar o espírito. Toda cidade, toda pessoa de bom grado, deveria saber disto.” “– Mas você não pode se isolar, querido. Não pode pensar que não há nada que salve nas pessoas. Filho! Talvez se abrisse mão dessas ideias que cria poderia enxergar melhor”. “– A paciência do conceito! A Paciência. Paciência, senhora.”

***
Dizia consigo mesmo o homem, que dantes havia sido aquele menino mal resolvido, inculcado com um mundo, que as pessoas não atingiriam, nem de resvalo, o clímax daquela Ópera chamada vida. Paciência: Eis seu grande mistério! Resolveu tornar-se bom exteriormente. Aliás, bom já o era desde criança, bom em demasia. Mudemos a palavra: resolveu tornar-se humano. Rebaixou-se dos céus e veio ter com a ralé que, no entanto, agora seriam seus pobres-diabos, talvez de fato, seus convivas de mais alta cotidianidade. Tratava-os, no passar do tempo, com toda compreensão disponível no universo. Não deixava de ouvi-los um minuto sequer. Atento a tudo e todos, ouvia mais que falava. E com isso desfrutava de bons momentos. Seu grupo mais íntimo, aqueles que sempre lhe estavam ao redor, admirava-no fielmente. Homem sóbrio, inteligente e bondoso, era referência viva e humana para os demais, mesmo quando dizia coisas escapulidas incompreensíveis. Sua paciência se dava naturalmente aos outros. Quando muito, questionava-os de forma delicada e amigável. Nunca os destratava. Pelo contrário, tratava-os como mereciam – tudo ao nível e ao gosto do outro –, sem o pedantismo moral dos grandes – ao qual, como firmemente se sabe pelo que sobrou de seu Livro Pessoal de notas esparsas, pertencia no mais alto escalão. Sempre disposto a sondar, sem rudeza, o espírito de seus interlocutores, nunca os fazia sentir o incômodo da palavra dura e necessária, tampouco deixava transparecer qualquer coisa que não fosse aquilo que, de fato, aparecia aos demais: sua letra e espírito coincidiam. Paciência! Sua grande virtude era esta, mãe da humildade e da tolerância. Homem de bem, cidadão exemplar e amigo até daqueles que não conhecia mais ou menos profundamente, nunca se deixava abalar pelas palavras mortas e sem critério dos menos letrados. Paciência! Sua grande virtude era somente sua, um para-si intocável.

***
Em seus diários tentava, depois de adulto, retratar sua exímia e peculiar infância. Com acurada escrita, descrevia até os detalhes de eventos praticamente irrelevantes para a maioria dos mortais. Tanto é que, apesar da descrição detalhista, nunca datava e nem havia ordem nas folhas: abria seu livro e a página que estivesse em branco recebia a tinta, estivesse onde estivesse. “Nem mamãe, nem papai. Ninguém escapa.” ... “Toda a solidez do mundo se dá a partir da solidez das ideias. Não há nada no homem que seja sólido se não participa da eternidade, das ideias. Tal como Aquiles, é preferível a morte na guerra ao ficar fora da eternidade, longe das letras.” ... “O ranço que sentem por quem é grande, muito maior que eles, é incrível! Fruto de suas frustrações parasitárias. São desprezíveis em um nível profundo.” ... “Conviver com tais indivíduos é medíocre, é morte em estado puro! Nunca chegarão aos pés dos grandes.” ... “Ainda que ninguém saiba, há um plano maior e mais poderoso do qual somente participarão aqueles libertos, conceituados e relevantes. Somente aqueles nascidos com o dom poderão participar. Aqui neste lugar não há nada. Nada para um grande. ‘Poderosos os que são invencíveis; invencíveis os que são grandiosos. Medíocres aqueles que são inferiores por natureza’.[1]

***
No diário, além das ideias e criações que beiravam ao bizarro, havia notas mais realistas e concretas sobre suas perdas. Todavia, não as retratava como perdas propriamente ditas. Antes, acumulava como experiência do espírito e cultura superior. Os relatos, mesmo que esparsos, diziam respeitos aos castigos e a uma espécie de ódio que sentia por seus pais por estes não compreenderem sua grandeza e o punirem em infância. Havia, ainda, mágoas reiteradamente escritas em várias passagens sobre a falta de aproveitamento próprio pela dependência que tinha em relação aos seus pais. Justificava-as elucubrando sobre a necessidade da linha torta para o caminho dos superiores. Dizia que eles não compreendiam suas altas destrezas e não o levaram a sério, fazendo com que ficasse preso ao “mediocrisismo” – neologismo do próprio diário – do comum e daquela vila de Dom Henrique. Dizia, ainda – e aqui colocamos literalmente: “Somente os caipiras apreciam a vileza de tal estância!”. Embora tenha dito isto, e parecesse se assegurar muito das palavras, vivia feliz quando de sua guinada ao convívio. Talvez seja explicável por conta de sua guinada ter sido relativamente, levando em conta as condições medíocres dadas – segundo ele mesmo –, favorável por assumir a posição daquele que era amado por todos – mas sem reciprocidade alguma, vale ressaltar.

***
Ao que tudo indica, visto seu trágico fim ainda em vida, todo seu percurso estava marcado por um hedonismo narcisista irreparável. Suas fixações, na infância, por ideias de gente grande – anal, diria aquele austríaco –, frustraram suas pretensões. Sua vida adulta, marcada à ferro em brasa por fragmentos de infância não superados, girava em torno – tal como na infância – de um teoria das menos mirabolantes, ainda que pensasse firmemente ter sido das melhores já que copiava pobre e descaradamente O Príncipe e Ricardo III sem nunca admitir. Um tanto quanto simplista. Consistia no seguinte, e aqui colocamos o escrito do autor ipsis litteris:
“Há duas categorias de pessoas: aquelas que nasceram grandes e destinadas a serem servidas e os demais, destinados a tudo menos reinar. No primeiro caso, existem poucos – e aqui neste pedaço do todo não há mais ninguém. O mundo é um todo completo e não muito complexo. Os que servem precisam dos grandes espíritos; os grandes, no entanto, devem sempre desprezar os pequenos, pois são desprezíveis, e fazer uso deles mais simbólico-espiritual que prático. O tratamento paciente e de aparência humilde para com os pequenos é para que, por um lado, achem que sairão vencedores em algum momento. Os grandes, em uso legítimo de seus dons e funções naturais, devem parecer amigos para que sejam venerados, deixando assim que os pequenos descubram, ainda que indiretamente, que possuem um dos destinados a reinar no meio deles. Não há remédio para a plebe. E como não há remédio, devem fazer uso de todas suas forças, ainda que medíocres e fracos, para impressionar O grande. O reconhecimento do Grande é a maior virtude popular; o Grande, por si mesmo, acresce a si toda a veneração fazendo-se maior. Não há devolutiva. Os pequenos não mudam de tamanho, são por natureza assim. Portanto, não há que agradá-los, ao menos que seja em aparência para que insuflem cada vez mais o grande e seu reinado sobre tudo.”
Ao largo da contradição da teoria, uma afronta ao “grande” o pôs por terra, e seu fim inescapável, criado por si mesmo desde muito, não teve remédio.

Pequeno desfecho
Não sabendo de fato sobre as pulsações do convívio, um estrangeiro deu o golpe, ainda que involuntariamente, que o desgraçaria para todo sempre. Estrangeiro, não sabedor das coisas, tal como Wilhelm Tell, não se curvou, e isto bastou para que todo trauma ancorado no espírito desde sempre viesse à tona sem rodeios. Bradou por todos os cantos das coisas que o angustiava, rogou praga para todos após colocar a culpa neles. Debateu-se consigo, interiorizou-se. Acabou-se em vida, para o resto dos dias. Descobriu-se e negou a si mesmo. E, sem saber que era gente, chafurdou na tristeza.





[1] Escrito em latim no diário, provavelmente uma citação.


Subsolo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

<$BlogArchiveName$>