– Mas quem disse que você vai jogar?
Prelúdio
de um fim de partida
O
tipo psicológico do dono da bola, depois de crescido, é permeado pelo
ressentimento e pelo sentimento de mando recalcado que, vez ou outra, explode
já que não se contém. Se na infância montou em seus supostos pares, tal como
Brás Cubas, e deles fez cavalos, nunca que tal atitude, marca indelével do
caráter, poderia ser adormecida para sempre – ainda que o dono do sentimento –
e da bola – tente constantemente usar do artifício superficial da humildade. No
fim da partida ele sempre ganha, ainda que tenha perdido, no grito e por sua
autoridade conferida por sua posição. A propriedade que encarnou outrora na
bola, agora é mundo – ainda que seja o mundo limitado, tal como Itaguaí de
Bacamarte, no qual ele vive: seu campo. Seus pares são somente os submissos,
que, todavia, o odeiam e o veneram. O medo de não poder jogar o jogo natural da
vida, que aquele controla e universaliza a partir de sua própria noção de
partida, faz que os outros sintam um medo natural. Amigo de ninguém e de todos,
o dono da bola é um sequelado de si mesmo: sua maior vantagem e glória é
síntese de sua patologia mais profunda. Sempre joga, ainda que seja ruim, e
sempre aponta o dedo para os demais, inferioriza-os por, na mesma mão, sua
inveja e incapacidade. A bola – agora seus títulos e posição social na academia
ou no universo da política bairrista dos corredores e dos bares chiques –
sempre lhe conferiu um status que não possuía por nascimento: nasceu sem dom,
ainda que privilegiado pelas circunstâncias e pelos craques de sua família.
Ressentido por não ter ultrapassado seu pai, mostra toda sua capacidade de
mandar e desmandar mediado pelo poder conferido pela bola. Feitor, seus títulos
honoríficos – ou mesmo oníricos –, é a chibata com a qual açoita duas vezes
a si mesmo quando a joga para trás no movimento de castigar os inferiores que
elegeu por si. Seus pais e avós são os grandes culpados por suas sequelas, não
consegue – e seus sonhos recorrentes trazem monstros – ultrapassá-los: foram
grandes demais...
Uma
partida de rua
–
Você é feio! Não quero você no meu time! “–
Mas ele é bom, não dá pra o deixar jogar no outro time.” – A feiura somente
aparece aos olhos despercebidos. O menino mimado, dono da bola, sempre teve na
educação da rua sua mais bela feição: nunca aprendeu a perder nem a ver beleza
nos desiguais. Na rua, o primeiro jogo é sempre dele. Enquanto ganha, todos do
seu lado são os melhores amigos. Na virada, quando os times se desmembram e
formam-se outros – tal como o brinquedo de Nietzsche que se desconstrói para se
reconstruir diferente –, todos aqueles que antes mereciam as maiores glórias
vindas do Rei, agora são os macacos pobres que jogam descalços. – Seu preto safado! Pé rapado! Na rua o
corro come. O único branco corre. Esconde-se em seu ressentimento de concreto:
sua casa, também ressentida, de ornamento da classe média em pleno seio da periferia.
Seus pais se acham pequeno-burgueses e descem e sobem a rua sem falar com os
vizinhos, tratam de si mesmos como se vivessem nos bairros que, segundo sua
visão, são os apropriados para gente como eles. A periferia, aquela rua, aquela
casa? São meros acidentes e passageiros num futuro que se anuncia de glória...
Tapa
na cara
–
Vocês são meus melhores amigos! Não sei
como vai ser a mudança que meu pai tanto diz. Não quero ir embora daqui! – O
pai sempre prometia casa nova. E ele, claro, não queria sair de onde era Rei:
ninguém, na sã consciência defronte à árvore da sabedoria ou na nau dos loucos,
quer se igualar, rebaixando a si mesmo, aos seus pares. Seus contatos com o
mundo do seu grado, na escola particular do bairro, não se dá com iguais: as
vantagens que conta, que contam uns aos outros, o fazem diferentes: – Na minha rua os moleques me respeitam e têm
medo de mim. São todos sangue bons, ainda que tenham uns neguinhos lá que vivem
querendo me pegar. Mas meus amigos de verdade sempre resolvem as tretas por
mim. “– Comigo acontece igual. Vix! No meu prédio só tem otário!” Vantagens
por vantagens, todos saem sorridentes – e isolados em si mesmos: mônadas
completas e amorfas. Consigo mesmos, no entanto, remoem-se por saber que nada
daquilo é verdade... O ressentimento e o medo são suas forças que os fazem
impor medo. O tabefe que vem de dentro, expressão de sua propriedade interna, é
expressão de sua propriedade externa: ódio, imposição e sarcasmo pelo
sofrimento dos demais: sua maior derrota é sua vitória plena.
Títulos,
cargos e...
–
Olha cara, não te quero mais na minha
equipe. Não quero mais ver sua cara, não quero mais suas opiniões sobre como
fazer meu trabalho. Você não sabe nada e quer me dizer o que fazer? Pode pegar
suas coisas e sumir daqui. Não volte. Da adolescência conturbada, o dono da
bola volta de sua viagem ao submundo dos títulos e diplomas com a humildade
estampada na parte de fora de seu coldre personificado. A vida adulta é recheada
de relacionamentos mal resolvidos, de amores que não deram pé. Toda sua
personalidade de homem humilde que sempre adorou os pobres e luta por eles é
fruto de sua confusão ressentida que pune seu dono. Quanto mais luta pelos
pobres, mais pobres quer que fiquem: vale seu posto. Qualquer pobre que se
emancipe, especialmente com a ajuda dele, é um centímetro a mais do espinho
envenenado que se finca em seu coração. Sua face de bom moço se altera,
entrevada com todo rancor de sua indisposição, sua frustração perante o mundo que
não é seu de todo, que deve ser partilhado, é expressão de seu ódio bilateral. –
Para você que lê estas linhas, este conto meio sem pé nem cabeça, saiba que se
passou há muito tempo. As falas são as que se reteram na mente do narrador, e
que talvez sejam falsas em suas linhas ainda que verdadeiras em sua essência. O
conto, que parece um subterfúgio para analisar a psique do indivíduo, na
verdade somente expõe o que havia de mais interno nas expressões da personagem:
são expressões, nada de análises, de teorias. Deixemos isto ao Simão, se é que
ele ainda vive por aí. Este conto, então, é apenas a expressão do visto, não
do teorizado. Quem seria eu para falar, sem títulos ou cargos, sem critérios e
fora da academia? Apenas conto do jeito que me é transmitido pela memória.
Adiante!
Personagem
principal, ainda que subterfúgio: a bola
A
bola, ainda que pareça objeto inanimado e sem importância, simples subterfúgio
para um início de conto, é peça chave. Não a bola da realidade, aquela que foi substituída
por outra, e por outra, pois sempre estourava nas lanças e cacos de vidros dos
portões e dos muros. A bola mesma, aquela inflada no ego de seu dono e que não
para de inflar, ainda que estoure veias e artérias engendrando derrames e
surtos autoritários daquele seu dono que mal sabe perder ainda que tenha
perdido sempre, a bola, então, é a outra, sinônimo e imagem daquela do jogo. Cabe
essa explicação para você que parou para ler isto, pois, como se sabe, nenhuma
bola pode passar em vão, sem nome ou sem explicação. Quando era a da rua, às
vezes se perdia e o corro comia. Agora, a da Academia... Ah! A da Academia! Do
Clube privativo de alto padrão, do alto escalão do Partido... Aquela sim
remonta, tanto a bola quanto o partido, às viagens oníricas de seu dono:
realizam o mundo fantasmagórico, mas não sem cobrar seu preço. O dono da bola e
seu caráter só se realizam quando inflados e chutados por seus pés de Fausto.
Já
não há mais nada a dizer. A memória falha e a bola já nem é mais a mesma...
[Fim das memórias que poderiam dar num
conto]
Subsolo! Autor desconhecido
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